Consequências
Hirtis Lazarin
Já é
primavera. Despontam os primeiros raios
do amanhecer. Chegam leves e
brincalhões, esgueirando-se entre galhos e folhas das árvores mais altas. Acordam pássaros ainda nos ninhos. Aos poucos
se fortalecem e colorem a natureza.
Inspiração aos poetas e a “Monet”.
Essa
felicidade bate à porta da família Rodrigues, mas não consegue entrar.
Na
cozinha, o casal toma o café da manhã.
Cada um senta-se na ponta da mesa comprida. Ela, abatida, olheiras profundas mostram que chorou
muito e, provavelmente, passou a noite em claro. Ele, vez ou outra, lança-lhe um olhar amargo
e enfurecido. Irrequieto, derruba café na camisa branca. Raivoso, empurra a
cadeira e sai esbravejando.
Cristina
e Fernando estão casados há quase trinta anos.
Têm dois filhos: Rui, formado em medicina e Vitor, estudante de
veterinária.
Um
casal modelo e bem-sucedido. Ele,
diretor numa multinacional e ela psicóloga e orientadora vocacional, numa
escola alemã. Gente simples e hospitaleira
que coleciona amigos. Sempre há um
motivo para reuni-los e festejar.
Fernando
chegou do trabalho bem mais tarde, mesmo sabendo que a esposa prepara e
espera-o para o jantar todos os dias. Ele
atravessa a cozinha. A casa está silenciosa e muito escura. Tateando as paredes, encontra o interruptor
da sala.
Cristina
está caída aos pés da escada de mármore que dá acesso ao piso superior. Os cabelos loiros estão avermelhados e um fio
grosso de sangue escorre da cabeça ao pescoço.
Em
pânico, ele toma-lhe o pulso. Não há
sinal vital. O corpo gélido. Cristina está morta. Fernando corre de um lado pro outro sem saber
o que fazer. O celular, procura e não
acha. Grita por socorro e os vizinhos,
solidários, entram na casa. A polícia chega rápido.
As
hipóteses são muitas... Ela sofreu mal súbito e rolou escada abaixo ou
desequilibrou-se no salto alto do sapato... À primeira vista, a casa está em
ordem, as portas todas trancadas e nenhuma vidraça quebrada.
O
corpo é encaminhado ao IML e a casa interditada para que a perícia fizesse as
investigações, sem correr o risco de alteração da cena do crime.
Concluiu-se
que Cristina foi morta na cozinha. Sobre
a mesa, havia um livro de receitas aberto às páginas 45 e 46, respingadas de
sangue. Ao lado, ingredientes para um
bolo de chocolate, o preferido do esposo.
Provavelmente,
um bastão grosso de madeira golpeou sua cabeça por trás. Ela estava com o tronco inclinado pra frente,
compenetrada na leitura da receita. Foi surpreendida e não teve tempo pra reagir. O corpo foi arrastado e o “luminol” mostrou
um rastro de sangue da cozinha até os pés da escada. Esse bastão ainda não foi
encontrado.
O
crime aconteceu justamente no dia em que os funcionários não estavam
presentes. Era hábito do casal conceder-lhes
folga extra, uma vez por mês
O
delegado convocou familiares, amigos, vizinhos e todos que frequentavam a casa.
O casal era um exemplo de família. Nenhuma suspeita. Quinze dias depois, quando tudo já havia sido
virado e revirado, todos voltaram a nova rotina, se é que há rotina onde
aconteceu um assassinato.
Fernando
autorizou, logo nos primeiros dias, que a governanta Amélia encaixotasse os
pertences da esposa. Eram muitas roupas,
sapatos, bolsas de grife e perfumes importados.
Faria um bazar e o dinheiro arrecadado seria distribuído às
instituições. Insuportável sentir o
cheiro de Cristina. O casamento perfeito
de duas pessoas que driblam os problemas em busca da solução.
Trabalho
difícil para Amélia. As duas não tinham segredos. Tantos anos trabalhando na mesma casa,
convivendo com as crianças, participando dos bons e maus momentos...
Tornaram-se grandes amigas e confidentes em todos os detalhes da vida. Um mistério.
Não conhecia ninguém que tivesse qualquer rancor por Cristina. Ela contava-lhe
tudo.
Numa
bolsa pequena, a governanta encontrou a agenda da patroa. Folheando-a
aleatoriamente, e sem interesse em ler as anotações, chegou à página onde
estava registrado o dia anterior à morte de Cristina. Chamou-lhe a atenção a letra grande, tremida
e grafada com tinta vermelha. E muitos
coraçõezinhos desenhados... Sentiu arrepios e um pressentimento ruim causou-lhe
náuseas. Só se deu conta do tempo que
tinha passado, quando Fernando chegou da rua e chamou-a lá do andar de baixo. Já era noite.
Guardou
a agenda e, no dia seguinte, entregou-a ao delegado. Meses depois, dois homens foram novamente
convocados e um deles, como suspeito, ficou preso preventivamente.
Na
última página da agenda, Cistina escreveu:
“Uma
hora da manhã. Contei a Fernando o que
me torturava há vinte anos. Contei que Vitor não era seu filho. Era filho de um de nossos melhores amigos. Aconteceu depois de muita bebida. Estávamos a sós, num boteco. De madrugada.
Nem me lembro direito como aconteceu.
Acordei nua no motel ao lado dele.
Fernando
ouviu tudo sem dizer uma única palavra, sem pedir mais explicações. O silêncio
dele me torturava. Eu queria que reagisse, que gritasse. A formatura de Vitor é no mês que vem e eu
precisava contar. Meu casamento tá destruído. A traição, foi uma única
vez. Eu jurei que foi uma única
vez. Pedi perdão mil vezes. Tentei não
chorar. Cai de joelhos. Sempre fui fiel.
Fernando
permaneceu mudo e os olhos vermelhos descarregaram-me todo ódio que existe no
mundo. Fechou os punhos para não me
bater, e deu um soco no espelho da penteadeira.
Cacos voaram pelo quarto todo. E sua mão sangrou. Chutando o que
encontrou à frente, trancou-se no quarto de visitas. Eu ouvi urros, muitos urros.”
OBSERVAÇÃO: “Passei a noite em claro e, como faço todas
as manhãs, vou preparar o café pra nós dois.
Só me resta aguardar as consequências. ”
ÓTIMA HISTÓRIA, CRIA BASTANTE EXPECTATIVA.
ResponderExcluirexcelente historia, parabens
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