RECORDAÇÕES
Hirtis
Lazarin
O porão de casa estava abarrotado de
caixas com tudo que você possa imaginar.
Caixas com livros que já li, caixas com livros que pretendo ler, com
fotos que só pararam de crescer por conta da tecnologia que as guarda nas
nuvens. E a maior e a mais pesada de
todas, a que abriga o "GOOGLE"
de antigamente, as famosas enciclopédias.
Mexendo aqui e acolá, descobri no
meio de uma pilha de revistas antigas, encostadas num armário, algo me chamou a
atenção. Era um antigo diário. Lembro-me bem. Comecei a escrever aos treze anos e só parei
aos vinte quando, então, me casei. Confesso, emocionei-me a ponto de não ter
vergonha de chorar. Estava amarelado,
judiado por tantas viagens que já fizera.
Não sei como ainda existia.
Representava um pedacinho da minha vida. Um período em que tínhamos horário pra voltar
pra casa e obedecíamos sem nenhum drama, coisas bobas não nos frustravam, não
precisávamos beber nem se drogar pra vida ter graça e beleza. Alimentação saudável? Comíamos de tudo,
ninguém tinha excesso de peso e nem conhecíamos a palavra celulite.
Ter um diário era o mesmo que ter um
amigo confiabilíssimo. Nele a gente
registrava o que queria, ele ouvia silencioso
e não opinava. Aceitava-nos do jeitinho
que a gente era.
Dei uma folheada cuidadosa pra não
danificá-lo.
Vou ler pra você e pra mim também uma
das páginas iniciais. Já se foram tantos
anos...
"Meu querido diário,
acho que você já se cansou de ouvir sempre as mesmas reclamações: que eu não gosto de ser tão magra, de ter
pernas finas e compridas e que meu corpo franzino dança dentro de uma calça de
cintura baixa e boca de sino. É que eu
me acho bem parecida com a "Olívia Palito namorada do Popeye". Ela teve sorte de arrumar um namorado".
Virei várias folhas e a página dez chamou-me a
atenção. O desenho de dois corações que
se cruzavam pintados de vermelho paixão.
"Meu diário querido, estou
feliz e tenho duas coisas pra contar:
a primeira é que o meu corpo está mudando. Minhas formas estão se
arredondando e já preenchem aquela calça comprida que eu odiava usar. Está na moda e minhas amigas usam... Estou vestindo meu primeiro soutien. É lindo,
branco de rendinhas. Minhas amigas já
se cansaram de tanto usar e eu só tinha no peito duas jabuticabas
insignificantes.
A segunda coisa é um segredo
secretíssimo. Sabe o Celso, aquele
garoto que, às vezes, vem estudar português comigo e que já fizemos algumas
coisas juntos? Tomar sorvete no bar do
Dante, comprar sonho na padaria do Biscaro, andar de bicicleta. Lembra?
Fiz até greve de fome pra ganhar minha Caloi Ceci...
Quando ele vai embora, sinto sua
falta. Gostaria que ficasse mais tempo
comigo. Fecho os olhos, inspiro e até
sinto o cheiro dele. Quando sua mão
toca-me sem querer, vem um friozinho delicioso. Se
conversa com outras meninas, tenho raiva e falta de ar. Ando imaginando cada coisa... Vejo-me abraçada a ele, passando a mão no seu
rosto, sorrindo aquele "sorriso-coração-sai-pulando". Escuto até as batidas descompassadas do meu
coração. E aí vem uma vontade enorme de
juntar minha boca na boca dele, sentir o gosto de sua saliva, esquecer-me de
tudo presa naqueles braços fortes.
Sabe diário, tô atormentada porque
essa coisa tá aumentando a cada dia. Não
sei o que fazer. Será que tô
apaixonada? Só sei que é uma
sensação deliciosa. Quando eu souber, conto pra você. Meu Deus, já é meia-noite. Escutei os passos arrastando chinelos do meu
pai. Ele viu minhas luzes acessas. Vem
bronca na certa. Tchau".
É gente, a vida é uma viagem num trem bala. Curta pra uns, mais longa pra outros. Uma viagem em que almas se encontram, se
esbarram, se unem, se esquecem. A vida é
o nosso maior presente. Ela nos chega em
pequenos pacotes, ora embrulhados com brilho, ora manchados de lágrimas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
DEIXE AQUI UMA MENSAGEM PARA O AUTOR DESTE TEXTO - NÃO ESQUEÇA DE ASSINAR SEU COMENTÁRIO. O AUTOR AGRADECE.