Tudo vale a pena quando a alma não é pequena
Hirtis Lazarin
Ela olhou-se no espelho antes de deixar o quarto
pequeno e bem organizado.
Cabelos volumosos e ondulados, revoltos em flocos
acinzentados, um batom rosa claro cintilava nos lábios não tão carnudos quanto
outrora e um colar de pérolas miudinhas que nunca desgrudou do seu
pescoço. Ajeitou a gola do vestido azul marinho, decote em X, deixando à
mostra o contorno do busto avantajado.
Deu meia volta, aprovou a imagem refletida e
completou o ritual com um perfume delicado, escolhido entre os muitos que
enfeitavam o criado mudo.
Desceu as escadas com cautela para não se perder no
salto. Era teimosa e infringia as normas da casa.
A sala de estar era espaçosa e confortável para
atender pessoas exigentes. As poltronas espalhadas eram macias e o tecido
brilhoso indicava que foram compradas recentemente. Um arranjo de flores
frescas coloria uma mesinha de canto entalhada em madeira nobre. Um
burburinho de vozes, às vezes, um mais acalorado atrapalhava o bate-papo de
alguém que contava retalhos da vida.
Dona Dora, a loirinha dos olhos azuis, tricotava ao
lado de Jurema. Jurema folheava rapidamente uma revista e não conseguia
ler. Já perdera os óculos incontáveis vezes e tinha medo de contar à
filha. Seu Geraldo era o mais velho da casa e não tinha travas na
língua. Outros cochilavam...
Laurita chegou despercebida e sentou-se ao piano.
Os primeiros acordes foram capazes, não só de atrair a atenção do pequeno
público como também de ouvir gritinhos acanhados solicitando melodias.
Depois de atender a vários pedidos, levantou-se,
fez um gesto de agradecimento e recostou-se numa poltrona afastada das demais.
Laurita era uma senhora de fino trato.
Construía as frases com correção e pronunciava com destaque os “R” e “S” das
palavras. Foi atriz de teatro e conquistou todas as glórias que a carreira pode
oferecer. Sempre rejeitou trabalhos na T.V., pois nada era mais gratificante
que o contato direto com o público. O aplauso é a energia que fortalece o
artista.
Foi feliz no casamento enquanto durou...
Acreditou que, juntos, tivessem descoberto a chave mágica do companheirismo, do
respeito e da tolerância. Com muito trabalho e dedicação, o casal conquistou um
patrimônio que lhe permitia desfrutar os prazeres da vida e garantia uma
velhice saudável.
O trabalho de Laurita passou a exigir apresentações
fora da capital e as viagens tornaram-se rotineiras. E, não raras vezes,
Arturo, envolvido em negócios da empresa, mão pode acompanhá-la. E, foi
assim, que as oportunidades de traição começaram. Começou sem querer e se
tornou rotineira.
Envolvida em muitos ensaios e eventos, ela se
descuidou das finanças, pois a confiança absoluta que sempre depositou no
esposo garantia-lhe tranquilidade.
Tudo desmoronou quando o gerente do banco a
convocou para uma reunião secreta. Saldo vermelho na conta corrente, a casa
hipotecada e uma solicitação de empréstimo.
Não havia outra saída para ela senão a separação,
acreditar nos seus quarenta e três anos e canalizar a dor no trabalho com
paixão.
Quantas vezes, o cansaço emocional, o desânimo e o
desespero chegavam... Mas, a força da alma feminina ia derrubando os
obstáculos.
Hoje, Laurita tem setenta e oito anos e vive numa
Casa de Repouso. Está feliz e usa sua arte para fazer o que mais
gosta: preencher seu tempo e daqueles que se tornaram sua família.
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