O diário.
Amora
Hábito
comum havia antigamente, fazer diário. Era uma forma de expressar sentimentos,
comunicar-se, registrar momentos importantes e inesquecíveis. Ou escreviam
cartas longas, ou marcavam em seus diários, o que não queriam esquecer.
Eu
mesma, na infância e adolescência, fiz um diário. Não escrevia à máquina nem,
atualmente, em computadores. Já estamos até entrando em nova era, quando só
basta “pensar” que fica registrado. Não
entendo muito sobre isso, mas será num futuro bem próximo.
Sinto
falta daquele tempo, quando a única preocupação era esconder o diário para que
ninguém o lesse. Hoje, a invasão da nossa privacidade é muito
maior. Triste isso! Parecemos robôs ou marionetes manejados nem sabemos direito
por quem? Suas intenções! Qualidades! Objetivos!
Controlados,
talvez por máquinas! Sem vida. Sem alma. Falta espiritualidade.
Gosto
das coisas antigas, dos costumes, linguagem, educação, respeito, atraem-me.
Apego-me a filmes, livros, objetos, museus, até vestuário. Espero que sejam
preservados para sempre!
Ah!
Lembro-me, agora! Entrei, certa vez, numa casa velha, vazia, colocada à venda
para demolição. Talvez um novo prédio, cheio de divisões ou compartimentos.
Mania perigosa que tenho!
Sua
construção antiga, arquitetura refinada, lembrando estilo barroco, período
rococó, revelou mais ou menos a personalidade da família que ali morou. Gente
abastada! Nobreza! Bairro de São Paulo considerado muito chique, em tempos
passados, Campos Elíseos.
Visitei
os cômodos enormes, tetos altos, algumas pinturas existentes, desenhos
descascados que ainda se viam sob o desgaste aparente.
Muito
surpresa, verifico, num dos quartos, uma velha cômoda de cerejeira, estilo Luís
XVI. Cheia de gavetas enfeitadas com puxadores de cobre. Com certeza, não
despertou interesse de ninguém, ou não a
tenham visto. Deve valer muito nas lojas
de antiguidades, apesar do estado.
Curiosa
desde menina, sempre sonhadora e romântica, verifico se as gavetas ainda abrem.
Sim, uma delas, a última, não está
emperrada. Abre facilmente.
Entre
alguns papéis irreconhecíveis e jornais esmaecidos, o que vejo? Um caderno capa
dura, amarelado pelo tempo, com folhas rasgadas nas pontas. Abro-o e percebo
ter sido um diário. Alguém deixara nele, com tinta nanquim, ainda visível,
escrito à pena, com certeza, impressões de uma vida.
Emocionada,
sem que ninguém visse, apanho-o, fecho silenciosamente a gaveta, coloco-o na
sacola e saio, às pressas, com medo de ser interceptada. Senti-me carregando um tesouro, a ser
escondido e revelado em minha casa, meu sofá, local predileto de leitura e
filmes.
Feliz
por morar sozinha, dessa vez, pois não seria importunada por ninguém! Era um sábado, 18 de março de 2000.
Sento-me
de modo confortável e, com mãos trêmulas, controlando meu coração acelerado, folheio,
delicadamente, as primeiras páginas. A tinta muito clara e a letra leve,
redonda, formando pequenas curvas mais acentuadas, demonstram ser de mulher.
Realmente, mulher jovem, alegre e apaixonada, percebo logo. Seu nome, Valéria.”
São Paulo,
25 de maio de 1912, 8,00 h.
Hoje,
levantei-me contente, querido diário, meu amigo mais íntimo, de todas as horas.
Dia claro, ensolarado, céu sem nuvens, novidades boas no ar. Soube, ontem, por papai, que meu prometido, Alfredo,
está para chegar da Europa. Acompanhado pela mãe e irmãos, findou seus passeios
e estudos em Paris, após rumores de guerra, principalmente França.
