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quarta-feira, 19 de março de 2025

A VIDA DE LAZINHO - HENRIQUE SCHNAIDER

 






A VIDA DE LAZINHO

HENRIQUE SCHNAIDER

 

A família estava reunida na sala, o silêncio era tão grande que dava para ouvir a respiração sofrida, devido à asma crônica do Lourival, pai de Lazinho.

Todos quietos, ninguém arriscava nem dar um pio para quebrar o silêncio. Lourival olhava angustiado para a mãe de Lazinho, Dona Amanda. Lazinho vermelho como um pimentão, de tanta raiva, olhava desconcertado para o chão.

Voltando esta história para anos atrás. Lourival e Amanda se conheceram num baile da velha guarda e caíram de amores um pelo outro. Depois de dois anos de namoro e mais um de noivado, casaram-se na Igreja da Maculata.

Três anos se passaram e, apesar de tanto esforço para gerarem um filho, não conseguiram e, com tantos exames, acabaram, depois de muita tristeza, que Dona Amanda não podia dar um filho para Lourival. A coitada estava seca, assim como uma bananeira que já deu cacho.

Após discutirem muito sobre o que fazer, resolveram adotar um menino que nasceu numa outra cidade, de uma mãe desnaturada que não queria a criança e assim trouxeram o menino com um mês de vida. Foi uma enorme alegria com a chegada da criança, ao qual deram o nome de Lazinho.

Não houve criança mais amada, a qual deram uma educação a melhor possível e a vida do casal mudou da noite para o dia. A casa se encheu de alegria e felicidade. Lazinho era uma criança de gênio tranquilo e muito boazinha.

Passados cinco anos, Lourival e Amanda resolveram adotar mais um menino bem moreninho e lhe deram o nome de Armando.

A vida do casal foi do bem para melhor, naquela casa só havia muito amor e carinho e assim foram se passando os anos e a vida deles era só festa. O casal não criava coragem para contar aos rapazes, que ambos eram adotados, falharam ao não revelar a verdade.

Lazinho já estava com quinze e Armando com doze anos, e o momento fatal tinha que acontecer para o bem dos rapazes, a verdade tinha que ser revelada nua e crua.

Até que certo dia, aconteceu, o silêncio naquela sala era total, não se ouvia o zumbido de um pernilongo. Qual era o segredo que finalmente iria ser revelado?

Amanda até gaguejou, quando começou a falar e começou finalmente a revelar aquele segredo guardado há tantos anos. Finalmente soltou tudo, uma vez que eles, tanto Lazinho como Armando, não eram seus filhos e que ambos tinham mães diferentes.

Ela pediu para que eles a perdoassem por não revelar o segredo há tanto tempo guardado. Mas que os amava como se tivessem sido filhos legítimos seus. Lazinho deu um grito enorme e Armando permaneceu calado.

Lazinho, em seguida, pediu desculpas pelo grito e agradeceu aos pais por terem o adotado. Armando seguiu o irmão e disse o mesmo.

Um peso enorme saiu de cima daquela família e todos choraram de alegria e de felicidade, reinou naquela casa e assim viveram em paz daquele dia para sempre.

DILEMA - Adelaide Dittmers

 

 

DILEMA

Adelaide Dittmers

 

Muitas pessoas escondem segredos. A dúvida de revelá-los corrói suas almas e suas vidas.

 

Valentina revolvia-se na cama. A escuridão do quarto encobria sentimentos ambíguos, que a desorientavam.  Qual o caminho a seguir? O que era certo?  Haveria o certo ou o errado na situação em que se sentia enredada.

 

Seu pai sempre foi seu ídolo.  Inteligente, ético, carinhoso e compreensivo.  Quando se sentia perdida, era o barco que a levava para um porto seguro. A âncora, que a fazia parar e pensar.  Como poderia julgá-lo? Parceiro presente e amoroso da sua mãe.

 

Levantou-se como se tivesse levado um grande susto, empurrando as cobertas e sentando-se.  Os punhos fechados pressionam o colchão.

