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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

A SOMBRA DO LIMOEIRO - PEDRO HENRIQUE

 

     


 

A SOMBRA DO LIMOEIRO

PEDRO HENRIQUE

 

Na tarefa indomável que é viver, somos colocados sempre à prova. Seja pelas dinâmicas, por vezes, exaustivas do cotidiano, seja pela complexidade dos caminhos que nos trouxeram ao lugar onde estamos hoje.

     Nada tenho a amaldiçoar. Cheguei no pico mais alto. Só que há algo. Uma coisa cuja nomenclatura foge das minhas mãos como água e então é inútil querer prender essa sombra que paira sobre mim e lançar a ela a luz da linguagem.

     Tenho oitenta e dois anos, já sou aposentada, ganho o que um pai de família neste país nem que trabalhasse a vida inteira ganharia. Entretanto, visto o manto da solidão cotidianamente, entrego-me sem temor ao meu percurso. Sou fêmea, sou corajosa, sou mulher.

     Sabe aquela clássica história da menina do interior que morava com os pais e que era a única filha de sete irmãos? Pois bem, essa sou eu. Lembro sempre, quando deito nesta cama, de como meu pai era metódico.

     Ai de mim se porventura fosse vista de conversinha com algum moleque. Haveria, indubitavelmente, uma boa vara, retirada do nosso limoeiro, à minha espera. Pronta, decidida e cruel, para me dar o que meu pai enchia a boca para chamar de educação. “Eu bato porque te amo.”

     É engraçado que Alberto, meu falecido marido, disse a mesma coisa quando me bateu pela primeira vez.

     Não ache você que ele era um bêbado. Não. Era um homem educado, bem portado, rico e recheado de títulos de honra.

     Mas o mal não olha para o status em que estamos. Ele vem, correndo, faminto, desejando colossalmente devorar-te. Tirar de ti o afeto e a dignidade.

     No entanto, a vida não se resume ao doloroso. Tive mãe. Uma mulher que os próprios deuses se curvavam ao seu passar, porque viam ali a bondade de raros corações.

     Afeto era o substantivo abstrato que a classificava de forma completa. Beijava, abraçava, sorria… Angariou a ciência de que um gesto vale mais que mil palavras.

     Lembro que sempre ao chegar na cozinha para ajudá-la a preparar o almoço, era recebida por muitas carícias e toques. Ah… como aquela mulher me amava.

     Com meus irmãos também não era diferente. Não se ressentia em beijá-los ou pentear seus cabelos para que fossem belos e irresistíveis ao bar com papai.

     Afirmo com convicção que foi uma princesa em outra vida. Seu jeito gracioso denunciava tal tese. Não havia um que não notasse a forma elegante de seu caminhar ou sua educação erudita perante todos.

    E com isso, também surgiam os indissolúveis questionamentos: “O porquê de uma mulher tão bela como ela se casaria com um homem tão avarento?”

     Papai era o oposto. Sujo, ignorante, sem respeito algum aos seus semelhantes. Era bruto, selvagem. Nunca negou que pusera a sete palmos do chão uma vida. E dizia seu feito com orgulho, pois como o pai lhe ensinara: isso lhe confere posição de macho.

     Mas o que os questionadores não viam nas águas turvas desse rio era o desejo incontrolável de liberdade, de voos altos, de sair e ser aquilo que se pode ser.

     Coitada de mamãe, soube como eu hoje sei. Soube…

     Bom, voltando. Virgindade, essa era uma palavra tida como sagrada em minha casa. Meu pai dizia que ninguém arrancaria isso de mim e que, se surgisse na Terra um homem decidido a fazê-lo, deveria ser um doutor.

     E o destino armazenando essa informação tramou seu plano astuto. Ao invés de Alberto de Alcântara Albuquerque, chegar em outra cidade, na qual fora acionado para defender um fazendeiro milionário. Veio diretamente ao meu encontro.

     “Menina, onde fica a fazenda Boa Pessoa?” Foram suas palavras. Eu tinha quinze anos na época. Hurm! Todos ficaram me olhando falar com aquele sujeito que chegara ali com um carro que desperta em todos a ânsia de saber mais.

     E naquele momento, mesmo sabendo que era errado falar com qualquer pessoa do sexo oposto, não me contive perante a possibilidade da vaidade e de mostrar para toda aquela gentinha que eu era mais do que a filha de Antônio cachaceiro.

     “Não, sei não, moço.” E com essas palavras, a vida laço-me ao declínio e à benção dos dias porvir.

     Meu pai logo foi chamado por um dos meus irmãos que afirmou, idealizando meu encontro com o fragmento do limoeiro, que eu estava descumprindo à luz do dia, seus mandos.

     No entanto, ninguém, nem Antônio cachaceiro, teria coragem de chutar a oportunidade que batia tão carinhosamente à sua porta.

     Meu pai se aproximou e, a essa altura, Alberto perguntava-me se namorava.

     “Não, não, senhor, ela é moça pura. É minha filha.”

     “Ah, então é o senhor o culpado dessa belezura existir?”

     “Hurm! Sou sim.”

     “E o senhor? Qual é a vossa graça?”

      Alberto não disse uma palavra sequer, apenas pegou a carteira e tirou dela um cartão. Papai não sabia ler, então deu para mim, e quando li o “Dr.” na frente do nome Alberto, foi o suficiente para quatro horas depois, não antes, claro, de uma longa conversa entre os dois, eu estar entrando naquele carro, sob o olhar curioso de todos, e indo com o doutor para bem longe dali.

     Ainda hoje, questiono, com tristeza, se foi a melhor decisão que meu pai tomou. Alberto nunca foi o melhor marido do mundo, não era nem de longe agradável.

     No começo, foi mágico. Finalmente, eu estava em um lugar onde eu não tinha que ter medo de me esconder ou não usar a roupa que verdadeiramente queria usar.

     Mas com os anos, o grito veio. A princípio era por coisas banais, logo em seguida se tornou mais recorrente.

     Só que… O que era um grito para quem outrora vestia os trapos comprados na feira por mamãe e hoje usa a mais alta grife?

     E quando, depois do grito, o tapa marcou meu rosto. Lembrei de papai. “Eu bato porque te amo.” Então me calei.

     Quando Alberto morreu, me veio à mente, ao olhar para o seu caixão, o enterro de mamãe. Que antes de partir, havia me dito que eu nunca poderia deixar um homem mandar em mim e que era para fazer o que fosse preciso para sair daquela casa.

     E naquela noite, após sair do meu quarto, papai a amou muito. Oh, como amou.

     Anos mais tarde, quando o doutor e eu fizemos o aniversário de trinta e cinco anos de casados, Alberto veio com fúria me amar também, mas eu já estava pronta.

    Garanto a você, caro leitor, que eu o amei, naquele dia, mais do que tudo no mundo.

 

2 comentários:

  1. Verônica Afonso25/02/2025, 21:04

    Pedro, novamente, que incrível!
    Acho que não vou parar de pensar o seguinte: "Quando você publicar o seu primeiro livro (por favor, diga que isso é uma meta sua), eu faço questão de ser uma das primeiras leitoras.
    Já sou fã e mal posso esperar pelas suas produções futuras!

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    Respostas
    1. Verônica, obrigado pelo carinho! Pode deixar que, quando meu primeiro livro for publicado, seu exemplar estará reservado e autografado, rsrs.

      Excluir

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