A FORÇA DE JUSSARA
Dinah Ribeiro de Amorim
Vivia lá pelos confins do
sertão, estado de Mato Grosso, longe, muito longe da civilização. Uma região de
ranchos pobres, distantes uns dos outros, de pouca comunicação.
Resistiam, simplesmente,
habituados à pobreza. Nasciam, cresciam, envelheciam e morriam. Quase não se
comunicam e poucos ficam sabendo, uns dos outros.
Jussara era uma idosa de
noventa e dois anos, última geração da família Ramos, de quatro representantes:
pai, mãe, irmão Joca e ela. Todos falecidos, restou ela. Sozinha, acompanhada
do cão Zito, fazia ainda a limpeza das terras, cuidava da alimentação, das
poucas ervas que tinha e buscava água diariamente no lago existente, que se
enchia fartamente, na temporada das chuvas.
Jussara mesmo não
entendia como ainda sobrevivia, tão velha já, somente com o cão Zito como
companhia. Ainda tinha forças para arar a terra, varrer o chão, acender o fogo
e pegar água todos os dias, no pequeno ribeirão.
Usava chinelas de dedo ou
andava descalça mesmo, quando o mato não ficava muito crescido. Ainda o podava,
ocasionalmente.
Sentia, às vezes, um
aperto, uma espécie de pontada no peito, que a fazia pressentir a hora da
partida, mas ia conseguindo passar os dias, por enquanto. A única preocupação
era o cão Zito, quem cuidaria dele?
Os vizinhos já tinham
seus problemas e também não os conheciam para solicitar algum favor. Deveriam
ser velhos, como ela.
Numa manhã, quando ia até
o riacho pegar água com o balde, encontra um homem ainda jovem, barbudo, rosto
estranho, caído por perto. Estava meio sonolento, acho que desmaiou, pensa ela.
Joga um pouco d’água em
seu rosto e ele se mexe, olhando-a, assustado.
Ajuda-o a se levantar e
não pergunta nada. Simplesmente, leva-o para casa. Repara que está com leves
ferimentos, mas deve ter se machucado com as plantas, pensa.
Cuida dos ferimentos e
ele a olha, espantado, com olhar de medo ou astúcia. Também não pergunta nada,
vai aceitando os cuidados de Jussara e sua desconfiança, passando. Percebe logo
que é uma mulher velha e sozinha, dona daquelas paragens longínquas, esquecida
do mundo.
Quando começa a falar,
diz-lhe chamar-se Lúcio, foragido de uns inimigos que queriam matá-lo, fugiu da
capital e veio parar ali, sem nem saber como? Ignora o lugar.
Jussara, com seu jeito
calmo, sem malícia ou desconfiança, vai cuidando de Lúcio, alimentando-o com o
pouco que tem, cuida do homem como um pobre coitado, não se importa muito como
veio dar naquelas paragens. Sua idade avançada a impede de maquinações mentais
ou grandes curiosidades. Acredita no seu trabalho e no que faz, melhorar a
saúde do homem estranho. Se der certo e ele quiser ficar por ali, melhor para
ela, um braço forte a mais para lhe ajudar com a terra, com seus últimos anos,
se é que ainda os terá.
Final de vida, sem sonhos
futuros, nada mais a espanta nem a ilude como antes.
Lúcio, rapaz forte e
ainda com boa saúde, lentamente se refaz e acha que deve ajudar a velha, em
retribuição. Não era dado a agradecimentos nem a bondades, mas admira como uma
mulher tão velha, vive sozinha e ainda cuida de tanta coisa. Sabe que esse trabalho
com campo, terras, plantações é difícil para qualquer homem. Fugiu disso quando
mais jovem, preferindo as jogatinas e bandidagens das cidades maiores.
Olhando para Jussara,
percebe logo as dificuldades que encontra e já presume que o seu fim está
próximo. Não demora muito e a velha morre, pensa, com calma. Dó não sente, é
incapaz de sentir piedade, desde que cresceu, mas um certo agradecimento lhe
deve.
Passam-se dias, algum mês
talvez, não registram nada de calendário, vivendo apenas através das mudanças
da luz do sol, quando nasce é dia, quando se põe, anoitece. E assim passa o
tempo, os dois humanos, uma velha e um rapaz novo, sem muita conversa, fazendo
apenas o necessário.
Jussara não lhe faz muita
pergunta, também não se interessa, admira-se somente de Lúcio não fugir dali,
querer continuar naquele lugar, ajudando-a nos afazeres mais pesados. Parece
estar gostando do local ou tem alguma ideia nova. Não perde muito tempo pensando
nisso. Faz tempo que o presente, o trabalho do dia, preenche os seus
pensamentos.
Zito, o cão amigo, que
sempre a acompanha, deu agora para gostar de Lúcio, não o deixa só. Isso a
entristece um pouco. Sente falta do único companheiro com quem conversava.
Numa manhã, de sol alto,
quando acordam para a lida do dia, Jussara pega o balde e vai ao riacho buscar
água. Não percebe que Lúcio, acompanhado de Zito, vai atrás dela, com outro
balde. Abaixa-se com dificuldade à beira d’água e vê o cão e o rosto do rapaz
refletido na água, atrás dela. Vira-se lentamente e recebe o balde de Lúcio na
cabeça, empurrando-a para a água. Assustada, debate-se lentamente, o cão Zito
late forte, mas ninguém a socorre. Naquelas paragens, ninguém ouve nada. Morre
afogada, em poucos instantes, a idosa Jussara, antes da hora para ela
reservada, com a ambição de Lúcio, rapaz educado para ser mal, viver somente
para a sorte e ambição.
É preparado um funeral,
mas Lúcio até se arrepende do preparo. Poucos visitantes aparecem e se
interessam em saber como foi. Em consideração à ajuda que teve, enterra a idosa
Jussara perto dos seus familiares, dizendo aos que o interrogam que caiu na água
pela força do balde.
Lúcio continuou a morar
ali em companhia de Zito, já se sentindo o novo dono das terras. E quem irá
contestar isso?
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