Último Pileque
Helio Salema
Ana Helena, minha vizinha e amiga de infância, na década de 50, me
envia um convite para a festa de sua formatura de Segundo Grau. Dia 04 de
dezembro de 1965. Fiquei muito contente e emocionado. Quase 10 anos passaram e
ela ainda se lembrou de mim. Sempre brincávamos com as outras crianças na rua.
Na sua casa quando éramos só nós os disponíveis naquele momento. Sua mãe sempre
fazia pipoca, além de outras guloseimas.
Até que seu pai, que era bancário, foi transferido para outra cidade,
também no interior do Estado. Depois poucas vezes eu a vi. Lembro de eles terem
vindo no casamento de um amigo do seu pai. Eles foram até lá em casa e conversamos
por alguns minutos. Ela já demonstrava feições bem diferentes, já era uma
mocinha. Não sei se seria capaz de reconhecê-la agora.
O melhor meio de transporte, para quem não tinha automóvel, era o trem
Maria Fumaça, que ligava várias cidades naquela época. Às 20:30 horas peguei o
trem, depois de me arrumar, impecavelmente. Terno, gravata e camisa social
branca, além do tradicional sapato preto.
Cheguei ao local da festa pouco depois das 22. Havia poucas pessoas e
ninguém conhecido.
Por algum tempo fiquei preocupado, olhando atentamente para ver se
reconhecia minha amiga. Muitas pessoas chegando juntas, quando me assustei com
ela, que pelas minhas costas chegava e me chamou pelo nome. Virei e a vi junto
com seus pais e um rapaz que ela me apresentou como seu noivo. Todos ficaram
surpresos e contentes com a minha presença. A mãe dela disse que foi a primeira
pessoa a me reconhecer.
A festa foi uma maravilha. A dança da valsa, em que ela primeiro
dançou com o pai, depois com o noivo. Convidou-me para dançar a última. Como
não podia deixar de acontecer. Acabou ao som de um carnaval sensacional. Era
quase 5 cinco horas quando me despedi deles. Também de algumas amigas dela que
me proporcionaram horas de agradáveis companhias, inclusive a irmã do noivo.
Saí apressado em direção à estação, mas perdi o trem. No quadro de
horário indicava que o próximo sairia às 8 horas. Mas o pior era o vento frio.
Naquela serra parecia que o verão dera lugar ao retorno do inverno. Olhei em
volta e não vi nenhum comércio aberto, nem boteco.
Fiquei caminhando na plataforma da estação, tentando me aquecer, sem
solução.
Algumas pessoas que, provavelmente estavam na festa, vinham caminhando
pelo meio da rua. Cantavam e riam como não querendo ver a realidade do fim da
festa. Notei que um rapaz carregava uma garrafa que parecia ser de vodca. Fui
ao encontro deles. A garrafa estava pelo meio.
Perguntei se ele me vendia, pois estava com muito frio. Ele riu e
disse que custava cem vezes o que eu tinha no bolso. Respondi que mesmo que
tivesse seria pouco pela minha necessidade e esperança de aquecer. Ele tomou
uma golada, riu e me passou a garrafa. Saiu dizendo:
— Bom proveito.
Agradeci, mas creio que ele nem ouviu. Voltei para a estação e
procurei um lugar mais afastado para ficar sem ser perturbado. Encontrei um
banco ao lado do prédio, onde poderia ficar longe dos curiosos. Bem acomodado,
em pequenos goles fui aos poucos espantando o frio do meu corpo. Já um pouco
aquecido e cansado, senti a presença do sono. Não tive dúvidas. Tomei uma dose
dupla ou tripla, deitei no banco, com preocupação de proteger bem a garrafa já
quase vazia, para não desperdiçar o restante que ainda poderia ser útil. Também
evitar que alguém tentasse pegá-la.
Os raios de um sol maravilhoso, que tantas vezes curti e me deram a
gostosa sensação de que nascera um novo e promissor dia o sentia em todo o meu
corpo, só não conseguia abrir os olhos. A boca amargava, o estômago parecia
embrulhado em papéis sujos de todas as porcarias que havia no mundo. Numa
rapidez de uma vaca estourada, começaram a sair. Firmei as mãos no banco.
