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segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Os seios das plantas - Pedro Henrique

 




Os seios das plantas

Pedro Henrique

 


“Foi com esse barro que me dei um deus, feito à minha imagem e semelhança, e que tudo viu. Cada coração, cada fígado, cada genitália. Todos os céus e infernos e silêncios.”

 

- Carla Madeira




“Foi com esse barro que me dei um deus, feito à minha imagem e semelhança, e que tudo viu. Cada coração, cada fígado, cada genitália. Todos os céus e infernos e silêncios.”

Carla Madeira



      Seus místicos poderes varriam para a rua das almas insaciadas o antídoto da cura de suas interrogações.
     A vidente, com seu sábio mapa, gabava-se de, por intermédio dele, fazer avidamente emergir os mais viscerais mistérios dos abismos que eram as mentes daqueles insetos histéricos que clamavam por seu auxílio.
     Atendia em uma ínfima tenda em uma segregada vila medieval. Lá, onde o sol não boceja, ela subjugava com maestria o abençoado dom que lhe fora transpassado pela matriarca de sua pobre família.
     Era, com recorrência, objeto das senhoras sem amparo que procuravam em seus atributos a costura das lacunas em relação a seus amados cônjuges.
     Dizia: ah, minha cara, veja, veja como ri nos seios das outras, veja como se submerge ao afago alheio, olhe, o mapa revela tudo, mostra tudo…
     Com isso, foi ganhando projeção e seu nome, levado pelos ventos longínquos, chegou a Aurélia.
     Moça edênica, que detinha sob a sola de seus pés a estima dos deuses. Fora, indubitavelmente, forjada a mel e porcelana, porém, não se engane, tal era a beleza, tal era a altivez.
     A menina, ao entrar na tenda da velha, observou parcimoniosamente o local, concedendo-lhe os seus mais hostis julgamentos e desdém. Fato é que não se tratava de um ambiente receptivo aos olhos, todavia seu conteúdo era o que acorrentava o estrangeiro à resiliência da estadia.
     Sendo assim, Aurélia sentou-se no local reservado à clientela e minutos depois ouviu seu nome soar de uma voz depenada pelo tempo e temerosa.
     Fico assustada? Sim, defrontou-se com tal sentimento de olhos vivos e sombrios, porém levantou-se de queixo erguido e seguiu o caminho que inferiu ser o da sala de atendimento.
     Ao chegar, deteve-se com uma senhora de baixa estatura e cujos cabelos grisalhos pareciam não ser penteados há séculos.
     Sentou-se, demonstrando indiferença àquilo tudo. A senhora trancou a porta e se posicionou, paulatinamente, defronte à garota. Essa demora toda incomodou Aurélia que, dadas as oposições do altruísmo e empatia pela idade da vidente, explanou:
     “Quanta demora, devo assegurar-lhe que meu tempo é precioso, portanto quanto mais breve for esta conferência, melhor me sentirei.”
     A vidente, então, encarou-a com um olhar que denunciava uma cuidadosa análise dos átomos que constituíam aquele organismo petulante que se sentava à sua frente.
     “Perdoe-me, senhora, entretanto, devo adverti-la que a espiritualidade solicita veementemente de nós calma. Nada se faz com ânsia de breve conclusão. As coisas, se forem bem feitas, exigem o exercício do tempo. Veja: o próprio criador precisou de sete dias para fazer desabrochar do mais absoluto nada tudo o que vemos ao nosso redor, quem sou eu, uma pobre vidente, para querer me opor aos ensinamentos do sagrado?”
     A moça bufou e colocou-se alheia aquela afirmação, apenas disse:
  “Vamos logo com isso.”
  “Como quiser.”
     Dito essas palavras, abriu o mapa. Ao olhá-lo, Aurélia mergulhou inerme na perplexidade.
     “Não há nada neste mapa.”
     “Aos teus olhos não, mesmo, todavia o nada, se observado com zelo e calma, pode revelar o tudo.”
     As palavras primeiro pairaram sobre a moça, em seguida, de forma gradual, adentraram silenciosas as salas, fechadas por cortinas ásperas e grossas, de sua alma e, com esforço, abriram uma fresta.
     “Ah, ah, sim, olhe, olhe como toda engrenagem se movimenta com esmero e o oculto ganha músculo, corpo e vida. Vejo, vejo. Há bailes e há seu rosto formoso neles, és disputada pelos cavalheiros da sociedade e se deleita com tal devoção a ti concedida. É a Cleópatra das ruas, mãe dos corações humildes e simplórios.
     Corta-os com faca amolada em sombras. Escarnece-os e os subjuga conforme tua vontade. Observo e até admiro o teu poder.
     Também, ah, sim, também noto família, pessoas bem aceitas e encaixadas nos motores sociais, és querida, és Aurélia.
     Ah… cheguei onde queria, no verdadeiro imbróglio que a trouxe aqui: o amor.
     Hum… hum… HUM…, sim, sim, sim… beijos e mais beijos, amiga, fogo, carne e fervor. Dor, amiga e mágoa. Traição, paixão e amiga. Cavalheiro, amiga e roubo...

A vidente encara Aurélia, que pasma com as flechadas diretas e furiosas atiradas contra si, vê seu lindo rosto ser tomado por solitárias lágrimas que há muito aprisionara no porão do esquecimento com correntes resistentes, que perduram os séculos e milênios.
“Ele ressurgiu em sua vida, minha cara?”
     Aurélia fica imóvel, sabia que veio até aqui com sede de saber o óbvio: quer ceder ao seu amor, porém ele merece?
     Essa resposta ela teme mais do que tudo ouvir neste momento. É brutal, não tem recursos necessários em si para sustentar, com mãos de ferro, a ponte que cai matando todos que nela há. É um fluxo muito veemente para seu frágil corpo feito de carne e osso.
     Portanto, como não há mais nada a ser dito, entrego com prazer o fenômeno à poesia, para que, neste pequeno fragmento do instante, ela descortine, com suas sedosas mãos, o funesto fato.
     Assim versa: dos seios das flores, que ao redor da tenda construíram sua morada, verte o líquido do real, que para a moça é objeto de espanto e do qual se recusa a degustar, porque a verdade é um ramo de espinhos venenosos cujo toque pode levar ao jazer eterno na terra fúnebre da vida.

 

      

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