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quarta-feira, 1 de maio de 2024

A última carta. - Adelaide Dittmers

 



A última carta.

Adelaide Dittmers

 

Suzana segurou o envelope meio amassado, como se tivesse passado por diversas mãos. Um frêmito sacudiu seu corpo.  Há muito tempo não recebia notícias dele. O trabalho humanitário que realizava como médico, em lugares longínquos da África, dificultava o envio de correspondência.

A promessa de voltar ainda não fora cumprida e a dor da separação e o medo de que algo imprevisível e mau acontecesse com ele naquelas terras traiçoeiras a angustiavam.

Com cuidado, rasgou o envelope. Desdobrou a carta muito devagar. Notou a letra trêmula do namorado e sentou-se para ler.  Havia manchas no papel, como se tivesse sido escrita em um lugar improvisado.  Ansiosa e preocupada, iniciou a leitura, mal conseguindo segurar a folha, que parecia estar sendo sacudida por um forte vento.

“ Minha querida,

A saudade que tenho de você é intensa, muito maior do que qualquer dor física, mas o árduo trabalho de tentar ajudar os pobres habitantes deste lugar esquecido sempre me tomou a maioria do tempo. Como você sabe, a fome mata crianças e, quando não é a fome, as epidemias dizimam grande parte da população.  Estamos sempre no centro de um furacão devastador, que consome nossa energia e nos faz, cada vez mais, desacreditar da humanidade dos homens.

Recentemente, comecei a me sentir fraco e febril, sem forças para realizar meu trabalho e esse mal-estar foi aumentando de maneira assustadora, até descobrirmos que fui atingido por uma virose muito perigosa chamada febre de Lassa, que está se espalhando por aqui e matando muita gente.  Minhas chances de recuperação são mínimas. Querem me levar para a capital, mas sei que meu fim está próximo e não tenho forças para enfrentar a viagem, mesmo transportado por um helicóptero.

Apesar de tudo, não me arrependo de ter optado por esta experiência. Tenho consciência de que não poderia salvar o mundo, mas poderia contribuir para aliviar o sofrimento de muita gente. ”

Nesse momento, Suzana levantou a cabeça e trouxe a carta junto ao peito.  Lágrimas molharam o papel. Esse sempre foi o seu pavor, de perdê-lo para o seu idealismo.  Admiração e revolta misturaram-se no seu interior. A interrupção da correspondência tinha acendido um sinal amarelo em sua mente e agora a constatação dos seus temores chegou de maneira abrupta e definitiva.

Com esforço, fixou os olhos no papel, mas as letras dançavam sob suas lágrimas, embaçando sua visão.  Com um gesto brusco, enxugou os olhos:

“Quero lhe dizer que nunca deixei de a amar, mas teria traído a mim mesmo, se não tivesse dedicado uma pequena parcela da minha vida a esta missão. Você sempre esteve presente nos meus pensamentos.

Não chore pela minha partida.  Os bons momentos que dividimos é que têm de ser lembrados. Siga com sua vida". 

Amo você,

Gilberto.

Suzana levantou-se.  Soluços sacudiam seu peito. Não iria mais ver aquele homem corajoso e generoso.  Sentia-se devastada. Foi até a escrivaninha, abriu uma gaveta e retirou um maço de cartas e as apertou no peito, como se quisesse abraçar Gilberto. Colocou-as novamente na escrivaninha.  Pegou novamente a última carta e a colocou dentro da blusa.  Queria estar com ele nos últimos dias de sua vida, mesmo que milhares de quilômetros os separassem.

 

 

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