Os seios das plantas
Pedro Henrique
“Foi com esse barro que me dei um deus, feito à minha imagem e semelhança, e
que tudo viu. Cada coração, cada fígado, cada genitália. Todos os céus e
infernos e silêncios.”
- Carla Madeira
“Foi com esse barro que me dei um deus,
feito à minha imagem e semelhança, e que tudo viu. Cada coração, cada fígado,
cada genitália. Todos os céus e infernos e silêncios.”
Carla
Madeira
Seus místicos poderes varriam para a rua das almas insaciadas o antídoto
da cura de suas interrogações.
A vidente, com seu sábio mapa,
gabava-se de, por intermédio dele, fazer avidamente emergir os mais viscerais
mistérios dos abismos que eram as mentes daqueles insetos histéricos que
clamavam por seu auxílio.
Atendia em uma ínfima tenda em uma
segregada vila medieval. Lá, onde o sol não boceja, ela subjugava com maestria
o abençoado dom que lhe fora transpassado pela matriarca de sua pobre família.
Era, com recorrência, objeto das
senhoras sem amparo que procuravam em seus atributos a costura das lacunas em
relação a seus amados cônjuges.
Dizia: ah, minha cara, veja, veja
como ri nos seios das outras, veja como se submerge ao afago alheio, olhe, o
mapa revela tudo, mostra tudo…
Com isso, foi ganhando projeção e
seu nome, levado pelos ventos longínquos, chegou a Aurélia.
Moça edênica, que detinha sob a sola
de seus pés a estima dos deuses. Fora, indubitavelmente, forjada a mel e porcelana,
porém, não se engane, tal era a beleza, tal era a altivez.
A menina, ao entrar na
tenda da velha, observou parcimoniosamente o local, concedendo-lhe os seus mais
hostis julgamentos e desdém. Fato é que não se tratava de um ambiente receptivo
aos olhos, todavia seu conteúdo era o que acorrentava o estrangeiro à
resiliência da estadia.
Sendo assim, Aurélia
sentou-se no local reservado à clientela e minutos depois ouviu seu nome soar
de uma voz depenada pelo tempo e temerosa.
Fico assustada? Sim,
defrontou-se com tal sentimento de olhos vivos e sombrios, porém levantou-se de
queixo erguido e seguiu o caminho que inferiu ser o da sala de atendimento.
Ao chegar, deteve-se com
uma senhora de baixa estatura e cujos cabelos grisalhos pareciam não ser
penteados há séculos.
Sentou-se, demonstrando
indiferença àquilo tudo. A senhora trancou a porta e se posicionou,
paulatinamente, defronte à garota. Essa demora toda incomodou Aurélia que,
dadas as oposições do altruísmo e empatia pela idade da vidente, explanou:
“Quanta demora, devo
assegurar-lhe que meu tempo é precioso, portanto quanto mais breve for esta
conferência, melhor me sentirei.”
A vidente, então,
encarou-a com um olhar que denunciava uma cuidadosa análise dos átomos que
constituíam aquele organismo petulante que se sentava à sua frente.
“Perdoe-me, senhora,
entretanto, devo adverti-la que a espiritualidade solicita veementemente de nós
calma. Nada se faz com ânsia de breve conclusão. As coisas, se forem bem feitas,
exigem o exercício do tempo. Veja: o próprio criador precisou de sete dias para
fazer desabrochar do mais absoluto nada tudo o que vemos ao nosso redor, quem
sou eu, uma pobre vidente, para querer me opor aos ensinamentos do sagrado?”
A moça bufou e colocou-se
alheia aquela afirmação, apenas disse:
“Vamos logo com isso.”
“Como
quiser.”
Dito essas palavras, abriu
o mapa. Ao olhá-lo, Aurélia mergulhou inerme na perplexidade.
“Não há nada neste mapa.”
“Aos teus olhos não,
mesmo, todavia o nada, se observado com zelo e calma, pode revelar o tudo.”
As palavras primeiro
pairaram sobre a moça, em seguida, de forma gradual, adentraram silenciosas as
salas, fechadas por cortinas ásperas e grossas, de sua alma e, com esforço,
abriram uma fresta.
“Ah, ah, sim, olhe, olhe
como toda engrenagem se movimenta com esmero e o oculto ganha músculo, corpo e
vida. Vejo, vejo. Há bailes e há seu rosto formoso neles, és disputada pelos
cavalheiros da sociedade e se deleita com tal devoção a ti concedida. É a
Cleópatra das ruas, mãe dos corações humildes e simplórios.
Corta-os com faca amolada em
sombras. Escarnece-os e os subjuga conforme tua vontade. Observo e até admiro o
teu poder.
Também, ah, sim, também
noto família, pessoas bem aceitas e encaixadas nos motores sociais, és querida,
és Aurélia.
Ah… cheguei onde queria,
no verdadeiro imbróglio que a trouxe aqui: o amor.
Hum… hum… HUM…, sim, sim,
sim… beijos e mais beijos, amiga, fogo, carne e fervor. Dor, amiga e mágoa.
Traição, paixão e amiga. Cavalheiro, amiga e roubo...
A
vidente encara Aurélia, que pasma com as flechadas diretas e furiosas atiradas
contra si, vê seu lindo rosto ser tomado por solitárias lágrimas que há muito
aprisionara no porão do esquecimento com correntes resistentes, que perduram os
séculos e milênios.
“Ele ressurgiu em sua vida, minha cara?”
Aurélia fica imóvel, sabia
que veio até aqui com sede de saber o óbvio: quer ceder ao seu amor, porém ele
merece?
Essa resposta ela teme
mais do que tudo ouvir neste momento. É brutal, não tem recursos necessários em
si para sustentar, com mãos de ferro, a ponte que cai matando todos que nela
há. É um fluxo muito veemente para seu frágil corpo feito de carne e osso.
Portanto, como não há mais nada a
ser dito, entrego com prazer o fenômeno à poesia, para que, neste pequeno
fragmento do instante, ela descortine, com suas sedosas mãos, o funesto fato.
Assim versa: dos seios das flores,
que ao redor da tenda construíram sua morada, verte o líquido do real, que para
a moça é objeto de espanto e do qual se recusa a degustar, porque a verdade é
um ramo de espinhos venenosos cujo toque pode levar ao jazer eterno na terra
fúnebre da vida.
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