A PROVA DO CRIME
Um
dia, num condomínio residencial.
Muita coisa pode acontecer num
condomínio, na rotina de um dia qualquer.
Naquela
segunda-feira, logo cedo, Ariovaldo, síndico do Condomínio
Edifício Oceano Pacífico, chamou o zelador Gregório ao corredor de entrada do
prédio para algumas “observações”, conforme disse.
Aos
trinta e dois anos de idade, Gregório, um simpático argentino, era o zelador daquele
prédio já havia bem uns cinco anos. Cansado da vida rural que tivera em seu
país, viera para o Brasil para viver no litoral do Oceano Atlântico,
conseguindo esse emprego em Santos. Os condôminos gostavam muito dele porque
era atencioso e bem-humorado, e até muito engraçado com as suas atitudes meio latinas.
Pela
maneira como foi chamado pelo síndico, a quem já conhecia muito bem, sabia que
viria encrenca. E tinha razão. —Ariovaldo ostentava a pose de austero, era um homem
muito caprichoso, do signo de Virgem como a esposa deste narrador e – sei bem
com é - deixava Gregório quase maluco por não admitir nada errado, sujo ou fora
de lugar. Não deu outra: chegando ao local da ocorrência, Gregório viu que o
síndico estava mesmo muito irritado.
— Quem
fez esta sujeira no corredor? – Perguntou a seco. Descubra o responsável para
que eu lhe mande uma carta de advertência acompanhada da multa regulamentar. E
procure também descobrir de onde vêm uns estranhos balidos ouvidos pelos
condôminos durante toda a noite.
Antes
mesmo que Gregório pudesse responder que não tinha ouvido nada e nem tinha visto
o malcheiroso material até aquele momento, já estava incumbido de investigar sua
origem.
Enquanto
ele recebia as ordens do síndico, chegou para o seu trabalho a Jurema, a bela
faxineira do primeiro andar, uma mulher batalhadora e muito séria, parecendo não
perceber o frisson que provocava com o seu andar naturalmente sensual,
interrompendo a conversa com a sua passagem e hipnotizando os olhares apaixonados
de Gregório, e muito mais do que cobiçosos do síndico.
Vendo
aquele mulherão a caminhar, eles ficaram mudos e paralisados por alguns
instantes, até que caíram em si e perceberam o papelão que estavam fazendo.
Voltaram logo à conversa para disfarçar, mesmo porque sabiam que Jurema não era
sopa. Um dia ela havia defendido ferozmente uma criança injustamente acusada de
roubo de uma ferramenta numa loja próxima. A sua ferocidade ficara conhecida por
aquele episódio e lhe rendera temeroso respeito por parte das pessoas que a viam
todos os dias no condomínio.
Para
a sorte de Gregório e do síndico, Jurema não percebeu os seus olhares atrevidos;
mas a cena não escapou à observação de Sarah, uma romântica jovenzinha de seus quinze
anos, ainda com muitos sonhos cor-de-rosa, que a tudo assistia da varanda do
primeiro andar.
- 0 –
Estudante
anteriormente muito aplicada, naquele ano Sarah havia se deixado levar pela
paquerinha de um colega da escola, o Jonathan, relaxando em seus estudos. Como
resultado, ao final do ano escolar acordou de seu mundo de sonhos de
adolescente, chocada com o próprio insucesso nos exames, pois ficara em segunda
época, uma experiência muito amarga para uma mocinha como ela, que sempre
tivera sucesso na escola, orgulhando a seus pais, sua maior e natural
referência.
Uma
experiência dura e inesquecível. Quase em desespero ao ver a preocupação deles,
Sarah estudou muito para os exames, mergulhando nos livros e cadernos,
esquecendo-se de Jonathan, pelo menos por um tempo; e assim conseguiu,
finalmente, a duras penas, a recuperação do ano escolar.
