FÉ E DESCONFIANÇA
FÉ em DEUS, desconfiança das pessoas
Helio F.
Salema
CAPÍTULO UM
No início do outono, às tardes, a temperatura era mais agradável.
Senhoras colocavam cadeiras nas estreitas calçadas, para “pegar uma fresca”. As
pessoas eram forçadas a passar bem devagar e assim não deixavam de cumprimentar
as moradoras. Algumas até paravam e entrosavam uma prosa. Aquelas que não
queriam conversa passavam pelo meio da rua, apressadas. Era assim a vida
naquela pequena cidade.
Como um trovão que chega sem o menor sinal de chuva, carros da polícia
passavam pelas ruas da tranquila cidade de Santa Felicidade assustando os
moradores. Ninguém conseguia imaginar a razão de tantas viaturas.
Nem as mais afinadas fofoqueiras suspeitavam do motivo. Alguns mais
afoitos seguiram na mesma direção para serem os primeiros a saberem das
últimas.
O comboio parou em frente à igreja. Os policiais desceram e se posicionaram
junto à porta, como se esperassem alguém lá de dentro sair. Minutos passaram e
mais pessoas foram se concentrando na praça em frente à igreja.
Vários policiais se dirigiram apressadamente para o lado da igreja,
onde o padre, por uma porta, saía vestido com roupas de cidadão comum. Ao ver
os policiais correu em direção à mata. Foi capturado minutos depois. Sem
demonstrar qualquer sinal de reação, caminhou lentamente de cabeça baixa e
entrou na viatura.
Nesse momento chegou ao local o Sr. Prefeito. O oficial de justiça
comunicou-lhe que o falso padre era um prisioneiro. Também lhe foi dito que uma
pessoa, na capital, havia pedido investigação sobre o padre. Ao apresentar a
foto de um batizado, imediatamente, foi reconhecido o fugitivo. Condenado como
golpista e por tentativa frustrada de estupro.
CAPÍTULO DOIS
O falso padre chegou à cidade poucos dias após o falecimento do padre
Hilário. Foi direto à igreja e se apresentou como o substituto. Por ter
estudado em colégio religioso, não teve
dificuldades de adaptação. Bom de conversa foi logo conquistando a confiança
das pessoas mais ligadas à igreja.
Falava de sua infância de menino pobre, sem presentes, sem roupas
novas, só as usadas quando alguém de bom coração doava. Não passou fome, mas
muitas vezes um pequeno pão era dividido para quatro.
Tinha imensa e inabalável fé em Deus, e até confessou ser devoto de
São Sebastião, padroeiro da cidade. O que o teria deixado muito feliz ao saber
que viria, justamente para esta paróquia. Preocupado com o futuro da humanidade
defendia a família e os bons costumes.
Sendo um bom ouvinte e atento a todos que o procuravam, não teve
dificuldades em obter a confiança dos fiéis. Além de padre, também era um amigo
para todas as horas e situações. Várias vezes foi chamado para resolver briga
de vizinhos ou até mesmo de família.
Sua calma, voz suave e paciência para ouvir, muito contribuíram para resolver os conflitos. Assim foi conseguindo a confiança total das pessoas que o procuravam, em momentos difíceis ou de desespero.
Aquela situação de salvador de todos o fez,
aos poucos, mudar sutilmente seu comportamento.
Ao perceber que era respeitado e admirado, passou a se interessar em
saber tudo sobre todos. Mas percebeu que eram poucos os que se confessavam com
frequência. Então passou a exigir de cada frequentador a confissão pelo menos
uma vez por semana.
Conseguiu aumentar bastante a participação dos fiéis na confissão
semanal. Algumas pessoas não tiveram dificuldades em relatar coisas que até
aquele momento, jamais haviam pensado em revelar. Outras com muito custo, e
graças à insistência do padre, se expuseram a tal ponto de mencionar fatos que
antes não tinham sequer coragem de pensar. E assim com bastante habilidade
conseguiu estimular até confissões íntimas.
Para aquelas que não aceitavam tal exigência, por não terem facilidade
em se expressar ou por não verem necessidade, ele alegava ser necessário, sim,
para o desenvolvimento espiritual de cada um ou ficaria esse sofrendo junto aos
maus espíritos.
CAPÍTULO TRÊS
No entanto, havia um grupo que resistia a cumprir esta exigência.
Entre eles estava Severino, que sempre participou das atividades desde
sua adolescência. Depois de casado, junto com a esposa, que também era católica
fervorosa. Após o falecimento da esposa, ele encontrou na igreja e nos fiéis,
um apoio que lhe valeu muito.
