Coisas da vida
Hirtis
Lazarin
EU só tinha quinze anos...
Cheguei ao mundo em meio a uma grande
festa. Mamãe já tinha perdido a
esperança de ter o segundo filho. Dez
anos me separam do meu irmão Leonardo.
Confesso. Fui privilegiada pelos deuses. Uma família completa, repleta de amor.
Cresci respirando livros e telas
pintadas.
Meu pai era um pouco dos livros que
leu e muito dos textos que escreveu.
Culto e sistemático. Não dispensava
terno, gravata e sapatos de croco.
Herdou dos meus avôs a mais completa
livraria da nossa cidade. Tornou-se um
mecenas literário. Todo ano realizava
dois concursos. Um júri escolhia o
melhor texto, papai editava e lançava no mercado. Oportunidade de ouro aos novos talentos.
Mamãe, artista plástica. Simples e linda numa calça jeans desbotada e
camiseta. Generosa e sensível. Sentia além dos sentidos, enxergava além do
horizonte, voava além de suas asas Era
o equilíbrio entre a sofisticação e a simplicidade.
Conjugava o verbo pintar tão bem
quanto outros, até incompatíveis: limpar, passar roupa, organizar.
Administrava nossa casa de um jeito
só dela. Sabia onde estava guardada
aquela tesourinha que foi da vovó, sabia que o estoque de arroz estava no fim,
que na camisa de linho branca do papai faltava um botão, que a torneira da pia
pingava sem parar, e assim vai...
Se percebesse uma nuvem negra e
pesada ameaçando a paz da família, colocava na vitrola de estimação o
"long play" das valsas vienenses, laçava o seu homem até a sala
espaçosa e ali rodopiavam até cansar.
Mamãe tinha seu ateliê no imenso
quintal de casa, projetado entre flores e árvores frutíferas. O vento cobria o chão com pétalas e frutos
maduros. Um paraíso às borboletas e
passarinhos. Um silêncio perfumado,
fresco, transgredido só pelo canto dos
bem-te-vis.
Com facilidade e muita arte,
reproduzia em telas sutilezas da alma feminina.
Não se importava se a modelo era magra ou gorda, alta ou baixa, bonita
ou feia. Você olhava pra tela e aquele
rosto, aqueles olhos já lhe contavam se era tristeza ou esperança, frustração
ou felicidade, solidão ou sabedoria o que sentiam.
As coisas lá em casa começaram a
mudar...E de uma hora pra outra já não tínhamos mais um lar.
E eu só tinha quinze anos...
Já havia dias que o ateliê estava
fechado. Mamãe acordava cada dia mais
tarde e papai saía cada dia mais cedo.
Aos poucos foi rareando o nosso café
da manhã cheio de bom dia, de pãezinhos quentes saídos do forno, de sorrisos,
de língua queimada com o leite quente além da conta, dos conselhos, da conversa
fiada. Até o dia em que cada um fazia
tudo do seu jeito.
Que saudade daquela mesa cheia de
nós.
Eu e o Leonardo não sabíamos porque
estava acontecendo aquilo. Nunca vi os
dois discutindo nem brigando. Nenhuma
ofensa. Nenhuma frase em tom mais alto.
Apenas poucas palavras. Tentei
conversar com a mamãe várias vezes. Não
deu.
Lembro-me bem como se fosse
agora. Acordei disposta e abri a
cortina. Lá fora o sol já estava bem
aceso. Vi mamãe com o esguicho na
mão, parada junto às rosas príncipe
negro, preciosidade do seu jardim. São
rosas com pétalas aveludadas num tom vinho tinto seco.
Espreitei-a por um bom tempo. A calça jeans, agora desengonçada, escondia
um corpo franzino. Ela não saía do
lugar. A terra já não mais absorvia
tanta água. Transbordou, invadiu o corredor de piso frio, ultrapassou
a calçada e escorria junto ao meio fio.
As roseiras, hastes frágeis,
curvaram-se lentamente até desfalecer sobre a terra encharcada.
Ouvi o ranger da porta se
abrindo. Papai apareceu impecável como
sempre. Carregava duas malas. Passou pelas costas de mamãe, fingiu não
vê-la e esquivou-se da água empossada.
Saiu a passos largos e rápidos, sem olhar pra trás.
Naquele momento entendi a letra da
música de John Lennon: "A vida é
fácil de olhos fechados".
E eu só tinha quinze anos...
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