 

Precisava sair. Andar sem direção. Colocar a cabeça no lugar.  Vestiu-se rapidamente, ainda atordoada pela noite insone.  Percorreu o corredor com os tênis nas mãos para não acordar o pai e saiu para a rua.

 

O dia começara a empurrar a noite e derramava suavemente a claridade pela cidade, que, sonolenta, começava a acordar pouco a pouco.

 

Vagou pelas ruas sem um rumo certo. A grande praça surgiu à sua frente.  Um vento suave sacudia as folhas das árvores, que exalavam o fresco aroma da natureza.  Um sabiá fazia seu concerto matinal.

 

Ela se jogou em um banco.  Os olhos perdidos e o coração descompassado. A imagem da mãe doente fez com que fechasse seus olhos, espalhando a dor que sentia por todo o corpo, que, involuntariamente, se contraiu.

 

A descoberta que fizera de que o pai, um conceituado médico, havia escondido uma droga, que pretendia dar à mãe, que estava sofrendo terrivelmente, acometida por um câncer, que estava devorando seu corpo e empalidecendo sua alma, atingiu-a como um raio.

 

Ele estava agindo por amor, mas teria esse direito? Não poderia ter escolhido tirar os medicamentos e antecipar o desenlace.

 

O choro a sacudiu.  Tinha que agir e impedi-lo de cometer esse crime. Sentiu-se no meio de um furacão de emoções contraditórias.

 

Entregar o pai querido ou calar?

 

Levantou-se resoluta.  Iria confrontá-lo.

 

Entrou em casa com passos firmes, o coração aos saltos.

 

Ouviu um choro convulso, vindo do quarto.  Correu para lá. O pai soluçava abraçado à mãe, que acabara de partir. O frasco da droga vazio jazia na mesinha de cabeceira.

 

Estacou à porta, a respiração suspensa.  Correu até a cama e os abraçou.  Sabia agora o que fazer. A decisão estava tomada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VERDADE, ACONTECEU MESMO! - Dinah Ribeiro de Amorim

 



 





VERDADE, ACONTECEU MESMO!

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Dia lindo em Cosópolis, céu azul, nuvens suaves e brancas, sol radiante e luminoso, que irradia raios de luz pela região colorida de verde.

Crianças brincam calmamente de pega no quintal das casas e senhoras idosas e gordas, conversam risonhas as fofocas do dia.

De repente, uma estranha escuridão acontece. Raios e trovões se espalham pelo céu, pingos grossos de chuva espantam e afugentam os moradores para suas casas. Arrebenta uma grande tempestade que amedronta, principalmente, a criançada.

“Será que São Pedro está bravo conosco?” Comentam as crianças.

“O que será que acontece nos céus?” Exclamam as mulheres, acendendo velas para Santa Clara. A luz do povoado se apaga.

Cosópolis, a cidade calma, está apavorada.

Essa escuridão e a tempestade já duram algumas horas.

“Que coisa estranha!”, exclamam todos. Algo aconteceu.

No céu, os anjos e os santos, atormentados pelo barulho feito por Margot, recém-falecida, estão à volta de São Pedro, sem saber o que fazer.

A mulher, muito brava e enérgica, reclama que não podia morrer. Xinga e desrespeita o porteiro do céu, bate pés e braços às portas do Paraíso, faz um escândalo, não quer entrar.

São Pedro, calmo e paciente, vai até ela e a orienta que, agora que morreu, tem que ficar lá em cima. Não tem como voltar. Não existe mais nova vida.

Margot, muito enraivecida, responde-lhe que não pode morrer. Tem que voltar.

Mas como, responde-lhe o mestre. Ninguém mais volta depois que morre. Afinal, aqui é melhor do que a Terra, por que deseja tanto voltar?

A mulher, preocupada, afirma-lhe que o seu marido, o querido e amado Mário, ficou sozinho e não pode deixá-lo. As mulheres locais são invejosas, gostam muito dele, querem sempre o roubar e, sem ela, ele cairá rápido nos braços de outra.

