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sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Brincar - Pedro Henrique

 

    


Brincar

Pedro Henrique

 

     Quando eu era pequena, imaginava que a dor era minha amiguinha, porque eu e ela sempre brincávamos. Podia ser a hora que fosse: quando mamãe me chamava de imprestável, quando minhas irmãs arrancavam meus cabelos com seus dedos perversos ou quando todos rejeitavam ficar perto de mim.

     Independentemente de tudo isso, eu e ela nunca nos separamos. Era como se entre nós duas existisse um pacto, uma coisa só nossa, do qual o resto do mundo não era bem-vindo. E, quando ela sumia por muito tempo, eu sentia sua falta.

     Às vezes, imaginava que ela tinha ido brincar lá na rua com as outras crianças e que depois voltaria para brincar comigo, porque ninguém brincava comigo.

     As pessoas se ressentiam de mim, diziam que eu era doida. Eu até gostei dessa palavra. Doida. Legal, né?

     Um dia, um coleguinha da minha escola falou que a mãe dele disse que era para ele ficar longe de mim, porque eu era maluca e poderia lhe fazer mal.

     No início, ouvir aquilo foi como andar e, de repente, sentir um prego rasgar minha carne e morar dentro dela até chegar um adulto e arrancá-lo.

     Porém, eu não tinha nenhum adulto por perto, então apenas ri, até porque era impossível eu fazer mal a alguém. O que eu queria mesmo era brincar, apenas brincar.

     Mas, com o tempo, todas as outras crianças começaram a não chegar perto de mim por eu ser doida, e eu passei a não gostar mais dessa palavra.

     Perguntei, certa vez, ao vovô Firmino o que era ser doida, e ele me respondeu que era uma coisa ruim. Perguntou por que eu estava falando aquilo. Disse a ele que meus coleguinhas da escola não queriam ficar perto de mim por eu ter essa coisa ruim.

     No começo ele estranhou, não entendeu muito bem o que eu estava dizendo, mas depois, como se uma lâmpada acendesse bem acima de sua cabeça, ele confidenciou-me que poderia me ajudar, que não seria muito difícil, bastaria apenas brincarmos.

     Escutar aquilo foi uma das experiências mais extraordinárias de toda minha vida, era como dançar balé no céu e ao olhar para baixo ver todos os meus amiguinhos enxergando-me, e pela primeira vez, eles não corriam de mim, mas sim, me admiravam.

     Entusiasmada, lembro de ter perguntado ao vovô se as outras crianças iriam querer brincar comigo depois de sua ajuda, ele respondeu alegre que sim. Então, quis sua ajuda mais do que tudo no mundo, pois finalmente todos iriam ver a minha dança.

     Vovô Firmino morava comigo, minhas irmãs, mamãe e Valdir. O homem que virou meu pai depois que o meu verdadeiro papai se transformou em estrelinha por mexer em um fio errado no trabalho.

     Vovó Neide também virou estrelinha, é por isso que o vovô Firmino morava com a gente. E que bom que ele morava com a gente porque assim ele poderia me ajudar.

     No entanto, ele só me ajudava quando mamãe e Valdir estavam no trabalho e minhas irmãs na escola. Contudo, isso não importava, o importante mesmo é que na manhã seguinte após a ajuda do vovô eu estaria curada e poderia brincar, e a primeira pessoa com quem eu queria brincar seria a Ana, porque ela tinha as melhores bonecas e os melhores giz de cera.

     Recordo de ter passado a noite inteira imaginando quantos desenhos lindos eu faria com aqueles gizes. Faria várias borboletas, casinhas e até uma sereia. Eu adorava sereias.

     Quando crescesse, queria ser uma.

Já tinha até imaginado a cor da minha cauda. Seria roxa com bolinhas amarelas em formato de estrela-do-mar, igual ao desenho que pensei em fazer com os gizes coloridos de Ana.

     Eu até pedi para mamãe comprar uma caixa de giz de cera igual à dela, mas ela falou que “não iria gastar o pouco da porra do dinheiro que ganhava limpando aqueles banheiros fedendo a mijo da rodoviária com uma garota que não presta pra nada a não ser encher o saco.”

