Brincar
Pedro
Henrique
Quando eu era pequena, imaginava que a dor
era minha amiguinha, porque eu e ela sempre brincávamos. Podia ser a hora que
fosse: quando mamãe me chamava de imprestável, quando minhas irmãs arrancavam
meus cabelos com seus dedos perversos ou quando todos rejeitavam ficar perto de
mim.
Independentemente de tudo isso, eu e ela
nunca nos separamos. Era como se entre nós duas existisse um pacto, uma coisa
só nossa, do qual o resto do mundo não era bem-vindo. E, quando ela sumia por
muito tempo, eu sentia sua falta.
Às vezes, imaginava que ela tinha ido
brincar lá na rua com as outras crianças e que depois voltaria para brincar
comigo, porque ninguém brincava comigo.
As pessoas se ressentiam de mim, diziam
que eu era doida. Eu até gostei dessa palavra. Doida. Legal, né?
Um dia, um coleguinha da minha escola
falou que a mãe dele disse que era para ele ficar longe de mim, porque eu era
maluca e poderia lhe fazer mal.
No início, ouvir aquilo foi como andar e,
de repente, sentir um prego rasgar minha carne e morar dentro dela até chegar
um adulto e arrancá-lo.
Porém, eu não tinha nenhum adulto por
perto, então apenas ri, até porque era impossível eu fazer mal a alguém. O que
eu queria mesmo era brincar, apenas brincar.
Mas, com o tempo, todas as outras crianças
começaram a não chegar perto de mim por eu ser doida, e eu passei a não gostar
mais dessa palavra.
Perguntei, certa vez, ao vovô Firmino o
que era ser doida, e ele me respondeu que era uma coisa ruim. Perguntou por que
eu estava falando aquilo. Disse a ele que meus coleguinhas da escola não
queriam ficar perto de mim por eu ter essa coisa ruim.
No começo ele estranhou, não entendeu
muito bem o que eu estava dizendo, mas depois, como se uma lâmpada acendesse
bem acima de sua cabeça, ele confidenciou-me que poderia me ajudar, que não
seria muito difícil, bastaria apenas brincarmos.
Escutar aquilo foi uma das experiências
mais extraordinárias de toda minha vida, era como dançar balé no céu e ao olhar
para baixo ver todos os meus amiguinhos enxergando-me, e pela primeira vez,
eles não corriam de mim, mas sim, me admiravam.
Entusiasmada, lembro de ter perguntado ao
vovô se as outras crianças iriam querer brincar comigo depois de sua ajuda, ele
respondeu alegre que sim. Então, quis sua ajuda mais do que tudo no mundo, pois
finalmente todos iriam ver a minha dança.
Vovô Firmino morava comigo, minhas irmãs,
mamãe e Valdir. O homem que virou meu pai depois que o meu verdadeiro papai se
transformou em estrelinha por mexer em um fio errado no trabalho.
Vovó Neide também virou estrelinha, é por
isso que o vovô Firmino morava com a gente. E que bom que ele morava com a
gente porque assim ele poderia me ajudar.
No entanto, ele só me ajudava quando mamãe
e Valdir estavam no trabalho e minhas irmãs na escola. Contudo, isso não
importava, o importante mesmo é que na manhã seguinte após a ajuda do vovô eu
estaria curada e poderia brincar, e a primeira pessoa com quem eu queria
brincar seria a Ana, porque ela tinha as melhores bonecas e os melhores giz de
cera.
Recordo de ter passado a noite inteira
imaginando quantos desenhos lindos eu faria com aqueles gizes. Faria várias
borboletas, casinhas e até uma sereia. Eu adorava sereias.
Quando crescesse, queria ser uma.
Já
tinha até imaginado a cor da minha cauda. Seria roxa com bolinhas amarelas em
formato de estrela-do-mar, igual ao desenho que pensei em fazer com os gizes
coloridos de Ana.
Eu até pedi para mamãe comprar uma caixa
de giz de cera igual à dela, mas ela falou que “não iria gastar o pouco da
porra do dinheiro que ganhava limpando aqueles banheiros fedendo a mijo da
rodoviária com uma garota que não presta pra nada a não ser encher o saco.”
Naquele dia, senti uma nuvem carregada
pairando sobre mim. Era como se os pingos dessa nuvem levassem consigo uma
parte de quem eu era, até não existir mais nada, exceto o quintal, vazio e sem
rosas que era morar em mim.
Entretanto, o que mais me deixou triste
era que sempre via mamãe dando o dinheiro que ganhava para Valdir. Bastava ele
dar um soco no rosto dela e, pronto, ela o entregava.
Pensei em dar um soco nela também. Achei
que assim ela me daria a caixa de giz colorido, mas quando dei o soco, ele só
pegou na sua perna.
Ela me catou pelos cabelos e me bateu com
a vara cheia de pontinhas pontudas que guardava no guarda-roupa. A vara
arrancava do meu corpo uma gosma vermelhinha, bem molenga. Parecia uma slime
feita de água.
Sendo assim, eu sabia que a única forma de
encostar naqueles gizes coloridos era se Ana me emprestasse. Porém ela não
queria. Disse que nunca emprestaria seu material para alguém como eu. Até falou
uma palavra estranha chamada “Síndrome de Down”. Você sabe o que é isso,
leitor? Ah, depois que terminar a história você me conta. Não tem problema, eu
não tenho pressa.
Mas uma coisa que tenho pressa em contar a
você é que não fiquei com raiva de Ana, não mesmo. O vovô sempre me falou que
não podemos ter raiva de ninguém, e além disso, só de ir à escola eu já me
sentia bem. Era mágico estar lá e ficar brincando com todos os brinquedos que o
colégio oferecia e também tinha as tias que sempre ficavam comigo e deixavam eu
fazer tranças nos cabelos delas e algumas vezes elas faziam tranças no meu
também.
No entanto, neste mesmo dia, no dia em que
Ana rejeitou me emprestar o giz, me lembro de chegar em casa e não querer mais
falar com o vovô, porque ele mentiu para mim. E, quando alguém mente para você,
você deixa de falar com essa pessoa.
Sendo assim, peguei seu ensinamento sobre
não nutrir raiva por ninguém e coloquei na janela do meu quarto para os
pássaros comerem.
Mas mesmo assim, ele me obrigou a falar
com ele. Disse que queria brincar comigo de novo. Quando recusei, ele me bateu
de punho fechado, como Valdir faz com mamãe quando quer dinheiro.
Então, de fininho, bem nas pontas dos pés,
a dor veio, atravessando a sala, passando pelo corredor, abrindo a porta do meu
quarto e como de costume, me chamando para brincar.
Estou sem palavras!
ResponderExcluirNão consigo recordar quando foi a última vez que li algo que tenha me causado um impacto tão profundo.
Meus olhos ficaram marejados...
Eu fiquei arrepiada!
Meus parabéns!
Que honra! Fico feliz que o texto tenha te causado tamanha catarse.
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