RECO-RECO
PEDRO HENRIQUE
“Tá
vendo aquele homem,
ele
não é o diabo.
Pode
ser pior, mas é homem.
Pode
ser filho de Deus, mas é homem.
O
homem é o barro do homem.”
Carla
madeira
Como se torna essa unidade podre chamada
eu?
Experienciando.
Infância, cicatrizes, decepções, sorrisos,
escárnios, paixões…
Quem pode reduzir a uma única palavra?
A vida, não nos concede a dança
interminável do prazer. É preciso, há quem diga, o desmoronamento de tudo.
Bendito seja se fossemos infindáveis baús da benção. Mas… como eu odeio esse
mas.
Sabe, às vezes me questiono se porventura
a cegonha tivesse errado o trajeto onde é que estaria. Seria melhor ou não?
Presumo que sim, pois o deleite de ser e
ter seriam irmãos gêmeos no qual daria as mãos e iriam juntos ao baile do
júbilo.
Saibam que sei tudo, todavia darei-lhes as
migalhas. É preciso, ó, leitor, exercitar o imaginário. Pensem, reflitam e
descubram o que levou aquele elemento até ali.
Ah, leitores… Não somente hoje, mas até
então, lhes digo:
É mulher. Entre os tecidos múltiplos e
linhas diversas ela executa seu ofício com maestria. O reco-reco da máquina de
costura lhe confere uma dose demasiada de alegria e afago. Ao menos não é
empurrada ao abismo visceral de tudo e sente-se, pela primeira vez, humana.
Ela tem os olhos caídos, a feição
carrancuda. Há uma fria casca de amargura que cobre seu corpo. Vejo fome e
sangue. Vejo trauma.
Seu nome? Ah, sim. Firmina dos Santos
Silva. Uma mulher que já foi uma criança. Plasmou-se o quanto pôde e ainda
assim, nada lhe conferiu um outro desfecho.
“Feia” era o substantivo abstrato que
passara a infância e a adolescência inteira escutando. Todos lhe negavam a
condição de digna. Repeliam, com sadismos, sua existência.
Houve tapas e arranhões. Um “cabelo duro,
Bombril, vassoura de piaçava” e por aí vai.
Ansiava em ser vista. Olhada. Desejada. E
tudo isso fermentou-se em seu âmago quando seus olhos repousaram sobre ele:
Gabriel.
Ele era alto, magro, até demais, tinha os
cabelos encaracolados e um sorriso de derreter multidões.
Firmina sabia que não teria a menor
chance, entretanto quem poderia invadir seus sonhos e saber que na calada da
noite sua boca tocava a dele em seus mais discretos sonhos. Voava.
Tinha uma amiga: Penélope. Similarmente
não era lá uma mulher a provocar gozos. Porém, contudo, todavia, tinha seus
encantos.
Diziam-se em todas as bocas as palavras
“safada” e “puta” para descrevê-la. No entanto, tais sentenças não tinham
efeitos severos em seu íntimo.
Era atirada e pronto. Queria beijo,
desejava voluptuosidades, então os buscava de queixo erguido. Gabriel gostou, e
muito, disso. Pena que Firmina foi quem calada, contendo o animal enjaulado
dentro de si, teve que ver tudo. Absolutamente, tudo.
Foi algo um tanto simples, uma língua se
encontrando com a outra e desse pequeno ato a carne arrepiar o sangue
enlouquecer e o caldo suculento, que é o presente da biologia ao homo sapiens,
jazer sobre os corpos curiosos.
Firmina, então, decidiu se afastar de
Penélope. Não tinha estrutura para olhar nos olhos daquela que mesmo sabendo de
sua paixão foi e quebrou o pacto invisível de confidentes.
Além disso, da mesma maneira que vinho não
pode ser água, soube que nunca seria a amiga. Que os olhares atrevidos não
repousariam, jamais, sobre ela. Portanto, se não podia ser, ninguém, nem a
colega, seria.
“Vagabunda”, “meretriz” e “promíscua” não
passavam de meros eufemismos para o que Firmina realmente queria sentenciar
sobre a ex-amiga.
Queria vê-la sofrer. Ser colocada de
escanteio, tirada do centro e saber na carne o que é ser a “feia” da escola.
Mas tinha o coração frágil demais. Havia
vezes que se arrependia de seus feitos, lembrava de ambas e de como eram
felizes.
Se conheceram por aquela coisa genuína dos
corações pueris: “vamos brincar?” “Sim.” E pronto, é o suficiente para a vida
engendrar o afeto e a intimidade.
Em seguida, nos anos por vir, só há
lapidação e confirmações. No entanto, nada nesta vida dói mais que ter o
coração arrancado de você, olhá-lo ser dado aos cães e ter a certeza de que és
indigna.
Logo depois, as águas mudam e vem a
maturidade, porém a ferida ainda sangra, então o reco-reco bálsameia o quanto
pode.
A armadura também ajuda. A muralha
indelével que segrega o eu do externo, a linha imperceptível onde quem ousa
atravessar, morre.
Todavia, o plano não contemplou as
possibilidades e coração é uma terra onde o dono não manda.
Com isso, um belo dia ou um triste dia, em
uma tarde como outra qualquer, Firmina abre a porta de sua casa achando que se
trata de uma simples encomenda e dá de cara com alguém que possui uma altura
significativa, cabelos lindos encaracolados e um sorriso que permanece
derretendo multidões.
Depois de três décadas, desde o dia que
vira o beijo, ali estava ele: pronto, sereno e rompendo as estruturas de um
passado há muito enterrado.
