Abelha rainha
Hirtis
Lazarin
Quem
diria que aquela garotinha se transformaria numa jovem tão inconsequente? Uma garotinha que chegou a esse mundo pra
trazer esperança, alegria e vida a um casal que a esperou por quase dez anos?
Uma
criança mimada que cresceu não num quarto infantil rodeada de brinquedos, mas
num aposento de princesa.
Ana
Vitória descobriu bem cedo que tinha superpoderes naquela família. Usou e
abusou deles.
Aos
quatro anos, quis muito fazer balé,
igualzinho à menina do desenho animado.
Mas não entendia que bailarina não combina com pratos de macarronada
acompanhados de brigadeiro. A sapatilha
de ponta sofria cada vez que era obrigada a acomodar aqueles pesinhos
gorduchos. Vi muitas e muitas delas descartadas no cesto de lixo, boca aberta
pedindo socorro. A desistência só aconteceu depois de uma queda roliça no
“PLIE”.
Na
adolescência foi a vez do piano. “Quero
um piano. A Júlia tem piano. Adoro o som do piano. Quero
também tocar piano”. A ladainha durou alguns meses, até os pais conseguirem a quantia necessária.
Professores? Vários. Impossível tolerar tanto capricho e nenhum
talento.
Depois
veio a pintura e outras artes...
Eu
me angustio quando me lembro daquele corpinho jovem e gracioso carregando uma
menina que não sabia ouvir Não; que
esperneia e dá vexame se contrariada.
Pais batendo a cabeça nas paredes e cheios de culpa quando o erro foi só amar demais.
Ana
Vitória não se dava por vencida. A mente criativa e alerta, um farol iluminando
o mar bravio, criou um perfil falso nas redes sociais, uma rede de intrigas e
fofocas que se tornou a brincadeira mais gostosa de jogar. Misturava verdades e
mentiras, um jogo de xadrez onde movimentava as peças ao seu bel prazer. Criar
conflitos, brigas, inimizades era muito divertido.
Além
de embaralhar a vida dos amigos e colegas, mirava também a vida dos vizinhos.
Da janela do seu quarto de frente pra rua e protegida pelas cortinas, ela via,
ouvia e arquitetava planos. Bisbilhotar era o verbo que movia suas ações.
Era
uma noite chuvosa. Ela abriu parte da janela para o último cigarro. A rua
arborizada cobria-se de folhas soltas e levadas pela ventania intensa e
passageira. Um carro com faróis desligados apontou na esquina. Deslizava
silenciosa e morosamente. Parecia à procura de algo sem chamar a atenção. Ana Vitória apagou a luz e o cigarro.
Escondeu-se atrás da cortina. Não perderia essa oportunidade de ouro, uma boa
história de suspense pra espalhar. Do seu jeito, é claro.
O
carro parou onde havia sacos de lixo empilhados à espera do coletor que viria
só ao amanhecer. O ouvido aguçado prestou atenção no “tec tec” da
maçaneta que se abria. O motorista olhou pra todos os lados, rua vazia e
silenciosa; abriu a porta e desceu. Conferiu novamente a solidão, tirou
uma mala grande do banco de trás e escondeu-a entre os sacos de lixo acumulado.
Ao
retornar ao veículo, relâmpagos simultâneos fotografaram, detalhadamente, o
rosto do rapaz. Ana sufoca um grito
antes que ele denuncie sua presença ou acorde os pais. Ela conhece o rapaz que,
sorrateiramente, entra no carro e desaparece na escuridão. Aquilo não lhe
cheirava bem. Ali rolava um mistério.
Ela
reacendeu o cigarro não fumado. Mil pensamentos... O primeiro foi sair e abrir
a mala. Caminhou até a porta da sala e abriu-a cuidadosamente. Já descia as
escadas quando desistiu. Ainda bem que o bom senso nessa
hora venceu a curiosidade. Tentou dormir, mas como? Pegou o telefone e ligou ao serviço policial
e fez denúncia anônima. Sua ansiedade só diminuiu quando dois carros policiais
estacionaram em frente ao endereço indicado.
Sem
dificuldade, encontraram a mala e arrastaram-na
até o poste de luz mais próximo. O zíper estava quebrado. O couro resistente demorou a ceder. Foi um tempo agonizante até que conseguiram
abri-la. Dentro estava o corpo
desmembrado de uma mulher. Só foi
retirado do local quando o sol já ia alto e com autorização da polícia técnica.
Durante
as investigações, muitos moradores da rua foram convocados pra depoimento,
inclusive Ana Vitoria. Um “conflitaço” atormentava-a. A fama de fofoqueira, de
inventar e distorcer fatos e brincar com a vida das pessoas conspirava contra
ela. Não contou a ninguém o que viu. Essa decisão custou-lhe noites e dias de
tortura. A consciência pesava e a razão gritava: “Não conte nada”.
Numa
dessas noites em que não conseguia pregar os olhos, a perturbação era tanta que
não sabia mais o que fazer. Acendeu a luz, tomou um calmante e,
displicentemente, buscou um livro na estante. Qualquer um serviria. Um deles veio ao chão aberto numa página
qualquer.
A
moça nem se deu ao trabalho de ler o índice e começou a ler o texto que se
apresentou espontaneamente. E, ali, num canto “ESCONDIDO”, estava escrito: “ Síndrome de Abelha – tem
gente que pensa que é rainha, mas é apenas um inseto”.
Ela
leu e releu essa frase milhões de vezes.
Copiou-a num cartaz em letras garrafais e colou-o em seu quarto.
Hoje,
é na terapia intensiva que Maria Vitória busca forças pra se libertar do prazer
que o vício da fofoca lhe proporciona e da sensação de empoderamento que a faz
sentir superior aos outros.
E,
quem sabe, esclarecer o assassinato da mala, até então não esclarecido.
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