Talvez tenha perdido os sentidos. Lembro de que olhando para o chão vi a
garrafa, intacta. Menos mal. Ninguém por perto. Melhor ainda. Alguns respingos
de sujeira nas mangas do paletó.
Levantei e fui lentamente, em direção ao banheiro. Alguém entrava.
Esperei até que saísse. Chegando à porta certifiquei de que não havia outra
pessoa.
Rapidamente, lavei as mãos e o rosto. Mesmo não tendo espelho, tentei
ajeitar o cabelo. Consegui limpar os respingos do paletó.
Fui andando até o bar da estação. Preocupado com minha aparência. Não
deveria estar ruim, pois não houve nenhuma reação desagradável da parte da moça
que me atendeu. Bebi a água aos poucos. O relógio na parede marcava 08:40.
Perdi o trem outra vez. O próximo só às 13:40h. Agora não adiantava ter pressa.
Sentindo que passaria ali uma boa parte do domingo, saí e fui caminhando. O
estômago parecia estar recuperado. Pois solicitava algo, desta vez, mais
adequado, para satisfazê-lo. Não demorei a ver um bar que parecia agradável e
confortável, tinha mesas com cadeiras. Depois de um misto quente com Coca-Cola
degustados, com muita calma, me senti vivo e bem-disposto novamente.
Informaram-me que antes do trem só indo para a estrada tentar uma carona. Coisa
que nunca tinha feito, parece que isso demonstrei, ao ouvir que não era
difícil. Com sorte poderia conseguir em pouco tempo. A palavra “Sorte” me
desanimou um bocado. Lembrei que estava sem escovar os dentes há muitas horas.
Talvez ainda com um pouco de bafo da vodca. Comprei um pacote de biscoitos que
poderia ser útil na viagem e um drops Dulcora para melhorar a boca. Como
ninguém sugeriu outra solução, agradeci desejando um bom domingo a todos.
Responderam com boa viagem, sem mencionar a palavra “Sorte”.
Na estrada, carros e caminhões a toda hora. Poucos pararam, mas não
passavam pela minha cidade. Vi ao longe uma Rural Willys verde e branca, assim
que acenei parecia que ia diminuindo a velocidade. Apreensivo fui ficando cada
vez mais à medida que se aproximava.
Um casal na frente e alguém no banco de trás que não consegui
identificar. Passou por mim e parou alguns metros à frente. Fui pelo lado do
motorista e perguntei se passava pela minha cidade e se poderia me dar uma
carona. Muito sério respondeu que sim e que poderia entrar atrás. Por um
instante fiquei inseguro, não sei porquê. Foi quando ele repetiu que podia
entrar. Então abri a porta com um pouco de dificuldade, era a primeira vez que
abria a porta traseira de uma Rural. Ao entrar percebi que no outro canto havia
uma moça. Cumprimentei e pedi licença, respondeu sem me olhar. Tranquei a
porta.
Por alguns minutos a viagem transcorreu em silêncio. Quebrado
pela senhora que me perguntou seu eu fui à festa de formatura. Respondi que
sim. Bateu um medo enorme. E se perguntassem o porquê eu não tinha ido
nos dois trens que passaram. Pensei em várias respostas que não me
comprometessem.
Resolvi falar que fui convidado por uma antiga amiga, Ana Helena. A
senhora virou-se para trás e perguntou à filha se a conhecia, que respondeu,
afirmativamente.
Surpreendentemente, olhou para mim e disse que ano que vem será a
formatura dela. Pensei “ meu Deus, tudo de novo? Não. Nesta cidade não quero
voltar nunca mais. ”
Meu silêncio foi interrompido quando ela perguntou se eu gostava de
festa. Respondi que sim.
Ela me olhando descreveu em detalhes a festa que há anos ela ajuda.
Seria no próximo sábado. O intuito é arrecadar para compra de brinquedos para o
Natal de crianças pobres.
Reparei nos olhos azuis tão lindos como o mar que eu tanto admiro
quando vou à praia. Sempre de frente para ela lembrei do drops Dulcora.
Ao oferecê-lo, ela aceitou com um sorriso que provocou um tsunami em mim. Todo
o meu corpo, instintivamente, reagiu ao esplendor daquela boca, que como uma
obra de arte, contrastava o vermelho dos lábios e a pele branca.
