Carta de Gerusa
Rejane Martins
Começo este
relato, num rompante de quase desespero. Forcei o afastamento de todos
pensamentos que invadem minha mente. Dirigi-me à escrivaninha, desembainhei uma
caneta e com ela firo ferozmente a folha de papel à minha frente. Estabeleço o
início do testemunho simultaneamente com o amanhecer.
É certo que o
dia a pouco iniciado será irritantemente interminável, afinal hoje completo 30
anos. Tentei retardar ao máximo o meu despertar, mas logo o som insistente do
telefone, agindo como um cruel carrasco, obrigou-me a atendê-lo.
Ergui o rosto
após lavá-lo, e assustei-me quando meus olhos se cruzaram com o seu reflexo no
espelho. Não havia muitas rugas, como dizem os mais condescendentes “apenas linhas de expressão”, mas era a
falta de brilho no olhar o que mais me incomodava.
Na tentativa de camufla-lo,
optei por radicalizar e escolhi mentalmente uma roupa descolada para vestir
neste dia. Melancolicamente constatei que minhas vestimentas compartilhavam da
opacidade interior.
Por onde andará aquela
jovem que até ontem mesmo habitava dentro de mim? Aquela que sempre desfilava
com algum vestido florido, um batom vermelho, uma sandália de salto alto com algum
brilho. Em vão, vasculhei mentalmente algum esconderijo dentro de casa que
abrigasse alguns destes objetos cheios de vida ansioso pelo seu resgate, e
assim cumprir a sua mais nova missão que era a de suprir estas novas carências.
Em meio a este
turbilhão de emoções, a única certeza que me acompanha é a intenção de imortalizar
toda a minha indignação e resiliência, e renascer tal qual uma fênix.
Varro para longe
as cinzas que encobre aquela chama quase extinta que abriga o verdadeiro eu desta
Gerusa. Mas, ao mesmo tempo, temo que a explosão de vida aflorada em mim nesta
manhã, possa cair no esquecimento e perder sua intensidade com o passar dos
dias.
Como guardiã do
brilho no olhar reacendido neste exato momento, deposito esta carta, juntamente
com uma foto atual, em uma fenda na parede do porão. No futuro ela será o
testemunho fiel da forte determinação ocorrida na Gerusa, a anciã precoce.
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