São Pedro sorri e percebe o quanto essa mulher foi ciumenta e possessiva.

Deve ter feito da vida do pobre Mário, um inferno, mesmo.

Margot, sem querer escutá-lo, continua se debatendo e não se deixa conduzir ao céu, ou ao mundo dos mortos.

Tentam levá-la à força, no meio de outros recém-falecidos, quando a mulher escuta que outra mulher, uma idosa, teve um mal-súbito, pareceu morta, mas reviveu, voltou à vida.

Mais que depressa, Margot acompanha esse relato e responde para São Pedro que, se a outra voltou, ela também poderá voltar. Tanto insiste, tanto grita, também amedronta e ameaça a todos de empurrá-los ao inferno, que até São Pedro, cansado e sem mais argumentos, mandou jogá-la à Terra. E Margot é colocada novamente em seu quarto, sua cama, abrindo os olhos.

Mário, a família, poucos amigos, ainda a velavam, não entristecidos, mas pareciam aliviados.

Quando Margot abre os olhos e respira, quase mata todos os presentes de susto. Alguns fogem, amedrontados, só permanecendo o marido e a mãe.

Ela abre os olhos e afirma que não morreu, foi um leve surto, já voltando ao normal.

Percebe, espantada, o desespero do marido, ao invés de alegria. Sente, espantada, que a sua morte trouxe alívio e paz a todos. Por que seria?

Levanta-se, calmamente, e o micróbio do ciúme retorna, tentaria descobrir. Mário já deveria ter outra mulher, uma nova esposa à vista.

D. Ferdinando, o pároco, é chamado para fazer verificação do seu retorno à vida e dar-lhe as boas-vindas. A notícia de que ela não morreu, de verdade, logo se espalha e alegam todos que foi isso que causou a tempestade.

A pobre Margot não é bem recebida e logo corre o boato de que virou uma bruxa viva. Nem a morte a quis.

Mário e a mãe tentam abraçá-la, demonstrar a felicidade que realmente não sentem, foi mesmo uma mulher insuportável.

Margot empurra-os para o lado e se levanta, muito brava.

“Então, pensam que morri, de verdade? Nunca os deixarei livre”, exclama em voz alta. Até o vigário se estremece e pensa em chamar outros padres para fazer um exorcismo. Mário, então, faz em sua testa o sinal da cruz, pedindo auxílio à Divindade.

Margot chama a atenção de toda a população que, devagarinho, vai chegando à sua porta. Os vidros das janelas ficam cheios de olhos estranhos, curiosos, a espiar o acontecido.

A mulher aparece na entrada e, gritando, afugenta todos, imediatamente.

“Ela virou uma bruxa! Cruz credo! Corram todos…”

Margot afirma estar com fome, obrigando a mãe a ir para a cozinha e o marido, entontecido, à padaria.

Mário sente que seu inferno será em vida mesmo, com os constantes ciúmes da mulher. A mãe, desanimada, pensa em sair da cidade, voltar a morar com uma irmã, para se livrar da filha arrogante e mandona.

Os dias vão passando e Margot sempre à espreita do marido, com quem conversa, que horas sai, que horas chega.

Não se dá conta de que Mário mal conversa, mal age, permanece sentado num canto da sala, entristecido. Só responde às suas perguntas e permanece calado. Sua vida é sair ao trabalho, comer e dormir.

A mãe, muito emburrada, ajuda-a nas tarefas da casa, só sabe murmurar que logo irá embora, para a casa da tia.

Margot, ainda cheia de vida, sente vontade de sair, encontrar amigas, jogar conversa fora, mas quando sai à rua, todos somem, com medo dela e, as crianças, a xingá-la de bruxa, correm desesperadas.

Com o tempo, começa a aborrecer-se, ficar mais quieta, parar de dar gritos estridentes com as pessoas, a sentir vontade de conversar com o marido e trocar ideias com sua mãe.

