A
SOMBRA DO LIMOEIRO
PEDRO
HENRIQUE
Na
tarefa indomável que é viver, somos colocados sempre à prova. Seja pelas
dinâmicas, por vezes, exaustivas do cotidiano, seja pela complexidade dos
caminhos que nos trouxeram ao lugar onde estamos hoje.
Nada tenho a amaldiçoar. Cheguei no pico
mais alto. Só que há algo. Uma coisa cuja nomenclatura foge das minhas mãos
como água e então é inútil querer prender essa sombra que paira sobre mim e
lançar a ela a luz da linguagem.
Tenho oitenta e dois anos, já sou
aposentada, ganho o que um pai de família neste país nem que trabalhasse a vida
inteira ganharia. Entretanto, visto o manto da solidão cotidianamente,
entrego-me sem temor ao meu percurso. Sou fêmea, sou corajosa, sou mulher.
Sabe aquela clássica história da menina do
interior que morava com os pais e que era a única filha de sete irmãos? Pois
bem, essa sou eu. Lembro sempre, quando deito nesta cama, de como meu pai era
metódico.
Ai de mim se porventura fosse vista de
conversinha com algum moleque. Haveria, indubitavelmente, uma boa vara,
retirada do nosso limoeiro, à minha espera. Pronta, decidida e cruel, para me
dar o que meu pai enchia a boca para chamar de educação. “Eu bato porque te
amo.”
É engraçado que Alberto, meu falecido
marido, disse a mesma coisa quando me bateu pela primeira vez.
Não ache você que ele era um bêbado. Não.
Era um homem educado, bem portado, rico e recheado de títulos de honra.
Mas o mal não olha para o status em que
estamos. Ele vem, correndo, faminto, desejando colossalmente devorar-te. Tirar
de ti o afeto e a dignidade.
No entanto, a vida não se resume ao
doloroso. Tive mãe. Uma mulher que os próprios deuses se curvavam ao seu
passar, porque viam ali a bondade de raros corações.
Afeto era o substantivo abstrato que a
classificava de forma completa. Beijava, abraçava, sorria… Angariou a ciência
de que um gesto vale mais que mil palavras.
Lembro que sempre ao chegar na cozinha
para ajudá-la a preparar o almoço, era recebida por muitas carícias e toques.
Ah… como aquela mulher me amava.
Com meus irmãos também não era diferente.
Não se ressentia em beijá-los ou pentear seus cabelos para que fossem belos e
irresistíveis ao bar com papai.
Afirmo com convicção que foi uma princesa
em outra vida. Seu jeito gracioso denunciava tal tese. Não havia um que não
notasse a forma elegante de seu caminhar ou sua educação erudita perante todos.
E com isso, também surgiam os indissolúveis
questionamentos: “O porquê de uma mulher tão bela como ela se casaria com um
homem tão avarento?”
Papai era o oposto. Sujo, ignorante, sem
respeito algum aos seus semelhantes. Era bruto, selvagem. Nunca negou que
pusera a sete palmos do chão uma vida. E dizia seu feito com orgulho, pois como
o pai lhe ensinara: isso lhe confere posição de macho.
Mas o que os questionadores não viam nas
águas turvas desse rio era o desejo incontrolável de liberdade, de voos altos,
de sair e ser aquilo que se pode ser.
Coitada de mamãe, soube como eu hoje sei.
Soube…
Bom, voltando. Virgindade, essa era uma
palavra tida como sagrada em minha casa. Meu pai dizia que ninguém arrancaria
isso de mim e que, se surgisse na Terra um homem decidido a fazê-lo, deveria
ser um doutor.
E o destino armazenando essa informação
tramou seu plano astuto. Ao invés de Alberto de Alcântara Albuquerque, chegar
em outra cidade, na qual fora acionado para defender um fazendeiro milionário.
Veio diretamente ao meu encontro.
“Menina, onde fica a fazenda Boa Pessoa?”
Foram suas palavras. Eu tinha quinze anos na época. Hurm! Todos ficaram me
olhando falar com aquele sujeito que chegara ali com um carro que desperta em
todos a ânsia de saber mais.
E naquele momento, mesmo sabendo que era
errado falar com qualquer pessoa do sexo oposto, não me contive perante a
possibilidade da vaidade e de mostrar para toda aquela gentinha que eu era mais
do que a filha de Antônio cachaceiro.
“Não, sei não, moço.” E com essas
palavras, a vida laço-me ao declínio e à benção dos dias porvir.
Meu pai logo foi chamado por um dos meus
irmãos que afirmou, idealizando meu encontro com o fragmento do limoeiro, que
eu estava descumprindo à luz do dia, seus mandos.
No entanto, ninguém, nem Antônio
cachaceiro, teria coragem de chutar a oportunidade que batia tão carinhosamente
à sua porta.
Meu pai se aproximou e, a essa altura,
Alberto perguntava-me se namorava.
“Não, não, senhor, ela é moça pura. É
minha filha.”
“Ah, então é o senhor o culpado dessa
belezura existir?”
“Hurm! Sou sim.”
“E o senhor? Qual é a vossa graça?”
Alberto não disse uma palavra sequer, apenas
pegou a carteira e tirou dela um cartão. Papai não sabia ler, então deu para
mim, e quando li o “Dr.” na frente do nome Alberto, foi o suficiente para
quatro horas depois, não antes, claro, de uma longa conversa entre os dois, eu
estar entrando naquele carro, sob o olhar curioso de todos, e indo com o doutor
para bem longe dali.
Ainda hoje, questiono, com tristeza, se
foi a melhor decisão que meu pai tomou. Alberto nunca foi o melhor marido do
mundo, não era nem de longe agradável.
No começo, foi mágico. Finalmente, eu
estava em um lugar onde eu não tinha que ter medo de me esconder ou não usar a
roupa que verdadeiramente queria usar.
Mas com os anos, o grito veio. A princípio
era por coisas banais, logo em seguida se tornou mais recorrente.
Só que… O que era um grito para quem
outrora vestia os trapos comprados na feira por mamãe e hoje usa a mais alta
grife?
E quando, depois do grito, o tapa marcou
meu rosto. Lembrei de papai. “Eu bato porque te amo.” Então me calei.
Quando Alberto morreu, me veio à mente, ao
olhar para o seu caixão, o enterro de mamãe. Que antes de partir, havia me dito
que eu nunca poderia deixar um homem mandar em mim e que era para fazer o que
fosse preciso para sair daquela casa.
E naquela noite, após sair do meu quarto,
papai a amou muito. Oh, como amou.
Anos mais tarde, quando o doutor e eu
fizemos o aniversário de trinta e cinco anos de casados, Alberto veio com fúria
me amar também, mas eu já estava pronta.
Garanto a você, caro leitor, que eu o amei,
naquele dia, mais do que tudo no mundo.
Pedro, novamente, que incrível!
ResponderExcluirAcho que não vou parar de pensar o seguinte: "Quando você publicar o seu primeiro livro (por favor, diga que isso é uma meta sua), eu faço questão de ser uma das primeiras leitoras.
Já sou fã e mal posso esperar pelas suas produções futuras!
Verônica, obrigado pelo carinho! Pode deixar que, quando meu primeiro livro for publicado, seu exemplar estará reservado e autografado, rsrs.
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