A voz como o som de um violino, suave e magistralmente tocado. Cada
palavra que penetrava nos meus ouvidos atingia a alma jovem e esperançosa, que
algumas horas antes se sentia no purgatório.
Creio que o pai ouvindo nossa conversa transformou a Rural num
helicóptero, que num instante aterrissou na entrada de minha cidade. Despedi
dos pais dela agradecendo pela carona. Ao me despedir, DELA, senti como sua mão
suave estava bastante aquecida. Bem baixinho perguntei:
— Seu nome?
—Helena. E o seu?
— Cláudio.
Sem pensar disse:
— Até sábado.
Com um sorriso e dois olhos fumegantes! Respondeu.
— Sim, até sábado.
Como um cachorro que sabe que vai ser preso, mesmo assim, segue a
direção que o dono manda, peguei o trem pela manhã. Quando aproximava da
estação vi a praça com várias barracas.
Desci e fui naquela direção. Passei por duas ou três, logo a vi dentro
de uma delas. Por instinto ou transmissão de sentimento ela se vira e ao me ver
explode num sorriso. Eu não me continha de tanta emoção. A amiga mais próxima
dela percebe e olha na minha direção, cochicha no ouvido dela e sai sorrindo.
Dando a entender que sabia o que estava para acontecer.
Conversamos por poucos minutos, quando aquela amiga chega e pede para
ela ir até uma certa casa pegar algo. Ao chegarmos na tal casa ela entrou.
Quando saiu disse-me que já tinham levado. Fiquei desconfiado de que era uma
boa armação para ficarmos sós.
Na volta ao passarmos perto da praça a convidei para sentarmos.
Aceitou e deixou escapar um sutil sorriso. Pronto, a desconfiança cedeu lugar a
certeza. Falamos sobre como foi a nossa semana. Ansiedade para saber se iríamos
nos encontrar dominou a conversa. Quando ela disse que naquela noite ficou
muito tempo acordada pensando em mim, não resisti. As bocas silenciosamente se
comunicaram. O mundo parou. A vida parou. Aliás, tudo parou.
Um novo mundo, uma nova vida e uma nova história começava.
Hoje é dia de Finados, como sempre nos últimos anos. Voltei àquela
cidade.
Desta vez meu filho estava junto. Não por vontade, mas pela minha
insistência e a presença da namorada, que conseguiu convencê-lo. Fomos ao
cemitério, como de praxe e não poderíamos deixar de ir. Na saída sugeri darmos
uma volta para Stefanni conhecer a tão falada pequena, mas cativante cidade a
que eu sempre me referia.
Parei o carro na praça, descemos e vimos que estava bem cuidada. Ao
passarmos por um conhecido banco, parei e falei:
— Meu filho, aqui eu e sua mãe começamos a namorar.
Todos riram. Minha esposa aproveitou para sugerir que fôssemos também
à igreja em que casamos. Lembrou que pretendemos fazer uma festa no próximo
ano, quando completaremos 25 anos de casados.
A igreja estava muito bem conservada. Passamos pelo colégio que embora
reformado, com aparência de novo, minha esposa não gostou. Para ela a quadra,
embora necessária, prejudicou a beleza do prédio. Por sugestão minha fomos até
a estação do trem. Desativada há muitos anos, mesmo assim continuava como eu
sempre a conheci. Stefanni ficou fascinada com a “janelinha”, segundo ela, onde
eram vendidos os bilhetes. Conduzi todos ao outro lado.
Chegando foi a minha vez de ficar surpreso e fascinado. Aquele banco
ainda estava lá. Parecia que fora pintado há poucos dias.
Decidi contar com todos os detalhes o que ocorreu ali. Meu segredo bem
guardado, só então revelado. Minha esposa ficou espantada tanto quanto os
demais. Jamais pensaria que coisa semelhante poderia ter ocorrido. Completei
dizendo que tudo aconteceu poucas horas antes de conhecer o grande amor da
minha vida. Resolvi revelar outro segredo. Naquele dia quando cheguei em casa.
“Jurei que esse seria meu último pileque, pois com certeza o raio da
sorte não cai duas vezes na mesma pessoa”
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