Muito orgulhosa e de gênio difícil, não percebe suas culpas e não sabe modificar a situação.

Não conseguiu viver bem na outra vida, mas também é infeliz agora. O isolamento atual de familiares e amigas, que sentem medo dos seus ciúmes e mau gênio, a faz cada vez mais triste.

Refugia-se no quintal, senta-se por horas num banco, debaixo da mangueira. Aceita somente a companhia de um gato cinza, enroscado aos seus pés.

Às vezes, também o chuta, com raiva e impaciência, mas ele sempre volta.

Uma tarde, fica mais tempo no quintal e, observa, pela primeira vez, o pôr do sol. Chama sua atenção aquele brilho dourado que se estende pelas nuvens, como se fosse palha ao vento. Lembra-se do céu e que quase permaneceu nele.

Desce os olhos para o gato que lhe acaricia os pés e confunde-o, confusamente, com a figura de um anjo prateado, a olhá-la, calmamente.

Assustada, levanta-se rápido e derruba o banco, que bate na árvore e espalha muitas mangas pelo chão. Algumas frutas lhe batem na cabeça, atordoando-a. Sente leve desmaio. Quando abre os olhos, a figura do gato ainda é um anjo, de grande brilho prateado, que lhe fala, docemente:

— Quer voltar à morte, Margot, deixar novamente este mundo? Não está mais feliz?

A mulher, entre temor, espanto e dúvida, lhe responde:

— Pensei em voltar para cuidar melhor do que é meu, mas sinto que não sou mais necessária. Ninguém me quer por perto e ainda acham que sou malévola, uma bruxa, como me chamam.

O anjo sorri com compreensão e tenta explicar-lhe que suas ações, neste mundo, são más, não causam bem a ninguém. É muito egoísta e ciumenta. Nunca tentou agradar a ninguém, nem ao marido que tanto ama. Se quiser continuar a viver, terá que mudar, provar que nasceu de novo para fazer o bem. Ser útil a todos, principalmente aos que a chamam de bruxa.

Margot, impressionada, revolta-se com as palavras do anjo. Fazer o bem a quem lhe faz o mal, é absurdo. Principalmente aos que menos gosta.

O anjo, com a mão em sua cabeça, responde:

— Você é a sua maior inimiga. Todos a temem porque você também os teme, considera-os inimigos. Não percebe o bem que cada um pode oferecer. Vou lhe dar um prazo, três meses, para mudar de vida. Se continuar como está, voltarei para buscá-la.

E dizendo isso, desapareceu, deixando Margot boquiaberta, a sentir novamente o gato a seus pés.

Sente um desejo enorme de chutá-lo, mas, lembrando-se do anjo, acaricia seu pelo.

Decisão difícil, pensou Margot ao entrar em casa. Abandonar as coisas da Terra, que gosto, pelo mundo dos mortos, que nem conheço?

Na cozinha, a mãe termina a sopa do jantar, feita às pressas, sem muita vontade. Margot sente, pela primeira vez, o cheirinho gostoso do tempero da mãe, um misto de alho e cebola frita, a lembrança de sua infância.

“Que saudade!” pensa e tem vontade de tomá-la logo, mas se controla. Lembra-se das palavras do anjo e exclama:

— Hum, que cheiro gostoso é esse, mãe? Sua comida sempre foi boa, mas, hoje, deve estar mais.

A mãe, admirada, coloca um prato na mesa e a serve rápido, aproveitando o momento.

Mais admirada ficou quando a filha se ofereceu para lavar a louça do jantar e mandou-a descansar. Já trabalhou muito nesse dia.

Mário, quando chega, apático e tristonho, sem fome, resolve lavar-se e dormir. Nega-se a jantar.

Margot, achando que não está bem, lembra-se do anjo e leva-lhe um prato de sopa. Sente vontade de agradá-lo, e afirma que está muito gostosa.

O marido, espantado e sem vontade, resolve tomar o caldo e acha-o bom.  Agradece e pergunta quem o fez?

