INACEITÁVEL
Helio Fernando Salema
Estava como carona num carro em uma das principais avenidas de uma grande cidade. Assim que o final fechou, percebi, que ao longe, vinha um menino colocando um saco plástico com algumas balas, no retrovisor de cada veículo.
Muito antes de chegar ao carro em que eu estava, voltou
correndo. Consegui vê-lo pegando cada saco numa rapidez incrível.
O sinal abriu, andamos lentamente, até pararmos antes de atravessarmos. Lá estava ele na calçada aguardando o fechamento do sinal.
Ao ver que estava fechado no nosso sentido, veio correndo
e novamente pôs sua mercadoria nos retrovisores. Pela altura calculei que
deveria ter no máximo dez anos. Usava um tênis simples, bermuda e camiseta.
Cabelos penteados e o rosto que parecia limpo.
Quando passou por mim, acompanhei seus passos pelo
retrovisor. Durante todo o trajeto não logrou nenhuma venda.
O trânsito evoluiu e poucos minutos depois estávamos em
uma outra avenida.
Ao pararmos, inicialmente não vi ninguém que estivesse
aproveitando o local para fazer qualquer tipo de comércio.
Logo depois aparece um outro menino, que aparentava ter pelo
menos doze anos, com um pedaço de papelão, mostrando para os motoristas. Com
roupas um pouco sujas e com semblante desanimador. Vi que ele não conseguiu
coisa alguma.
Passando por outros cruzamentos, sem parar, vi que nas
calçadas, perto dos sinais havia crianças.
Ao chegar em casa, satisfeito por ter concluído tudo o
que havia planejado, comecei a pensar naquilo que em poucos minutos me causara
indignação.
Há pelo menos duas décadas, quando eu residia numa pequena cidade, em outro estado. Fui a uma cidade próxima para reunir-me com amigos. Pela primeira vez eu participaria. A finalidade era arrecadar brinquedos ou recursos para o Natal de crianças pobres.
Ao me aproximar deles, uma criança bem pequena, chegou
perto de mim, e estendendo a mão, pediu-me
um dinheiro para comprar leite. Instintivamente peguei uma nota, dei àquela
menina, que agradeceu e saiu correndo, numa direção que não percebi.
Ao chegar junto aos meus amigos nós nos cumprimentamos. Logo
ao término das cortesias, um deles chamou minha atenção:
— Você não deveria ter dado dinheiro para aquela menina.
Um pouco espantado:
— Ora…Por que não?
— A mãe dela é que manda ela ficar pedindo. Não é por
necessidade. É para a mãe comprar bebidas.
Como eu não conhecia esse fato, nem pensei em debater. Um outro amigo logo comentou algo sobre a reunião e assim o assunto ficou no passado.
Em casa à noite, lembrei-me do ocorrido e durante horas
fiquei a meditar, se eu estava errado…“sim”. Não é um procedimento correto dar dinheiro
a uma criança sem ter certeza do que ela fará.
Mas como vou saber o que aquela menina faria?…Se
necessitava ou não?
Qual a certeza de que ela estava acompanhada?
Geralmente nessas ocasiões há alguém, responsável ou
irresponsável por trás?
Eu teria autoridade para punir aquele adulto?
O fato de ter um adulto apoiando ou mandando piora ainda
mais a situação. Mas por quê a criança não estava na escola? Se foi em horário
de aula e em dia de semana?
Não a conheço. Não é minha parente.
Mas é um ser humano. E se ela estivesse realmente necessitando? Cabe a mim indagar ou cobrar explicações?
Em alguns momentos sinto que faço parte de uma sociedade incapaz
de reagir, ou de saber exigir.
Completamente impotente diante de situações que envolvem
crianças e o futuro do país que desejo para os meus filhos e netos.
Não é necessário tomar prédios para transformá-los em
escola, pois temos espaços de sobra.
Recursos não são tão difíceis de se conseguir. Será que as
crianças no trânsito conseguem recursos suficientes para se manter?
Quem tem autoridade para agir nesses casos? Há leis que
protegem essas crianças ou punem quem as exploram?
Nesses casos pode um cidadão comum ocupar o lugar das
autoridades? As autoridades não sabem que
isso ocorre? Ou sabem, mas se omitem?
Faltam recursos? Falta vontade? Falta tudo que pode
contribuir na solução, e sobram argumentos para as desculpas?
Dormi muito tarde. Acordei cedo, com o corpo dolorido e
mau humorado. Foi um dia muito doloroso.
Ainda hoje, depois muitos anos, ainda me incomoda
bastante, essas lembranças.
Tomei uma decisão. Quando um politico me abordar, vou
perguntar o que ele já fez ou está fazendo pela escola pública.
Não aceito promessas. No passado, as promessas nos deram crianças
analfabetas, no presente, jovens sem perspectivas, e no futuro, certamente será
um desastre.
O tema nos faz pensar, porque retrata uma realidade triste: crianças sem educação, sem perspectivas de futuro, e ainda exploradas por adultos que também não têm recursos nem bons princípios por também não terem tido orientação e oportunidades quando crianças. Passei por uma situação semelhante: num domingo, eu, minha mulher e meus filhos levantamos cedo, fomos à missa, na saída compramos uma boa lazanha que deixamos em casa, trocamos as roupas e fomos ao clube correr e nadar. Voltando para casa almoçamos muito bem, arrumamos tudo e saímos para visitar a minha sogra. Foi aí que chegamos a um semáforo da Av.Santo Amaro, onde parei e vieram duas crianças pedir. A minha mulher disse exatamente o que disseram os seus amigos: a mãe manda eles, são malandrinhos, não devemos dar dinheiro para acabar com isso. Olhei para o banco de trás, vi meu filho (quatro anos) e minha filha (sete anos) coradinhos, dormindo. Respondi para ela: compare a situação deles com a dos teus filhos. Essas crianças certamente prefeririam de estar também dormindo no banco de trás de um carro, a caminho da casa da vovó.
ResponderExcluirÓtimo tema, bem escolhido.
Ótimo título, também.
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