     Naquele dia, senti uma nuvem carregada pairando sobre mim. Era como se os pingos dessa nuvem levassem consigo uma parte de quem eu era, até não existir mais nada, exceto o quintal, vazio e sem rosas que era morar em mim.

     Entretanto, o que mais me deixou triste era que sempre via mamãe dando o dinheiro que ganhava para Valdir. Bastava ele dar um soco no rosto dela e, pronto, ela o entregava.

     Pensei em dar um soco nela também. Achei que assim ela me daria a caixa de giz colorido, mas quando dei o soco, ele só pegou na sua perna.

     Ela me catou pelos cabelos e me bateu com a vara cheia de pontinhas pontudas que guardava no guarda-roupa. A vara arrancava do meu corpo uma gosma vermelhinha, bem molenga. Parecia uma slime feita de água.

     Sendo assim, eu sabia que a única forma de encostar naqueles gizes coloridos era se Ana me emprestasse. Porém ela não queria. Disse que nunca emprestaria seu material para alguém como eu. Até falou uma palavra estranha chamada “Síndrome de Down”. Você sabe o que é isso, leitor? Ah, depois que terminar a história você me conta. Não tem problema, eu não tenho pressa.

     Mas uma coisa que tenho pressa em contar a você é que não fiquei com raiva de Ana, não mesmo. O vovô sempre me falou que não podemos ter raiva de ninguém, e além disso, só de ir à escola eu já me sentia bem. Era mágico estar lá e ficar brincando com todos os brinquedos que o colégio oferecia e também tinha as tias que sempre ficavam comigo e deixavam eu fazer tranças nos cabelos delas e algumas vezes elas faziam tranças no meu também.

     No entanto, neste mesmo dia, no dia em que Ana rejeitou me emprestar o giz, me lembro de chegar em casa e não querer mais falar com o vovô, porque ele mentiu para mim. E, quando alguém mente para você, você deixa de falar com essa pessoa.

     Sendo assim, peguei seu ensinamento sobre não nutrir raiva por ninguém e coloquei na janela do meu quarto para os pássaros comerem.

     Mas mesmo assim, ele me obrigou a falar com ele. Disse que queria brincar comigo de novo. Quando recusei, ele me bateu de punho fechado, como Valdir faz com mamãe quando quer dinheiro.

     Então, de fininho, bem nas pontas dos pés, a dor veio, atravessando a sala, passando pelo corredor, abrindo a porta do meu quarto e como de costume, me chamando para brincar.


Um dia memorável - Alberto Landi

 





Um dia memorável

Alberto Landi

 

Paris, 2 de dezembro de 1804.

 

Era um domingo frio de inverno, a neve caía suavemente cobrindo tudo como um manto branco. Apesar de o tempo estar bem severo, sentia uma empolgação especial por visitar Catedral de Notre-Dame.

Antes de sair, vesti-me adequadamente para o clima: casaco longo bem quente, luvas, um cachecol para proteger a parte superior do corpo, pois o vento estava cortante.

Sabia que a caminhada seria desafiadora, até a Catedral, mas mesmo assim estava determinado.

Ao colocar o pé para fora de casa, deparei-me com a beleza suave da neve. Cada passo produzia um som suave, havia gravetos em alguns lugares misturados com a neve, criando um contraste interessante entre o branco puro e os tons terrosos.

A paisagem era mágica. As árvores cobertas de flocos brancos, a camada branca sobre os telhados e janelas caía suavemente como um manto de tranquilidade que transformava a paisagem em um cenário de conto de fadas, onde cada floco parecia dançar no ar antes de se acomodar suavemente transformando as casas em pequenas obras de arte. No ar, havia cheiro de madeira aquecida proveniente das residências e a visão do vapor saindo das chaminés era encantadora, dava uma sensação de calma.

Embora a beleza ao meu redor fosse hipnotizante, o tempo estava implacável. Precisava ter cuidado com o chão escorregadio para seguir em frente. Pessoas se apressavam para chegar aos seus destinos, enquanto outras se divertiam na neve.

