O Olhar
Adelaide Dittmers
Os veleiros pintavam o mar de diversas cores.
A espuma branca das ondas batia com força nos cascos. As velas cuidadosamente
dispostas a favor do vento. O mar vestia-se de um verde claro e transparente,
que deixava vislumbrar no seu interior cardumes diversos.
Osvaldo conduzia a embarcação com maestria.
Forte, pele bronzeada, bonito, era admirado pelas mulheres e invejado pelos
amigos. Destacava-se em tudo o que fazia. Publicitário de sucesso colheu
vários prêmios na profissão. Sempre guiado pela razão, ponderava sobre
cada passo dado para alcançar seus objetivos.
Com segurança, Oswaldo navegava em direção ao ponto
de chegada. Mais uma vez ganharia a regata.
No barco, outro rapaz o ajudava nas manobras com
eficiência e atenção. Celso, irmão de Osvaldo, era o companheiro no
iatismo, esporte que adorava. Amava o mar, sentir o vento e o
balançar do barco, provocado pela dança das ondas. Sério, introvertido, tímido,
o oposto do irmão. Preferia ficar na sombra, ao contrário do irmão, que
adorava ser admirado e bajulado. A diferença entre os dois era
marcante. Um era o sol, o outro, a lua. Um iluminava tudo à sua volta, o
outro refletia essa luz. Um era a razão, o outro a emoção. Tinham visões
de vida muito diferentes e, apesar do respeito que Celso tinha pelo irmão, a
única coisa, que os aproximava, era a paixão pelo esporte.
Celso formara-se em filosofia o que o levava a
observar e questionar a natureza humana, as fraquezas e contradições dos
homens. Seu objetivo, nas regatas de que participava, não era apenas
ganhar, mas desfrutar do desafio, enquanto Osvaldo adorava ganhar os louros da
vitória e ser admirado pelas conquistas.
O veleiro foi se aproximando rapidamente da linha
de chegada e aplausos estouraram, quando a atingiu. Mais uma vitória!
Foram cercados pelas pessoas e Osvaldo sorrindo apertava com um prazer intenso
a mão de seus admiradores. Celso, ao contrário, conseguiu esgueirar-se e
foi se afastando.
Mais adiante, uma bela jovem veio ao seu encontro e
o abraçou carinhosamente, cumprimentando-o pela vitória. Ele retribuiu
com um sorriso tímido. Era a namorada do irmão. Conversavam
animadamente, quando Osvaldo chegou, abraçou e beijou Marta. No entanto,
ela desviou o olhar para Celso, que viu nos olhos da moça algo diferente, que o
fez estremecer por inteiro. O que significaria aquele olhar? O irmão estava com
ela há dois anos, mas ultimamente notava que ela estava mais distante de Osvaldo.
Muitas vezes desviava-se dos carinhos do namorado com um sorriso forçado.
E agora aquele olhar intenso e angustiado, que lhe lançou.
Ele foi se afastando devagar. De repente,
notou que uma raiva súbita lhe subiu pela garganta. Admirava o irmão, mas ao
mesmo tempo não apreciava a necessidade de ele aparecer. No âmago de seu ser
sufocava o sentimento de saber que ele era egocêntrico e superficial. Marta era
algo a ser exibido e não uma pessoa com alma e emoções.
O que estava acontecendo? Por que estava revoltado
com isso? Não era de sua conta. O que aquele olhar tinha arrancado de
dentro dele? Um pensamento faiscou em sua cabeça e iluminou o que não
ousara ver: o sentimento que brotara silenciosamente no seu coração. Estava
apaixonado pela namorada do irmão. Sacudiu a cabeça, como se quisesse espantar
essa descoberta.
Entrou no carro e saiu em disparada. Aquele
olhar, que lhe mostrou que ela nutria algo por ele o estava
desestabilizando.
Tentava entender racionalmente suas emoções, mas
era impossível. Há algum tempo, tentava sufocar o desprezo pelas
atitudes do irmão. A vaidade desmedida, o egocentrismo, a necessidade de
vencer sempre e ser incensado por isso.
Será que o amor que sentia por Marta e que não
quisera tomar consciência, o fez enxergar tudo o que sentia pelo irmão?
Não, ele não iria mais se submeter às vontades de
Osvaldo. Iria lutar por Marta, custasse o que custasse.
Chegou à casa e entrou como um furacão, mal
cumprimentou os pais, que se entreolharam preocupados.
— Vou tomar um banho!
— Como foi a regata? Perguntou o pai.
— Vencemos.
E saiu da sala. O pai virou a cabeça para a
mãe, encolhendo os ombros e virando as mãos para cima, sem entender o que
estava acontecendo com o filho, sempre tão calmo e controlado.
Celso entrou no quarto e jogou as roupas com
força. Estava cansado do menosprezo de Osvaldo, que se sentia o melhor em
tudo e até no esporte não reconhecia a ajuda dele para conquistar as vitórias.
Depois do banho, resolveu sair e dar uma corrida
para espairecer.
— Aonde você vai, filho? Perguntou a mãe?
— Vou dar uma volta.
— Você não vai almoçar?
— Não, não estou com fome. E saiu.
O que estaria acontecendo com ele? Pensou a mãe.
Precisava correr para pôr a cabeça em ordem e
decidir como iria agir. Foi a um parque perto de sua casa e correu até
cansar. Sentou-se em um banco à beira do lago, cujas águas calmas davam
às pessoas uma sensação de paz e comunhão com a natureza. Abaixando-se
pegou pequenas pedras, que atirou na água, o que assustou os cisnes, que por
ali passavam, mas precisava jogar fora o que lhe agitava a alma e agir com a
razão e não com a emoção.
