O "VOZ
DE TROVÃO”
Claudionor Dias da Costa
A nossa infância saudosa com pés descalços e muitas fantasias na cabeça,
passada no rincão perdido do bairro da Zona Norte, deixou lembranças de
lugares, pessoas, emoções e sentimentos que parecem não existir mais.
Corríamos pela rua de terra empinando pipas que desapareciam naquele céu
de brigadeiro como se quiséssemos dominar o universo, pois éramos fortes e
destemidos e nada nos detinha, até o primeiro tombo e o joelho ralado. Aí era
correr para casa e pedir à paciente mãe que fizesse o milagre com suas mãos santas
e cura rápida. E o mercúrio cromo na ferida, esfregado com algodão, só de lembrar,
parece arder até hoje.
Nunca estávamos sozinhos. Sempre
com uma turma de garotos que competiam pela travessura maior. As idades
variavam de sete a doze anos.
Andar de bicicleta, rodar pião, jogar bolinha de gude, soltar balão,
jogar futebol no campinho de terra, guerra de mamonas com estilingue eram
praticados em épocas próprias que dividíamos ao longo do ano, como se
elaborássemos um grande planejamento combinado entre todos e até com as turmas
de outras ruas.
Pela manhã eu, meu irmão
e quase sempre algum amigo vizinho caminhávamos para a escola, a quase dois
quilômetros de distância, da qual gostávamos muito, talvez motivados mais pelo
recreio com os colegas do que pelas aulas. Na volta, entravamos ruidosamente em
casa, gritando:
- Olá mamãe, chegamos!
Era o sinal de que
estávamos com fome e não arredávamos pé até o saboroso almoço sair. No atropelo, praticamente engolíamos a comida,
escutando a recomendação:
— Comam devagar, crianças!
Numa esquina próxima,
entre nossa rua e uma viela estreita, ficava uma residência com vasto terreno,
muro de quase dois metros onde morava o velho Afonso. Devido a nossa pouca
idade ele parecia muito idoso, quando na realidade deveria ter por volta de
cinquenta anos na época.
Esse local era o nosso
preferido pelas frutas apetitosas que roubávamos e pela adrenalina que
percorria nossas veias quando, com a ajuda dos amigos, escalávamos aquele muro
alto e pulávamos para dentro do terreno. Um companheiro sempre ficava em cima
do muro sentado como vigia e, anunciava quando o dono surgia ao fundo vindo em
nossa direção.
Contudo, ficávamos
preocupados com a fúria do Senhor Afonso que ao nos surpreender gritava com sua
voz de trovão:
— Saíam já daí, cambada de moleques safados!
Aquilo nos aterrorizava e
nos obrigava a disparar e pular o muro para a rua. Fugíamos acelerados para longe dali,
levantando poeira e depois de muita energia gasta e ainda suados, sentávamo-nos
na calçada. Dividíamos as mexericas e os famosos caquis chocolate de forma
justa para ninguém ficar fora daquela festa.
Essa aventura se repetia
muitas vezes e a voz de trovão do Senhor Afonso permanecia até em nossos
sonhos. Mas, mesmo com medo não pretendíamos deixar de sentir o aroma gostoso
das mexericas e as mordidas nos caquis. Imperdíveis.
Aquele homem viúvo, morava
sozinho e saia muitas vezes para comprar mantimentos no armazém do bairro. Era
o momento em que o observávamos a boa distância, pois ninguém da turma queria
ser reconhecido por ele.
A famosa voz de trovão,
apelido que usávamos entre nós, causava temor em nossa turma. Contudo, ele era
bem visto e até elogiado pelos adultos demonstrando educação, conversa
inteligente e até solidário contribuindo e participando das obras sociais da
igreja. Essa característica de personalidade era para nós um contraste dado o
temor que tínhamos de seu vozeirão, ameaça real do que poderia nos acontecer, caso
nos alcançasse dentro do terreno dele.
As nossas tardes transcorriam alegres e descompromissadas, recheadas de
brincadeiras e travessuras.
Porém, não esperávamos o que aconteceu no início da noite da quela
primavera quente em nossa família.
Meu pai começou a sentir-se mal, dizendo que estava meio zonzo. Minha
mãe o colocou sentado, deu-lhe um copo com água, procurando acalmá-lo e dizendo
que era cansaço pelo trabalho e que passaria. Contudo, minha tia Alzira, que
morava na casa ao lado e estava conosco preocupada saiu para buscar ajuda.
Correu em direção ao armazém e no caminho passou pelo Sr. Afonso, que dada a
agitação dela, a interrompeu e, sabendo do ocorrido se dispôs a ajudar.
Imediatamente, tirou seu velho carro da garagem e veio para nossa casa com a
tia.
Entraram em casa
apressados e foram atender meu pai.
Eu e meu irmão ficamos
num canto, calados observando tudo preocupados com o pai e também com medo pela
presença do “Voz de Trovão” tão perto.
Ele somente olhou para nós com pequeno sorriso, o que nos deixou
constrangidos e ruborizados, e de imediato passou a atender meu pai, fazendo
algumas perguntas para nossa mãe e tia Alzira.
Resolveram levar nosso
pai para o hospital. Foi a sorte! Ou melhor, a providência divina, porque
durante o percurso ele começou a sentir dores no peito e a reclamar muito.
Chegaram até bem rápido, prontamente ele foi atendido. Estava tendo um infarto.
Algumas horas depois ele saia da cirurgia.
Todo este ocorrido foi acompanhado e contou com a ajuda do “Voz do
Trovão”, que dias depois visitava nossa casa para incentivar a recuperação de
nosso pai. Passou a ter relacionamento mais próximo com nossa família.
A disposição, energia e grande solidariedade demonstrada por aquele
homem fez com que passássemos a admirá-lo e comentávamos isto com todos. Nossa turma
da rua passou a respeitar o Sr. Afonso e não entravamos mais no seu terreno.
Para surpresa nossa o que aumentou mais ainda o conceito daquele
bom homem conosco, foi que ele nos chamava em seu portão e distribuía aquelas
deliciosas frutas para todos os meninos.
O “Voz de Trovão” passou a ser um apelido de força e amizade.
Passados vinte anos quando lembramos,
de sua imagem e da voz grave que virou um símbolo, mesmo após ter nos deixado
nesta vida, sentimos saudades e certo arrependimento pelas travessuras que
tiravam seu sossego.
E, até hoje quando ouvimos um trovão paramos, olhamos para o céu e nosso
pensamento vai até ele.
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