FÉ
DE MAIS OU INGENUIDADE?
Helio Salema
No início dos anos 50 na pequena cidade de Santa
Felicidade chegou o novo padre para o lugar do padre Honório, falecido
recentemente.
No primeiro contato com os fiéis ele demonstrou ser muito
simpático e não tão rigoroso quanto o seu antecessor. Falava com muita
naturalidade sobre o seu passado de dificuldades, a sua fé em Deus e no futuro
da humanidade.
Além de padre, era também um amigo para todas as horas e
situações. Várias vezes foi chamado para resolver briga de vizinhos ou até
mesmo de família. Sua calma, voz suave e paciência para ouvir, muito
contribuíram para resolver os conflitos. Assim foi conseguindo a confiança
total das pessoas que o procuravam, em momentos difíceis ou até mesmo de
desespero.
Aquela situação de salvador de todos o fez, aos poucos,
mudar sutilmente seu comportamento. Passou a exigir confissões dos fiéis pelo
menos uma vez por semana.
Com bastante habilidade conseguiu estimular até
confissões íntimas de alguns.
Algumas pessoas não tiveram nenhuma dificuldade em
relatar coisas, que até aquele momento, jamais haviam pensado em revelar.
Outras com muito custo e graças à insistência do padre se expuseram a tal ponto
de mencionar fatos que antes não tinham sequer coragem de pensar.
Para aquelas que não aceitavam tal exigência, por não
terem facilidade em se expressar ou por não verem necessidade, ele alegava ser
necessário, sim, para o desenvolvimento espiritual de cada um ou ficaria esse
sofrendo junto aos maus espíritos.
Severino que era frequentador antigo e contumaz de
igreja, principalmente, depois de ficar viúvo, chegou a duvidar da sinceridade
das palavras do novo sacerdote. Mais desconfiado ficou, ao passar certa noite e
ver uma senhora saindo apressada da porta lateral da igreja. Porta esta que
dava acesso aos aposentos do padre. Assim que ela virou a esquina, Severino
correu na esperança de alcançá-la. Quando chegou na esquina viu a rua
totalmente deserta, todas as casas às escuras. Ficou por alguns segundos
pensando se era uma pessoa, apenas um vulto, assombração ou alma de outro
mundo. Desesperançoso e ofegante voltou para casa. Assim que entrou ajoelhou-se
e rezou por um longo tempo.
Por vários dias ficou tentando lembrar-se de detalhes.
Altura, tipo de roupas, mas nada de especial que pudesse ajudar na
identificação. Até mesmo a sombrinha era semelhante às outras que ele via
na rua. Resolveu então caminhar à noite passando várias vezes pelo mesmo local.
Cada dia mais desanimado ficava.
Com a chegada da Semana Santa várias famílias retornaram
a Santa Felicidade, aproveitando o feriado para rever os familiares e amigos.
Foram dias de muita alegria para os moradores daquela pequena e sossegada
cidade. Severino pôde rever amigos, saber das novidades da capital e também
sentir a falta de outros que desta vez não vieram.
Mas teve a satisfação da presença de Agostinho, sobrinho
de sua falecida esposa. Embora estivesse ausente de sua cidade natal por quase
duas décadas, o encontro dos dois foi muito festivo. Severino lembrou-se da
companhia do Agostinho nas pescarias e este, das aulas do tio nos jogos de
dama. A cada momento que eles se recordavam de algum momento especial, riram
como duas crianças em dia de Natal. Agostinho, porém, interrompeu a euforia
quando perguntou sobre o padre:
— Tio quem é esse padre novato que está querendo
“bagunçar” com a fé e a cabeça das pessoas?
— Ehh! Também a minha cabeça anda “sacolejando”. Não sei
onde isso vai parar.
— Ainda bem que eu não frequento igreja, mas acho que as
pessoas precisam ser respeitadas.
Subitamente, chegam até eles outros amigos do Agostinho.
Após um pouco de prosa, eles se despedem de Severino e seguem para se reunirem
com outros amigos de infância.
Mesmo a contragosto, Severino decidiu fazer uma comunhão
semanal. Aproveitava também para uma longa conversa com o padre, tentar assim
ganhar a confiança dele e quem sabe em algum momento ter uma revelação.
Ao contrário, foi Severino quem acabou desabafando. Num
momento de fraqueza revelou um segredo antigo. Uma tentativa de estrupo. Não
concretizado por interferência de familiares da vítima. Para evitar ser
agredido teve que sair, imediatamente, daquela localidade e nunca mais voltar.
Na semana seguinte, durante um sermão, o padre falou do
terrível pecado do estrupo. Mesmo quando impedido. O fato de haver a insana
intenção já era objeto de condenação sumária.
Afirmou que alguém ali presente havia sido autor, em
outros tempos, o que não a exime da culpa.
Severino sentiu a punhalada, forte e certeira, no seu
coração. Minutos depois saia arrasado e se arrastando, moralmente.
No dia seguinte pela manhã, várias viaturas da polícia da
capital entravam em Santa Felicidade.
Alvoroço na praça, no armazém, nos botecos. Toda a cidade
assustada com aquela cena jamais vista. Maior surpresa quando estacionaram em
frente à igreja.
Os policiais aguardavam a abertura da porta. Minutos
passaram e as especulações iam aumentando. Quando vários policiais saíram
correndo para o lado da igreja onde o padre vestido como um cidadão comum
tentava escapar em direção à mata. Parecia cena de filme.
Não conseguiu ir muito longe. Apanhado, não resistiu.
Entrou na viatura de cabeça baixa, sem olhar para os lados.
Com a chegada do Sr. Prefeito, o oficial de justiça o
comunicou que alguém na capital havia pedido investigação sobre o padre. Com um
retrato tirado quando o padre fazia um batizado foi possível reconhecê-lo. Já
foi preso, duas vezes, por aplicar golpes em comerciantes e tentativa frustrada
de estrupo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
DEIXE AQUI UMA MENSAGEM PARA O AUTOR DESTE TEXTO - NÃO ESQUEÇA DE ASSINAR SEU COMENTÁRIO. O AUTOR AGRADECE.