Após uma caminhada um tanto longa e contemplativa, avistei finalmente a catedral, mas ainda no trajeto notei que as janelas das casas estavam embaçadas e poucos ousavam sair para enfrentar o clima rigoroso, porém a maioria das pessoas já havia ido cedo para a catedral, onde a história seria feita.

O ar estava impregnado de uma quietude solene como se a cidade estivesse prendendo a respiração em antecipação ao evento monumental que estava prestes a ocorrer. 

A Notre-Dame com a sua imponente estrutura, suas torres pareciam tocar o céu, irradiando uma sensação de grandeza e espiritualidade que encantavam todos os que a contemplavam, os pináculos acumulavam neve criando uma imagem deslumbrante. As gárgulas estavam todas tingidas de branco como se estivessem guardando um tesouro gelado.

Os sinos ecoavam, chamando os fieis e curiosos para dentro de suas paredes sagradas.

No interior, tochas iluminavam o espaço grandioso, refletindo nas colunas de pedra e nos vitrais coloridos que contavam histórias de um passado glorioso.

Os nobres e demais autoridades estavam vestidos em trajes luxuosos, trajavam capas pesadas de veludo adornadas com bordados finos, enquanto as mulheres vestiam elegantes vestidos de seda decorados com rendas delicadas e detalhes brilhantes.

O murmúrio da multidão se misturava ao som dos acordes, criando uma sinfonia vibrante que preenchia o ar com uma energia contagiante enquanto risos e conversas se entrelaçavam em um ambiente festivo.

Próximo à entrada, as carruagens dos nobres e dignitários estavam parados. A luz do entardecer dava um brilho e o efeito luminoso sobre as carruagens, que provavelmente eram feitas de materiais como metal polido ou madeira envernizada, refletiam de maneira atraente.

O murmúrio das conversas entre eles ecoava suavemente no ar gelado, enquanto olhares curiosos se dirigiam a catedral majestosa onde algo grandioso estava prestes a acontecer.

Assim que a imensa porta se abriu, um silêncio reverente envolveu os presentes.

Napoleão e Josephine adentraram com uma presença marcante, seus passos firmes ecoando no piso de pedra.

Eram figuras imponentes envoltas em trajes luxuosos que flutuavam ao redor deles, exalando um ar de triunfadores.

Os olhares estavam fixos no casal, como se o próprio destino tivesse escolhido para selar o momento histórico que estava prestes a acontecer.

Os sinos tocavam com mais intensidade simbolizando a magnitude do momento e a importância do casal. Era uma reverência pela nova era que Napoleão estava trazendo.

Os fiéis reunidos, velas acesas lançando uma luz suave sobre os rostos emocionados. O som de cantos vindos do fundo do altar reverberava nas paredes altas, e o aroma de incenso envolvia o ambiente, criando uma atmosfera de devoção e espiritualidade que tocava profundamente os corações presentes.

Este evento não foi apenas uma cerimônia religiosa, mas também um ato político significativo que consolidou o poder de Napoleão como imperador.

Ele havia se elevado rápido na hierarquia política e militar da França pós-revolução francesa.

Decidiu se coroar como imperador, estabelecendo assim o primeiro império francês.

Durante a cerimônia, fez algo bastante notável. Pegou a coroa das mãos do Papa Pio VII e colocou em sua própria cabeça. Foi um gesto poderoso que simbolizava sua independência e a ideia de que ele não dependia da aprovação da Igreja para governar. Em seguida, coroou Josephine como imperatriz. Buscou legitimar seu governo através deste ato cerimonial, criando uma imagem de poder que seria crucial para suas campanhas militares subsequentes.

Isto foi um ponto culminante na sua ascensão e um precursor dos eventos tumultuosos que se seguiriam, durante sua Era.

Este foi um dia memorável para mim, que tive a oportunidade de assistir ao evento, repleto de solenidade e emoção, onde cada detalhe parecia ser cuidadosamente planejado, desde os trajes elaborados até os discursos inspiradores que ecoavam nas mentes e corações de todos os presentes.  

 

 

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