Desde a chegada do novo padre ele sempre manteve certa distância, pois
o mesmo não lhe parecia confiável.
Mais preocupado ficou quando numa noite ao passar próximo à igreja viu
uma senhora saindo apressada da porta lateral da igreja, justamente a que dava
acesso aos aposentos do padre. Assim que ela virou a esquina, Severino correu
para tentar alcançá-la. Mas ao chegar à esquina viu a rua totalmente deserta.
Caminhou até o final e constatou que todas as casas estavam às escuras reinando
absoluto silêncio. Ficou por alguns segundos pensando se era uma pessoa, apenas
um vulto, assombração ou alma de outro mundo.
Desesperançoso e ofegante voltou para casa. Assim que entrou,
ajoelhou-se e rezou por um longo tempo. Aquela cena não saía da sua cabeça,
cada dia que passava, mais intrigado ficava. Por vários dias ficou tentando
lembrar-se de detalhes. Altura, tipo de roupa, mas nada de especial que pudesse
ajudar na identificação. Até mesmo a sombrinha era semelhante às outras que ele
via na rua.
Resolveu então caminhar à noite passando várias vezes pelo mesmo local
e em horários diferentes. Os dias foram passando e o desânimo aumentando.
CAPÍTULO QUATRO
Com a chegada da Semana Santa várias famílias vieram à Santa
Felicidade aproveitando o feriado para rever os familiares e amigos. Foram dias
de muita alegria para os moradores daquela pequena e sossegada cidade.
Severino pôde rever amigos, saber das novidades da capital e também
sentir a falta de outros que desta vez não vieram.
Foi grande a satisfação em rever Agostinho, sobrinho de sua falecida
esposa, há muito tempo residindo na capital. Lembranças do tempo que este era
seu companheiro nas pescarias, época que pescar era a principal distração de
ambos.
Também Agostinho disse que sentia saudades de quando Severino lhe ensinava técnicas importantes para o jogo de damas, geralmente após o jantar. A cada momento que eles se recordavam de algum momento especial, riram como duas crianças no dia de Natal.
Agostinho, porém, interrompeu a euforia quando perguntou sobre o
padre:
— Tio quem é esse padre novato que está querendo “bagunçar” com a fé e
a cabeça das pessoas?
— Ehh! Também a minha cabeça anda “sacolejando”. Não sei onde
isso vai parar.
— Ainda bem que eu não frequento igreja, mas acho que as pessoas
precisam ser respeitadas.
Subitamente, chegam até eles outros amigos do Agostinho.
Após um pouco de prosa, eles se despediram de Severino e seguiram para
se reunirem com outros amigos de infância.
CAPÍTULO CINCO
Passadas algumas semanas, Severino resolveu voltar a frequentar a
igreja. Mesmo a contragosto decidiu fazer a comunhão semanal. Aproveitava
também para numa longa conversa com o padre, talvez ganhar a confiança dele, e
quem sabe, em algum momento, ter uma revelação. Eram assuntos dos mais
diversos. Assim eles foram trocando informações pessoais.
Foi numa dessas confabulações, que Severino distraidamente relatou um fato guardado em segredo por muitos anos. Uma tentativa de estupro não concretizado. Impedido por familiares da vítima. Para evitar ser agredido teve que sair, imediatamente, daquela localidade, às pressas, e nunca mais voltar.
Na primeira missa, após a confissão de Severino, com a igreja lotada
de fieis, durante o sermão, o padre falou do terrível pecado do estupro. Mesmo
sendo impedido. O fato de haver a insana intenção já era objeto de condenação
sumária. Prosseguiu dizendo que alguém ali presente havia sido autor, em outros
tempos, o que não o eximia da culpa.
Severino sentiu a punhalada, forte e certeira, no seu coração. Minutos
depois saía arrasado e se arrastando, moralmente.
CAPÍTULO SEIS
Após a saída dos policiais, os curiosos se aproximaram do Sr. Prefeito
para ouvir o que ele relatava aos seus amigos mais chegados. Severino que a
tudo observava de longe, também se aproximou.
Ouviu atentamente as perguntas dos mais afoitos e toda a explicação do
Sr. Prefeito, principalmente quando disse que o falso padre fugiu da cadeia e
que havia sido condenado por práticas de golpes e tentativa de estupro.
Severino ergue a cabeça, fixa os olhos na torre da igreja e quase
sussurrando:
— A JUSTIÇA DIVINA tarda, mas não falha.
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