A fuga
Hirtis Lazarin
O convento dormia tranquilamente. As freiras e
as iniciantes acomodavam-se bem cedo. Acordar às cinco horas da manhã
exigia disposição para assistir à santa missa que durava horas de orações, a
primeira obrigação do dia, mesmo antes do substancioso café da manhã.
Muitas religiosas dedicavam-se ao aprimoramento culinário, único prazer
permitido entre aquelas silenciosas paredes coniventes,
cercadas por altos muros cinzentos.
Havia dias em que Claire andava bem estranha.
Às vezes esboçava um sorriso maroto disfarçado de felicidade, outras
fazia caretas de preocupação. A madre superiora, vivida e ranzinza, já
notara e estava de olho.
Claire nasceu no ano de 1866 em Paris numa família
aristocrática, extremamente religiosa. Religião e poder andavam de mãos
dadas.
Ao completar dezoito anos, eram apresentadas às
jovens três opções de vida: casar-se com alguém escolhido pela família,
fazer votos religiosos ou permanecer solteira com o dever de cuidar dos
pais e sobrinhos.
Claire era sensível e inteligente o suficiente para
não ser aprisionada num destino programado. Tinha ideias avançadas para
sua época. Tocava piano desde os cinco anos e seus desenhos gritavam
criatividade e sensibilidade estética. Mas tais qualidades não eram
valorizadas no mundo feminino. As mulheres eram preparadas para cuidar
da vida privada da família e aos homens cabia o sustento.
"Constituir família com um desconhecido, nem
pensar". Se escolhesse o convento, teria tempo para pensar em
outra saída. E foi o que fez.
Claire consultou o relógio escondido embaixo do
travesseiro. Eram quase duas horas da manhã. Certificou-se de que
suas colegas de quarto dormiam profundamente, tirou a camisola branca de
algodão cru que escondia um vestido reto e sem babados, usado debaixo do
hábito. Carregou uma mochila com poucas peças de roupa e saiu do quarto.
Pé ante pé, caminhou pelos imensos corredores
familiares, atravessou salas e entrou na capela. Apenas a lamparina do
Santíssimo Sacramento acesa. Orou poucas palavras, pediu perdão a
Deus. "A gente só vive uma vez".
Tão silenciosa quanto uma folha seca que se
desprende do galho, andou até a porta principal. Girou a chave pesada tão
delicadamente que ela não teve coragem de ranger. Olhou para todos os
lados e desceu as escadas saltitando. Atravessou o jardim florido
chegando ao
depósito das ferramentas e apetrechos de jardinagem. A escada estava onde
deveria estar. Era pesada, mas não mais que a vontade de fugir.
Subiu cada degrau pacientemente. Uma queda
quebraria todos os seus ossos. Chegou à borda do muro e lá embaixo na
calçada estava o amontoado de lixo que seria recolhido de manhã.
Ela nunca ouvira falar em super-heróis, mas, naquele
momento, seria a primeira. Num salto voador, viu-se misturada aos restos
de comida que se soltaram de um saco furado. O mal cheiro era
forte. Deu uma chacoalhada, sentiu-se livre e solta.
Nesse exato momento, lá na esquina, apontou uma
carruagem num trote lento e compassado.
Claire postou-se no meio da rua estreita e gritou
por socorro. O condutor não teve outra saída senão frear os
cavalos. Assustados, relincharam alto. Ela não pensou duas
vezes. Abriu a portinhola e pulou para dentro do coche. Ela
precisava fugir dali.
Jeremias aguardou um instante e como os passageiros
não esboçaram qualquer reação, tocou em frente.
Então a fugitiva se deu conta de que não estava
sozinha. Dois homens bem vestidos e uma mulher exuberante com seios
volumosos pressionados
pelo espartilho, riam e bebiam champanhe. Bêbados, descontrolados e
felizes depois de uma noite prazerosa no cabaré ”Chat Noir" da
rua Montmartre, não davam conta do que se passava ao redor. Logo em
seguida, todos adormeceram. Só acordaram quando a carruagem
estremeceu e uma das rodas se soltou. O "coupê" perdeu o controle
da direção e os cavalos assustados arrastaram todos, num zigue-zague, até
parar no acostamento.
Todos desceram e só então a "intrusa" foi
descoberta. "De onde veio essa assombração"? Antes que
fosse atacada, em resumidas palavras, Claire deu-lhes uma explicação
razoável.
Já estavam a muitos quilômetros de Paris e era o
momento necessário e oportuno para uma pausa. Acomodaram-se debaixo de
árvores corpulentas às margens de um riacho de águas rasas transparentes.
Fartaram-se de alimentos e frutas que carregavam. Os cavalos, também
famintos, perderam-se no descampado de grama verdinha.
Claire contou detalhes da sua história e teve apoio
do grupo. Gente boa e rica que sabia aproveitar a vida. Eles
pretendiam chegar à Florença, onde acontecia uma exposição com pinturas
renascentistas. Era tudo o que a ex-freira mais queria: contatar o mundo
das artes, fugir da França e se esquecer da família que, certamente, a
amaldiçoaria todos os dias de sua vida.
O calor estava intenso e as águas convidavam todos
ao banho. Os rapazes não se entusiasmaram em se desfazer de botas e
tantas peças de roupa, mas as duas mulheres, desinibidas e sem pudor,
despiram-se e não perderam tempo.
A carruagem estava consertada e os cavalos
descansados e tranquilos. Hora de partir. O caminho à
frente era longo.
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