“É a senhora que faz costura? Tô
precisando remendar essa blusa aqui.” “Sou eu sim, moço.” “Que bom. Posso
deixar ela com você, então?” “Pode sim.” “Ótimo. Quando posso voltar para
buscá-la?” “Amanhã mesmo já tá pronto.” “Que bom. Hurm. Que coisa.” “O que?”
“Nada não.” “Pode falar, moço.” “Nada não, é que… Você não me é estranha.”
Essas palavras são suficientes para fazer
o coração-pedra de Firmina, acelerar desordenadamente. É um verdadeiro cavalo
sem freio, pronto para negar qualquer afirmação, só não consegue esconder-se
diante de “Você era a amiga de Penélope na época da escola, não era?”
Pronto. Como se esconde agora? “É. Nós
éramos colegas.” “Hurm.” “Ficou sabendo? Ela foi embora. Se mandou pro Rio.”
“Olha, que coisa.” “Sim.” “Bom, preciso ir agora, moço, pode vir buscar amanhã,
tá.” “Pode deixar.”
E assim o destino conduziu seu plano
arteiro. Quem diria. Sua ex-amiga morando no Rio de Janeiro. Lembrou do
passado. O que ocorreu a outrora inundou o terreiro seco que ela era e irrigou
suas plantas há muito sem vida. Também lhe conferiu um sorriso que originou
lágrimas. Solitárias, mas nostálgicas, até vir a iconografia pintada à ódio.
Na manhã seguinte ele veio. Mais uma vez,
alto, belo e sorridente. Conversaram. Se olharam, flertaram...
Não houve outra, o barranco desmoronou por
inteiro, fragmentou-se gradualmente até se dissolver.
Pensou. Sorrio. Olhou. Revivel. Moderou.
Articulou. Tudo isso, rompendo pedaço por pedaço da armadura feita a ferro e
fogo para blindar-se.
Sentiu, mesmo com um pé atrás, que chegara
a hora de alçar. Queria porque queria mais. Não conteve-se, o fogo rugia, as
lembranças gritavam, os eventos cantavam, precisava de pele.
Concebeu o sêmen na madrugada com o cheiro
dele em outra peça que deixara.
Queria absorver o máximo que podia. A
oportunidade estava ali, pronta, feita, despida e explícita. Quem não pegaria?
Onde reside aquele que não teria coragem de ir? Atravessar a linha e tocar? Era
sua oportunidade. Portanto, pegou, tocou, se lambuzou…
Agarrou com demasiada força o que pôde e
sentiu como sempre idealizou a erupção. Não era mais a “feia” da escola,
finalmente conseguiu, era ela: Penélope.
A vagabunda que provocava as genitálias e
deleitava-se com a fila de pretendentes se prostrando diante de seu poder, de
seu veneno.
Costurou, como nunca antes havia feito,
com nenhuma outra roupa, o rasgo da peça. Queria dar a ele o melhor de si,
mostrar que tinha suas pulcritudes, algo que ele pudesse olhar e admirar.
Entretanto, na manhã seguinte, indo ao
portão, a realidade deu seu nocaute mais certeiro.
Ele veio e ao seu lado havia uma mulher
que aos olhos dão as migalhas do que são os anjos e a qual ouviu Gabriel
conferir o título de “esposa”.
Ela por sua vez, trouxe consigo um vestido
preto lindo, sensual, que concedia-lhe um ar de deusa, e que precisava de um
remendo.
Firmina pegou-o contendo a tremedeira
denunciativa de suas mãos e sorriu perpetuando o enjaulamento do bicho selvagem
que vivia em seu peito.
Em seguida, devolveu a peça a Gabriel e
entrou no quarto com os olhos inundados pelas águas sujas da vida.
Quis gritar, quebrar, matar… Quis dar a si
mesma alguma punição que fosse severa o suficiente para romper com sua faceta
idiota e de uma vez por todas fundir eternamente a armadura a sua alma.
Sabia que precisava ir ao extremo, só
assim para o barro não despencar, não derreter.
Foi ousada para a frente do espelho,
despiu-se com dignidade, colocou o vestido preto sensual e sentiu-se mulher.
No dia seguinte, quando os pombinhos
vieram buscar a roupa, ela fez questão de sair com o vestido e num ato rebelde
começou a gritar aos quatro ventos.
Todos os vizinhos vieram olhar a doida que
rodava a baiana na calça. Então, os anos emergiram, a costura se rasgou,
Penélope bradou e o animal da jaula se soltou.
Com braveza e incorporando a histeria, ela
xingava enquanto rasgava o vestido até tudo ser revelado. E de cada pelo
pubiano o ódio fecundou seu louvor e deu a cara a tapa. “Estão me vendo, eu sou
a promíscua, eu sou a piranha. Agora me olhem, eu ordeno que me olhem, eu quero
ser vista. Deitem seus olhares atrevidos sobre mim, seus, filhos da puta. Eu
quero, eu exijo, ser vista”.
E assim o destino cumpriu sua promessa.
Estava feito, havia chegado ao ato final, quer mais humilhação que isso?
Há quem diga que ela entrou em casa depois
desse acontecimento e nunca mais o som do reco-reco foi ouvido.
Hoje, depois de quarenta anos a casa está
abandonada, completamente decadente.
Os bêbados a transformaram em dormitório,
os jovens em motel, as crianças lá brincam e os mais velhos apenas param e com
o olhar longínquo, pensam.
Mas ninguém, absolutamente ninguém, tem
coragem de, depois das dezenove horas passar por ali, pois um som de máquina de
costura soa melancólico e um tanto distante afirmando que ela veio dar aos
vivos aquilo que eles sempre lhe deram: medo.
Só houve uma vez que uma moça veio, olhou
por um tempo, como se algo a ligasse aquilo tudo, então, timidamente, fiquei
com vontade de perguntar.
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