A mulher responde que foi a mãe, mas no dia seguinte, fará o jantar para ele com a comida de que mais gosta.

Mário pergunta se ela ainda sabe o que gosta. Faz tanto tempo que não cozinha!

— Bifes à milanesa, responde ela, sorrindo.

Mário adormece sorrindo, há anos não sorria para a mulher.

Gradualmente, Margot tenta corrigir suas atitudes em casa, fazer agrados nas pequenas coisas, modificando a mãe e o marido em relação a ela.

Lava bem as roupas da casa, deixando-as cheirosas e limpas, encera o assoalho rústico, grosso e feio, deixando-o corado de brilho. Não lhe sobra mais tempo para ficar no quintal, substitui a mãe nas tarefas de casa e, quando Mário chega, tenta conversar sobre o seu trabalho e servi-lo.

Tenta agora fazer as compras da casa e vai à quitanda e à padaria. Teme um pouco a reação dos vizinhos. Vai ouvir bruxa e outras coisinhas mais…

Mas vai… e causa assombro em todos que a veem, ninguém tem coragem de enfrentá-la, diante de sua postura. Tornou-se uma mulher segura e imbatível. Não mais se atemoriza com os outros.

Com o tempo, o povo da cidade, o seu povo, o lugar em que nasceu, vai se acostumando com ela e se aproximando.

Amigas antigas aparecem, tentam puxar conversa, acaba recebendo convites para aniversários e fazer parte do grupo de mulheres que se dedicam a obras de caridade.

Margot acaba, com o tempo, a chefiar o voluntariado que presta assistência à Santa Casa de Misericórdia, da cidade. Seu trabalho é tão digno que recebe até uma comenda do Prefeito, mudando completamente a opinião popular, que, de bruxa, acha-a uma santa.

É, pensa Margot, sorrindo e meditando sozinha, a voz do povo, nem sempre, é a voz de Deus!

O anjo tinha razão. Estranho, três meses se passaram e ele nunca mais apareceu. Olha para o gato que ronca pesado atrás da porta, está tão gordo e velho que jamais pareceria um anjo. Acho que sonhou mesmo…

 

 

quarta-feira, 5 de março de 2025

SIRIGAITA - PEDRO HENRIQUE

 






SIRIGAITA

PEDRO HENRIQUE

 

Disse mais o SENHOR Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea.

Gênesis 2:18

 

     Almas do subsolo da humanidade, oremos pelo amor de cada dia que nos é dado por compaixão e misericórdia.

     Ó, lobas que correm na alcateia em busca do acalento universal, louvem o momento do preparo. Eu já estive aí, sei o que é ser uma rosa murcha, sem vida, impotente. No entanto, meu marido, meu amado marido, deu-me vida.

     Ele é um homem admirável, respeitado, fiel e servo de Deus. Pensem em um homem de oração e, ainda assim, não chegarão nem perto.

     E é por isso que eu o amo tanto. Porém, tenho um trabalho enorme para estar ao seu lado. Vocês acreditam que um bando de sirigaitas fica em cima dele? Será que elas acham mesmo que podem me substituir? Eu rio dessas sem rumo que andam por aí.

     Antes de vir parar aqui, no outro lado de tudo, eu colocava elas pra correr. Era um verdadeiro gato pulando em cima do rato e o mostrando quem é que manda.

     Meu marido me achava corajosa por tais feitos, só às vezes me detia: “Eh, mulher, para com isso, tá todo mundo olhando.”

    Mas eu não me importava, aquelas impuras deveriam ser repreendidas. Não passavam de um bando de putas fáceis correndo, como cachorras que são, atrás de homem alheio. “Aqui não, piranhas. Esse é meu. Foi Deus quem me deu.”

     E com sadismo, varria-as do meu caminho. Porém, agora eu morri. Harm! Dá pra acreditar? Quem vai afastar essas imorais? Daqui a pouco, elas estão deitando na minha cama. Não… O homem é só meu. Mas de jeito nenhum.

