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quarta-feira, 4 de junho de 2025

A FORÇA DE JUSSARA - Dinah Ribeiro de Amorim

 



A FORÇA DE JUSSARA

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Vivia lá pelos confins do sertão, estado de Mato Grosso, longe, muito longe da civilização. Uma região de ranchos pobres, distantes uns dos outros, de pouca comunicação.

Resistiam, simplesmente, habituados à pobreza. Nasciam, cresciam, envelheciam e morriam. Quase não se comunicam e poucos ficam sabendo, uns dos outros.

Jussara era uma idosa de noventa e dois anos, última geração da família Ramos, de quatro representantes: pai, mãe, irmão Joca e ela. Todos falecidos, restou ela. Sozinha, acompanhada do cão Zito, fazia ainda a limpeza das terras, cuidava da alimentação, das poucas ervas que tinha e buscava água diariamente no lago existente, que se enchia fartamente, na temporada das chuvas.

Jussara mesmo não entendia como ainda sobrevivia, tão velha já, somente com o cão Zito como companhia. Ainda tinha forças para arar a terra, varrer o chão, acender o fogo e pegar água todos os dias, no pequeno ribeirão.

Usava chinelas de dedo ou andava descalça mesmo, quando o mato não ficava muito crescido. Ainda o podava, ocasionalmente.

Sentia, às vezes, um aperto, uma espécie de pontada no peito, que a fazia pressentir a hora da partida, mas ia conseguindo passar os dias, por enquanto. A única preocupação era o cão Zito, quem cuidaria dele?

Os vizinhos já tinham seus problemas e também não os conheciam para solicitar algum favor. Deveriam ser velhos, como ela.

Numa manhã, quando ia até o riacho pegar água com o balde, encontra um homem ainda jovem, barbudo, rosto estranho, caído por perto. Estava meio sonolento, acho que desmaiou, pensa ela.

Joga um pouco d’água em seu rosto e ele se mexe, olhando-a, assustado.

Ajuda-o a se levantar e não pergunta nada. Simplesmente, leva-o para casa. Repara que está com leves ferimentos, mas deve ter se machucado com as plantas, pensa.

Cuida dos ferimentos e ele a olha, espantado, com olhar de medo ou astúcia. Também não pergunta nada, vai aceitando os cuidados de Jussara e sua desconfiança, passando. Percebe logo que é uma mulher velha e sozinha, dona daquelas paragens longínquas, esquecida do mundo.

Quando começa a falar, diz-lhe chamar-se Lúcio, foragido de uns inimigos que queriam matá-lo, fugiu da capital e veio parar ali, sem nem saber como? Ignora o lugar.

Jussara, com seu jeito calmo, sem malícia ou desconfiança, vai cuidando de Lúcio, alimentando-o com o pouco que tem, cuida do homem como um pobre coitado, não se importa muito como veio dar naquelas paragens. Sua idade avançada a impede de maquinações mentais ou grandes curiosidades. Acredita no seu trabalho e no que faz, melhorar a saúde do homem estranho. Se der certo e ele quiser ficar por ali, melhor para ela, um braço forte a mais para lhe ajudar com a terra, com seus últimos anos, se é que ainda os terá.

Final de vida, sem sonhos futuros, nada mais a espanta nem a ilude como antes.

Lúcio, rapaz forte e ainda com boa saúde, lentamente se refaz e acha que deve ajudar a velha, em retribuição. Não era dado a agradecimentos nem a bondades, mas admira como uma mulher tão velha, vive sozinha e ainda cuida de tanta coisa. Sabe que esse trabalho com campo, terras, plantações é difícil para qualquer homem. Fugiu disso quando mais jovem, preferindo as jogatinas e bandidagens das cidades maiores.

Olhando para Jussara, percebe logo as dificuldades que encontra e já presume que o seu fim está próximo. Não demora muito e a velha morre, pensa, com calma. Dó não sente, é incapaz de sentir piedade, desde que cresceu, mas um certo agradecimento lhe deve.

Passam-se dias, algum mês talvez, não registram nada de calendário, vivendo apenas através das mudanças da luz do sol, quando nasce é dia, quando se põe, anoitece. E assim passa o tempo, os dois humanos, uma velha e um rapaz novo, sem muita conversa, fazendo apenas o necessário.

Jussara não lhe faz muita pergunta, também não se interessa, admira-se somente de Lúcio não fugir dali, querer continuar naquele lugar, ajudando-a nos afazeres mais pesados. Parece estar gostando do local ou tem alguma ideia nova. Não perde muito tempo pensando nisso. Faz tempo que o presente, o trabalho do dia, preenche os seus pensamentos.

Zito, o cão amigo, que sempre a acompanha, deu agora para gostar de Lúcio, não o deixa só. Isso a entristece um pouco. Sente falta do único companheiro com quem conversava.

Numa manhã, de sol alto, quando acordam para a lida do dia, Jussara pega o balde e vai ao riacho buscar água. Não percebe que Lúcio, acompanhado de Zito, vai atrás dela, com outro balde. Abaixa-se com dificuldade à beira d’água e vê o cão e o rosto do rapaz refletido na água, atrás dela. Vira-se lentamente e recebe o balde de Lúcio na cabeça, empurrando-a para a água. Assustada, debate-se lentamente, o cão Zito late forte, mas ninguém a socorre. Naquelas paragens, ninguém ouve nada. Morre afogada, em poucos instantes, a idosa Jussara, antes da hora para ela reservada, com a ambição de Lúcio, rapaz educado para ser mal, viver somente para a sorte e ambição.

É preparado um funeral, mas Lúcio até se arrepende do preparo. Poucos visitantes aparecem e se interessam em saber como foi. Em consideração à ajuda que teve, enterra a idosa Jussara perto dos seus familiares, dizendo aos que o interrogam que caiu na água pela força do balde.

Lúcio continuou a morar ali em companhia de Zito, já se sentindo o novo dono das terras. E quem irá contestar isso?

 

 

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