Finalmente,
vou rever meu quase noivo, escolhido por nossas famílias, entre tantos primos e
conhecidos que temos.
Gostei muito
dele, colocando em Alfredo minhas aspirações de felicidade.
O meu dia
hoje será de preparativos, idas a costureiras,
enxoval, muitas coisas que mamãe irá resolver. Sinto-me feliz.
Após
algumas interrupções, voltei à leitura no dia seguinte.
São Paulo,
05 de junho de 1912, 10,00h
Querido
diário. Não tenho escrito muito nesses dias, porque a correria está sendo
grande.
Amanhã,
iremos a Santos esperar Alfredo e família que chegarão no vapor das cinco. Meu
entusiasmo é grande e minha saudade também. Estou muito ansiosa com tantos
preparativos e não vejo a hora de repousar em seus olhos claros, desmaiar no
seu sorriso bonito, seu porte elegante e calmo. Ele é diferente dos rapazes que
conheci até hoje.
Continuo
lendo, bastante interessada, em outro momento.
São Paulo,
20 de junho de 1912, 9,00h
Alfredo
chegou! Sua aristocrática família, também. Alegre, saudoso, gentil, encheu-me
de carinhos e presentes, demonstrando que não me esqueceu, apesar dos anos fora
e tantos conhecimentos adquiridos. Morria de medo que, com o tempo, esquecesse do
seu compromisso aqui, no Brasil. Quanto a mim, bastou um sorriso seu para
voltar todo o meu entusiasmo e amor por esse homem que preenche tudo que penso
em assuntos românticos e sentimentais. Gosto dele e, se não casarmos, não quero
mais ninguém!
“novo
dia, nova leitura.”
São Paulo,
09 de julho de 1912, 9,00h
Querido
diário, sempre apaixonada, espero Alfredo todas as noites. Tem vindo jantar e
passa horas conversando com papai, no escritório. Acho que conversam sobre sua
viagem e estudos realizados. Ambos são
advogados e têm muita coisa em comum. Logo marcaremos uma data para o nosso
noivado que, segundo ele, será rápido, marcando o casamento quase em seguida.
Será mais uma satisfação à sua mãe e à sociedade, amigos que frequentamos.
Vejo-me
envolvida com Valéria.
São Paulo,
01 de agosto de 1912, 10,00h
Hoje o
dia amanheceu lindo. As rosas do jardim parecem mais brilhantes e vivas,
combinando com o meu coração.
Querido
amigo diário! Meu noivado foi ontem, maravilhoso, sentindo-me a mais feliz das
mulheres. Alfredo nunca foi tão amoroso e gentil! Nossa festa deu certo, meu
vestido ficou muito bom, os convidados estavam alegres, participando da nossa
felicidade. Os familiares contentes, confirmando ser a nossa união do agrado
geral.
Nunca
me senti tão segura e certa do passo
sério que é um casamento. Já me sinto
unida a Alfredo como se nunca tivesse separado.
Algumas
amigas que hoje são casadas, não sentiram essa segurança. Pareciam estar
nervosas e indecisas até o grande dia, quando se acalmaram. Marita foi uma
delas, minha melhor amiga, nervosa como só ela. Será minha madrinha. Ela e o
marido Leandro, que é tão bom quanto Alfredo será.
Que
interessante! E agora, o que virá, tantos anos antes?
São Paulo,
04 de setembro de 1912, 9,00h
Meu
casamento foi marcado para 12 de dezembro, dia do aniversário da minha futura
sogra. Os preparativos são muitos, roupas, moradia, móveis, presentes,
convites, escolha da igreja, ensaios, número de convidados. Eu e Alfredo
estamos meio estressados. Mal temos tempo par conversar, namorar como fazíamos antes. Nunca pensei que
um casamento desse tanto trabalho. Ele, coitado, começou a trabalhar, montando
um escritório de advocacia na Rua Direita, em sociedade com um amigo. Seus
momentos de lazer terminaram. Ultimamente, temo-nos visto pouco. Sinto sua
falta e espero que o casamento chegue logo.