Agora
sim, já estava em férias e podia fazer o que mais lhe agradava. Além,
evidentemente, do namoro com Jonathan, Sarah tinha verdadeira paixão pela
leitura. Lia de tudo: jornais, gibis, revistas e, principalmente, livros. Em
apenas alguns dias após os exames, já havia tido o prazer de várias leituras,
algumas bem interessantes.
Foi
num gibi que leu as aventuras de Sycron, um grande robô revestido de aço,
dotado de inteligência artificial auto evolutiva, inicialmente programado para
o deslinde e o combate ao crime. Invulnerável aos projéteis de armas de fogo
graças a seu revestimento de aço, representava um grande obstáculo para os
bandidos, era um símbolo do Bem contra o Mal. Sarah riu-se ao pensar que aquele
grande herói, de tão pesado, não poderia ser muito ágil e nunca conseguiria
nadar. Gibis eram mesmo para crianças...
Numa
revista de variedades, dias antes havia lido a história real de Thory, primeiro
Super-herói brasileiro, pernambucano de vinte e sete anos, cujo nome verdadeiro
e completo é Thoryvanderson Ferreira da Silva, nome esse elaborado com muito
carinho por seu pai com base nos de jogadores estrangeiros, durante a Copa
Mundial de Futebol de 1994, quando ele nasceu.
O
artigo contava que Thory, leitor e releitor obsessivo de velhos e antigos gibis
da coleção de seu avô, que encontrou quando ainda era menino, conseguiu a
grande façanha de juntar um dinheirinho e migrar do sertão de Pernambuco para a
Capital, onde procurava emprego como ator em algum circo, sonhando interpretar
preferencialmente o Capitão Marvel, seu maior ídolo, inspirado naqueles gibis.
Como não encontrou circos em Recife, estava ainda desempregado, chamando a
atenção de quem o via passar pelas ruas com aqueles trajes estranhos.
Sabia
que um de seus pontos fracos na interpretação do herói seria a sua incapacidade
de voar, ou mesmo de provocar o raio que lhe daria esse poder ao chamar o mago
“Shazan”; quando criança tentou tantas vezes, e não entendia porque com ele
isso nunca funcionou, se funcionava tão bem com o Capitão Marvel. Ao ver os
altos edifícios da cidade grande, até pensou em tentar um voo saltando lá de
cima, mas desistiu ao lembrar-se de que não conseguiria o raio de Shazan,
conforme disse sincera e candidamente a uma repórter que o entrevistou.
Também
nos jornais Sarah encontrava coisas assombrosas. Ainda no dia anterior lera a
reportagem sobre Nickolas Sheldom, ou o “velho Nick”, como foi chamado pelo
jornal. Tratava-se de um norte-americano de seus quarenta e poucos anos, que em
sua juventude assistia a muitos filmes de faroeste, sempre identificando-se
demais com os personagens dos mocinhos na luta contra os bandidos. Assim,
desenvolvera um forte sentimento do dever de lutar pela Justiça a qualquer
preço, embora não tivesse a noção necessária do respeito às leis. À medida em
que o tempo passava, aquela obsessão pelo combate à injustiça foi dominando a
sua mente de forma doentia. Equipou-se de armas e de outros aparatos de ataque
e defesa, aproveitando-se da facilidade existente nos Estados Unidos para a
compra de armas e munições. Ele sentia, cada vez mais compulsivamente, que
tinha que fazer alguma coisa pelo Bem e pela Justiça, e nada, nem ninguém, poderia impedi-lo. Num
momento extremo de seu devaneio doentio, adotou até uma vestimenta de cowboy.
Ao final, a sua figura despertava a atenção de quem o via, mas ninguém ousava interpelá-lo
ou mesmo seria capaz de imaginar o que ele ainda faria...
A
notícia do atentado praticado pelo “velho Nick”, em que algumas pessoas
perderam a vida sem nenhuma razão, incomodara profundamente a jovem Sarah. A
insegurança que sentiu ao pensar que qualquer maluco ou criminoso poderia
dispor facilmente de armas e sair por aí metralhando as pessoas com quem
cismasse, lhe pareceu algo muito insano. Isso depõe muito contra o pretenso
bom-senso dos adultos, pensou decepcionada.