     Foi o único que ficou ao meu lado quando papai morreu. Lembro que todo dia ia lá em casa me ver e saber como eu estava.

     Teve uma vez que foi debaixo de chuva e ainda trouxe consigo uma broa que dona Zezé, minha sogra, havia feito.

     Ele sempre me alegrava e me trazia um mimo. Depois, pediu minha mão à mamãe e nos casamos. Éramos bem novos na época, entretanto o amor tem pressa.

     E falando de mamãe, foi ela quem permaneceu ao meu lado quando fiquei de cama pela morte de papai. Rejeitava com ímpeto a possibilidade de sair do meu lado. Trazia comida, me dava banho e trocava minha roupa de cama.

     Fazia isso tudo mastigando, a contragosto, seu luto.

     Mamãe também adorava ficar comigo e meu marido quando ele vinha me ver. Às vezes, Ana, minha irmã do meio, também ficava com a gente. Eu gostava desses momentos de família, não tenho dúvidas de que foram eles que me ajudaram na recuperação. Enfim.

     Logo após esse período de trevas, veio o casamento, consequentemente o primeiro filho, depois o segundo, em seguida o terceiro e fechei a firma com o quarto. Para mim, estava ótimo.

     Mamãe, mais uma vez me ajudou, sempre me acompanhava nos ultrassons e ia comigo ver as roupinhas dos bebês. Ela afirmava que sentia como se meus filhos fossem seus filhos também.

     Só não gostava quando ela me usava para cutucar Ana.

     Vivia dizendo em alto e bom som nos almoços de família: “Queria que sua irmã tivesse uma família tão linda como a sua.”

     E, de fato, éramos uma boa família. Claro, tínhamos nossos momentos de turbulência, mas não eram nada diante de uma oração fervorosa.

     Eu era muito grata. Sempre agradeci por cada filho que Deus me deu. Porém, obviamente, fui muito testada com eles, Lourenço, o mais velho, principalmente.

     Hurm! Ele é um bom garoto, é muito parecido com meu pai.

     Teve até um momento, quando ele começou a ganhar prumo, que cheguei a dizer em voz alta a palavra “reencarnação”, todavia logo ceifei, intensamente, esse termo. “Deus me livre. Isso é coisa do diabo.”

     Mas voltando aqui para o Lourenço e todo o trabalho que ele me deu. Olha, leitor, pense em um garoto que gosta de um rabo de saia. Jesus, Maria José!

     Tentei, tá, juro que tentei, só que nada adiantava. Nada. Absolutamente, nada. Com o tempo fui deixando pra lá, fiquei muito cansada, até porque brigar só estava afastando meu filho de mim e agora comigo morta, o pai vive no bar e ele, vive no bordel.

     Vocês estão entendendo? Nada adiantou mesmo.

     Só fico me perguntando, onde foi que eu errei? Eduquei esse menino tão bem. O pai que, vez ou outra, dava muita liberdade, mas eu não.

     Sempre fiz ele ir comigo para a igreja, quando houve o batismo e ele não queria ir, dei uma coça nele, de fazer as costas terem que ser lavadas com água e sal até ele querer se batizar também.

     Nunca deixei ele sair por aí de namorico, e agora ele virou isso? Meu Deus! Não. Eu não aceito uma coisa dessa.

     Ahr! Eu não posso ficar aqui. Não posso. Meus meninos precisam de mim, meu marido precisa de mim.

     Só que… pera aí, como foi que cheguei aqui? Como morri? Só lembro de estar chegando em casa e ver uma vagabunda em cima do meu marido.

     Bati muito nela, muito mesmo, dei a ela o que merecia. Onde já se viu seduzir o homem do zoto e ainda querer ficar se apertando com ele?

     Estapeei mesmo, dei uma coça, entretanto, logo em seguida, senti o peito apertar, a respiração faltar, o suor emergir frio e, quando me dei por mim, já estava aqui.

     Não. Não mesmo. Eu me recuso a acreditar ter visto o rosto de minha irmã, minha preciosa e amada Ana, naquela sirigaita.