Entusiasmada
e emocionada, continuo lendo seus relatos como se fosse um romance.
São Paulo,
12 de outubro de 1912, 8,00h
Meu
diário, meu companheiro. Escrevo aqui minhas preocupações também. Ando
entristecida porque não tenho visto meu noivo como queria. Como nos víamos
antes. É tanto trabalho, tanta coisa para resolver, que vou acabar ficando
igual às minhas amigas, nervosas até a cerimônia. Marita tem me ajudado vindo várias vezes fazer companhia. De vez em
quando, olha-me assustada, como se quisesse me dizer alguma
coisa. Acho que é preocupação demais. Sempre foi meio cismada. Logo chega
dezembro e tudo se resolve.
Novas
palavras no diário: percebo, preocupada...
Tudo indica alguma modificação no assunto.
São Paulo,
15 de novembro de 1912, 10,00h
Tenho
escrito pouco. Até vontade e tempo de escrever está sumindo. Faz uma semana que
Alfredo não aparece, alegando muito trabalho e pequenas viagens. Parece que a
guerra na Europa está começando mesmo e isto o tem preocupado. Medo que atinja
também o Brasil. Meu pai também anda preocupado e olha-me compadecido. Sinto
algo no ar! Alguma notícia estranha. Desabafo-me com você, coloco minhas
preocupações nessas linhas estreitas, em você, meu diário. É a única maneira
que tenho de falar, sem causar constrangimento.
Entristecida,
prevejo outro final para a linda história de Valéria!
São Paulo,
28 de novembro de 1912, 10,00h
Não
tenho vontade de escrever! Sinto que amadureci ou endureci de repente, querido
diário. Minha angústia e tristeza é tanta que, acredito, seja o dia de hoje,
uma despedida. Deixo aqui gravadas, em você, meu amigo, como se fosse alguém e
não um objeto de expressão.
Após
algum tempo de pequenas frustrações, ausências repetidas e desculpas de Alfredo,
recebo a visita de Marita que, muito reservada, chama-me ao meu quarto para
conversarmos. Com muita delicadeza e mágoa, prepara-me para uma notícia triste.
Soubera, pelo marido, que Alfredo se apaixonara por uma mulher humilde, muito
bonita, com um filho a caminho, querendo desfazer o compromisso de noivado, mas
não tem coragem. Abriu-se com a mãe que, de desgosto, mudou-se para outra
cidade. Não poderá haver mais casamento, nessa situação. Alfredo sempre foi um
homem sentimental, um pouco fraco e
sensível, colocando a beleza e a arte como qualidades principais em sua
vida. Gostou de outra, trocando cultura,
posição e riqueza por simplicidade e beleza de outra pessoa. Uma costureira.
Desfaleci
e Marita me amparou. Nem coragem de vir me contar, teve.
Acho que
vou morrer! Não acredito em mais ninguém!
Após
ler tantas folhas espaçadas e interrompidas por minhas atividades, comovo-me e
choro, percebendo que o diário de Valéria
mexeu comigo, fazendo um diário na minha vida também, levando alguns
meses para sua leitura.
Guardei-o
amorosamente em minha gaveta. E, meses mais tarde, folheei-o, vendo uma página
solta, escrita às pressas, pelas poucas palavras e entusiasmo.
São Paulo,
o2 de abril de 2013, 8,00h
Meu
diário, estou me despedindo, virando sua última página em minha vida. Após o
rompimento com Alfredo, sofri uma grande depressão, pensando em acabar com
tudo. Felizmente, fui salva por meu médico que me encaminhou a um serviço
voluntário com crianças doentes. Conheci Roberto, um médico pediatra. Apaixonamo-nos e devo casar em breve. Minha
lua de mel será nos Estados Unidos! Encontrei novamente a felicidade. Adeus!
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