Essas
leituras ficaram para trás.
Era
segunda-feira, muito cedo, e Sarah já estava sentada numa confortável poltrona na
varanda do apartamento do primeiro andar, lendo empolgada o livro com a
história do mestre Ramos, um capitão que, naquele momento da aventura que lia, enfrentava
uma violenta tempestade com a sua frágil traineira, preocupado em não perder a
carga de peixes que alimentaria a comunidade de sua ilha por algumas semanas e,
principalmente, preocupado com a sua própria sobrevivência, dada a violência da
tempestade que enfrentava. No retorno da
pescaria, ele e seus companheiros foram surpreendidos por aquela tempestade, que
poderia abalar a estrutura da embarcação tornando-a instável. Na tentativa de
manter o barco na rota, os marinheiros caíram no mar e sumiram entre as águas. Assustado
com o desaparecimento de seus companheiros, o Capitão implorava a Deus que o
salvasse. Sozinho diante de um perigo como jamais enfrentara, teria que salvar a
própria vida e a carga. Sua família o esperava, tinha que conseguir!
Atraída
pela conversa do síndico com Gregório e desviando um pouco sua atenção da
leitura, Sarah pode observar claramente, daquela posição privilegiada que lhe
proporcionava a varanda do primeiro andar, a cena que se passava no momento da
entrada de Jurema. E indignou-se: Síndico safado! Grudou os olhos no traseiro dela!
Só não vou lhe contar porque é brava, é capaz de brigar com ele e vai dar
confusão. Mas, em compensação...olha só o jeito que o Gregório olha para a
Jurema! Parece que está gamadinho! Aaah! Isso eu vou contar!
- 0 -
Enquanto
Sarah matutava sobre o que vira, Gregório já examinava a cena do “crime”,
ponderando para si mesmo que algumas pessoas não têm, mesmo, noção de higiene,
respeito e civilidade. Via-se diante de uma tarefa difícil: como descobrir o
responsável por aquela sujeira? Se não fosse a exigência do síndico, bastaria
limpar aquilo e estaria tudo resolvido. Mas a situação, praticamente, o
investira numa tarefa que seria própria para um detetive. Ao observar o montinho
o seu pensamento ia correndo solto, e se divertiu ao imaginar-se vestido como
Sherlock Holmes, com capa, cachimbo, chapéu e lupa, para uma importante
investigação em busca do misterioso proprietário de um bichinho porcalhão, que
não era, evidentemente um gato nem um periquito; certamente seria um cachorro
e... um cachorro? Epa! Essas bolinhas eu conheço bem. São cocôs de cabrito! Sim!
É claro! Isso explica também os balidos ouvidos durante a noite! Mas... Que
absurdo! Quem teria escolhido um cabrito para pet, aqui no condomínio?
- 0 -
O
jovem veterinário doutor Alex vinha retornando da casa de sua noiva, que morava
numa cidade próxima. Já era tarde da noite de domingo. De repente, os faróis de
seu carro iluminaram um movimento agitado de um vulto branco bem mais adiante,
ao lado do acostamento, chamando a sua atenção. Curioso, como a estrada estava
sem tráfego pôde reduzir a velocidade enquanto se aproximava do local.
Ao
chegar, parou a sua perua no acostamento, desceu do veículo, e viu que um
pequeno animal estava se debatendo, preso em alguma coisa. Bondoso e fiel a seu
ideal de veterinário, imediatamente se dispôs a acudi-lo; acendeu a sua
lanterna e atravessou a pequena faixa de mato rasteiro até o animal,
constatando, ao iluminá-lo, que se tratava de um cabrito preso numa cerca de
arame farpado, já um pouco machucado e bastante assustado.