 

ADELAIDE DITTMERS - SUTILEZAS DA VIDA

 

 


SUTILEZAS DA VIDA

Adelaide Dittmers

 

Na sala de reuniões, os líderes da empresa estavam sentados em volta de uma comprida mesa.  As conversas sérias ou corriqueiras corriam de um lado para outro.

Um homem de uns quarenta anos entrou e dirigiu-se para a cabeceira da mesa. As vozes foram se apagando.

Respeitado e temido pelos seus subordinados, muito inteligente, intransigente e imprevisível em suas ações e avaliações, atordoava todos com suas decisões categóricas, em que sua vontade tinha que prevalecer acima de todas as sugestões contrárias.  Não era estimado, apenas tolerado por todos, no entanto, sob seu taco, a empresa prosperara, tornando-se uma das mais bem sucedidas em seu ramo de negócios.

Sentou-se e as ideias, sugestões e planos foram debatidos, alguns aceitos, outros não.

O vice-presidente colocou algumas objeções nas decisões do impetuoso chefe e uma discussão acalorada esquentou o ambiente. Há algum tempo, todos notavam uma forte divergência entre eles.

Jorge, o segundo homem da empresa, era um homem calmo e ponderado, mas firme em expor e defender suas ideias, opondo-se muitas vezes às decisões do chefe supremo.

Depois de muitas discussões e acordos, a reunião foi encerrada e, como sempre, muitas questões não foram resolvidas.

Alberto foi para seu escritório.  Estava irado com o enfrentamento de Jorge.  Recostou-se na cadeira, girando-a de um lado para outro, como se sua autoridade estivesse balançando dentro dele, entre o poder que tinha em mãos e uma insegurança escondida bem no íntimo de seu ser. Tinha que deter Jorge.  Ele não podia desestabilizá-lo, era o cérebro da empresa.

Ligou o computador.  Uma infinidade de e-mails saltou à sua vista.  Começou a lê-los e anotar o que achava importante.

De repente, o celular tocou e ele sorriu. A voz macia e o olhar açucarado atenderam à ligação. Era sua namorada atual.  Bonito e com uma presença marcante, conquistava as mulheres, colocando-as num altar, para depois, quando se cansava, dispensá-las como fossem objetos descartáveis.

 

- 2 –

 

Jorge chegou ao seu escritório exausto pela discussão com Alberto. Como um homem podia ser tão egocêntrico? A empresa estava funcionando bem.  Tinha que se reconhecer que Alberto era um excelente administrador, mas não fazia tudo sozinho.  Várias vezes já tinha se apoderado de ideias que não vieram dele e, aos olhos da matriz americana, ele era o único responsável e o fio condutor do crescimento dos negócios.

Dias depois, Jorge foi surpreendido por uma videochamada, em que um dos diretores americanos o cobrava por uma atitude, que não tomara. Percebeu imediatamente que estava pisando em um campo minado.  Ao desligar, seu sangue fervia. Respirou fundo para se acalmar e jurou a si que iria retaliar essa rasteira.

A extrema discrição de como Alberto levava a vida particular, como tivesse erguido um alto muro, que o separava da convivência com as pessoas próximas, sempre o deixou curioso.  Quem era aquele homem, afinal?

Com muita astúcia, aproximou-se da secretária de Alberto e, conversando com ela, soube que ele era muito discreto e fechado.  Trocava de namorada constantemente e a única pessoa a quem parecia ter afeto era sua mãe, a quem visitava ocasionalmente, mas não tinha conhecimento de onde morava, nem mesmo qual era seu nome.

Jorge mastigou essas informações por dias e resolveu contratar um detetive para segui-lo.  Quinze dias depois, o homem lhe trouxe uma informação, que o surpreendeu.  Viu o grande homem entrar em um prostíbulo de luxo. O espanto estampou-se no rosto dele. O mau cheiro da descoberta franziu seu nariz.  Alberto, o arrogante todo-poderoso, frequentava prostíbulos. Tinha que investigar isso.