Pegou o celular e seu dedo parou sem apertar o
botão. Apertou os lábios. Faria ou não faria aquela ligação. Sim,
tinha que ligar para ela. E pressionou o botão.
A voz de Marta soou nos seus ouvidos.
— Celso? Tudo bem?
— Não, Marta! Não estou bem e nem sei como começar.
— O que aconteceu?
Ele estremeceu. Será que estava certo e o que
vira no olhar dela realmente significava alguma coisa? Ficou calado, paralisado
pelo medo.
— Celso? Você está aí?
— Desculpe Marta! Estou nervoso.
— Por quê?
Como uma enxurrada, as palavras saíram de sua boca
como se estivesse vomitando toda a sua emoção.
— Posso estar sendo um idiota, mas quando você
olhou para mim hoje de manhã, li nos seus olhos algo que me atingiu como um
raio e me tirou do prumo. Vi tristeza e desconcerto, mas também vi
paixão.
Parou para respirar.
— Desculpe se confundi tudo. Afinal, você é a
namorada do meu irmão.
O silêncio da jovem o deixou mais ansioso. “O que
eu fiz”, pensou.
De repente, ela disse devagar, pesando cada
palavra.
— Seu irmão saiu daqui há pouco. Tivemos mais
uma discussão. Não aguento mais sua indiferença e muitas vezes ser posta de
lado. Suspirou fundo e prosseguiu: O que você viu no meu olhar é sim
amor. Me apaixonei pela sua simplicidade, seu modo de ver as coisas, a sua
delicadeza em tratar as pessoas. E não estou sabendo como lidar com isso.
Uma mistura de sentimentos contraditórios o
assaltou: alegria e remorso, era amado e traidor. Era como se estivesse sendo
arrastado por uma forte correnteza de emoções.
— Também não estou sabendo o que fazer, mas ao
mesmo tempo, não temos culpa. Aconteceu!
E com essas palavras, procurou justificar a si
mesmo sua conduta.
— Venha até aqui. Precisamos conversar
pessoalmente e com calma. Disse ela.
Foi uma longa conversa em que resolveram contar a
Osvaldo o que estava acontecendo.
Na manhã seguinte, Celso foi ao apartamento do
irmão, que se surpreendeu com a visita dele tão cedo. Com um tom muito sério
ele disse que precisavam conversar.
A surpresa estampou-se no rosto de Osvaldo.
Sentaram-se um de frente para o outro. A tensão pairava no ar.
— Desembucha!
— Me apaixonei!
— E isso é tão grave assim? Osvaldo disse com um ar
zombeteiro.
— É. Pela Marta e sou correspondido.
Aconteceu!
Osvaldo levantou-se. A expressão
transtornada.
— Você tem coragem de vir aqui me dizer isso! Meu próprio irmão me apunhalar
pelas costas!
Celso empalideceu:
— Tudo foi muito de repente! Nem sei como explicar.
— Isso não tem explicação. E foi para cima do
irmão, desferindo-lhe um bofetão no rosto.
Celso ergueu os braços para se defender do irmão,
que descontrolado, continuava a açoitá-lo. Dona Júlia, a empregada de alguns
anos, entrou na sala assustada com os gritos e os sons das pancadas de Osvaldo.
— Parem com isso! E tentava separá-los.
— Por favor, Dona Júlia, saia daqui.
— Não saio. Não sei o que está acontecendo, mas
você tem que se acalmar.
Como se tivesse recebido um balde de água fria, ele
abaixou os braços e jogou-se na poltrona. Os olhos destilavam ódio.
— Sempre te apoiei nas tuas inseguranças e o que
recebo de volta...
— Soube que vocês não estão se entendendo
mais. Celso respondeu, tentando se recuperar das agressões.
— Verdade! Nosso relacionamento está se
esgarçando. Ando cansado das exigências dela. Quer atenção o tempo
todo. Não sou homem para isso. Posso ter as mulheres que quiser. Mas
terminar a relação pela traição de meu irmão.
— Nós nos apaixonamos sim, mas só descobrimos isso
ontem e vim dizer a você.
— Você não entende nada mesmo! Eu é que tinha que
terminar primeiro e não ela vir amanhã e dizer que tudo está acabado, depois de
você confessar a sua traição.
Celso sacudiu a cabeça ao compreender a reação do
irmão. Ele não estava sentido pela perda da namorada. Estava
furioso por ter sofrido uma derrota. Um esgar de asco contraiu as feições de
Celso. Que tipo de homem era ele?
Controlou-se para não dizer tudo o que estava
sentindo e saiu porta afora.
Entrou no carro e tentou se acalmar. Encarar
pela primeira vez a personalidade do irmão o surpreendeu. A admiração e o
orgulho que tinha por ele foram por água abaixo. De repente, porém, um
pensamento surgiu imperioso. E ele, o que sentia pelo irmão, será que não
era inveja? O fato de se sentir em segundo plano, bem no âmago do seu ser, não
o tinha incomodado? Quando decidiu lutar por Marta, não sabia o que ela
significava para o irmão e assim mesmo foi em frente, mesmo sabendo que poderia
causar sofrimento a ele. Será que poderia se considerar melhor do que
ele?
Subitamente se sentiu apaziguado. Osvaldo
tinha defeitos, mas ele também não era santo. Não iria mais ser o reflexo
do irmão, mas seriam dois homens com defeitos e qualidades, que se
respeitariam. O orgulho de Oswaldo faria com que transformasse a traição
a seu favor. Vítima, mas livre de um relacionamento, que já não
funcionava mais.
Deu partida no carro e acelerou em direção do
apartamento da amada.
Muito boa história, muito bem contada: sequencia adequada, boa dinâmica, boas caracterizações. Gostei. Parabéns, Adelaide.
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