Antes
de desembaraçá-lo da cerca, tomou o cuidado de prendê-lo com uma guia para que
não fugisse, pois ele necessitaria de curativos. Depois, com alguma
dificuldade, conduziu o cabrito até a sua perua e o alojou na gaiola que
mantinha no veículo para o transporte de animais.
O
doutor Alex estava bastante cansado e àquela hora não dispunha de um local
adequado para deixar o cabrito. Não encontrando qualquer alternativa, teve a
ideia maluca, mas única, de levar o cabrito para o seu próprio apartamento,
onde o acomodaria de alguma maneira, apenas até o dia seguinte. Daria um jeito.
Ao
chegar, todos no prédio já dormiam, inclusive o porteiro, como sempre acontecia.
O
doutor Alex abriu o portão com o controle remoto, estacionou a perua em sua
vaga no pátio do prédio, pegou o cabrito pela guia, passou com ele através do
jardim, mas não entrou pela entrada principal; foi até a entrada de serviço e
subiu as escadas com o animal até o seu apartamento no terceiro andar. Ninguém
os viu.
- 0 -
Segunda-feira,
ainda cedo, Jurema entrou no apartamento para o serviço diário e logo Sarah
veio a seu encontro com aquela carinha maliciosa de quem sabe alguma coisa
muito particular.
— Tenho
uma coisa para te contar – disse ela.
E
contou mesmo, com detalhes, a cena que presenciara da varanda, descrevendo o
olhar apaixonado que o argentino Gregório dedicara a Jurema durante a sua
passagem na entrada do prédio. Prudentemente, nada disse sobre os olhares lascivos
do síndico.
Ao
ouvi-la, Jurema abandonou a sua expressão séria habitual e sorriu feliz com a
notícia, sentindo-se envaidecida e agradecendo a Sarah por lhe confirmar aquilo
de que já desconfiava. Agora iria pensar uma forma de facilitar as coisas para
o Gregório, pois também gostaria de ser cortejada por ele.
- 0 -
Quem
teria um cabrito neste condomínio? Pensava ainda Gregório, exultante com a brilhante
dedução que tivera no exame do cocô. Nesse momento, surge a solução, caída dos
Céus. Ou melhor, vinda da entrada de serviços, por onde estava passando o
Doutor Alex com o cabrito. Ao vê-los, Gregório correu afobado até eles, pisando
desastradamente na prova do crime:
-
Buenos dias, señor – Disse Gregório.
-
Bom dia, Gregório – Disse o Doutor Alex.
-
Bé é é é é é! – Disse o cabrito.
Enquanto
Gregório explicava a situação para o Doutor Alex, aproximou-se deles o síndico
Ariovaldo, que se espantara com a inusitada presença de um cabrito em seu
condomínio.
— Bé é
é é é é! – Cumprimentou-o o cabrito.
Isso deu ao Doutor Alex a oportunidade de lhe
contar as dificuldades por que havia passado na noite anterior para acudir o
animal, do qual já se afeiçoara bastante.
Ouvindo
a história e compadecido com a dedicação e a bondade do veterinário, Ariovaldo
abriu mão de seus princípios de virginiano e resolveu perdoar a multa, além de
não fazer a carta de advertência. Deu ordens a Gregório para providenciar uma
limpeza completa do ambiente e dar o caso por encerrado, declarando solenemente,
ao vento:
— A
grandeza e a paz devem sempre prevalecer no Condomínio Oceano Pacífico.
Bé
é é é é é é! – Agradeceu e aplaudiu o cabrito.
Avaliando
bem as circunstâncias, o Doutor Alex achou melhor não abusar da boa vontade do
senhor Ariovaldo e deixou para solicitar em outro momento a autorização para
manter permanentemente o cabrito em seu apartamento, como animal de estimação.
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Na
tarde daquele mesmo dia, ao sair do serviço, uma sedutora e perfumada Jurema,
distraidamente, como quem não quer nada, deixou cair um pacote quando passava
bem pertinho do apaixonado Gregório...
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