À noite, após ter tido uma feia discussão com a esposa, que não o queria metido nessas coisas, saiu e foi ao lugar.

Admirou-se com o requinte do ambiente. A fumaça e o cheiro de cigarros espalhavam-se pelo ar.  Poucas luminárias deixavam o lugar envolvido em mistério e expectativa.

Uma recepcionista o atendeu, o levou até uma mesa e lhe ofereceu uma bebida, que ele prontamente aceitou para aliviar a tensão que aquela tão inusitada situação estava lhe causando.

O drinque foi lhe trazido por uma bonita jovem, que se sentou ao seu lado com um olhar provocativo.  Jorge tentou se manter natural e sorriu para ela. Fingindo interesse, disse que quem recomendou o lugar foi um amigo, Alberto, e perguntou se ela o conhecia.

— Alberto? Há muitos Albertos, que aparecem por aqui.

— Dias Leme, completou.

— Ah! Albertinho.  Todas aqui o acham um gato, mas não podemos nos aproximar dele.

— Verdade? Exclamou com cuidado, esperando o que viria.

— Morgana não nos perdoaria!

— Ela é assim tão ciumenta!

 A moça caiu numa gargalhada.

— Muito!  É a mãe dele e a mandachuva de tudo isso aqui.  Jorge jogou o peito para trás, como se tivesse levado um soco. Ficou calado por uns instantes. O grande homem era filho de uma cafetina e com certeza ex-prostituta.  Emborcou a bebida de uma só vez. Disfarçando, sorriu para ela.

Tirou o celular do bolso e fez uma careta:

— Meu Deus! Meu filho acidentou-se.  Tenho que ir.  Disse, fingindo estar muito assustado.

E com um olhar sedutor, completou:

 — Volto outro dia.

O ar fresco da noite foi absorvido não só pelo seu corpo, mas por sua alma.  Tinha um trunfo para encurralar o arrogante chefão.  

 

- 3 –

 

Entrou no escritório de Alberto com passos firmes.  Cumprimentou-o sério e o outro mal levantou a cabeça para responder.

Estava ali para defender um grande projeto, que a equipe elaborou com muito esmero e competência, e que ele fora o responsável em dirigir.

Sentou-se e foi direto ao assunto, colocando os papéis que continham, passo a passo, a organização do trabalho.

Alberto pegou-os, folheou e os leu rapidamente.

— Vejo que seguiram minhas orientações.  Está ótimo esse projeto.

Jorge levantou as sobrancelhas.  Ele não havia colaborado em nenhuma parte daquele trabalho.  Disfarçou um sorriso irônico.  Como sempre, queria ser o responsável por tudo o que era positivo na empresa.  Pousou um olhar firme e diante dele estava um homem ainda jovem, querendo defender sua posição. 

De repente, um sentimento contraditório tomou conta dele. O passado o tornara assim. A altivez, a intolerância, eram filhas da vergonha, que cultivava dentro de si por ser filho de uma prostituta, com certeza criado em um prostíbulo. Como teria sido sua vida de criança e adolescente? Mesmo que sua mãe tivesse tentado separá-lo de seu trabalho, ele devia ter se sentido só e à margem do caminho de outros jovens.

O desejo de revanche se desvaneceu naquele momento. A piedade transbordava de seu rosto.

— Você é um grande executivo, Alberto.  Merece a posição que ocupa.  Posso imaginar como se esforçou para chegar onde está.

Alberto olhou desconcertado e surpreso para ele.   Sempre se concentrou em fazer um bom trabalho, não se importando com a opinião dos que estavam ao seu redor. Gostar ou não dele não era importante.  Naquele momento, porém, as palavras de Jorge tocaram no fundo, de sua alma.  Ele se sentiu aceito.  Não precisava lutar o tempo todo para ser visto e considerado. Tinha que se libertar de suas profundas inseguranças.

Estendeu a mão para Jorge sorrindo e, pela primeira vez, disse:

— Muito obrigado!

 

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