FOI POR
UM TRIZ – AS AVENTURAS DO LEOZINHO
Leon Vagliengo
Você
tem sonhos espontâneos quando dorme; acordado, sonha também quando a sua mente
divaga por ideias e pensamentos felizes; tem fantasias, quando se imagina
realizando sonhos; é místico, quando crê em Entidades sobrenaturais; e conhece
o fantástico quando Elas te socorrem.
Quando eu nasci, alguém me presenteou
com uma medalha de prata do Anjo da Guarda. Infelizmente já não me recordo de
quem recebi esse carinho, mas lhe sou muito grato e conservo a medalha com
muito amor e devoção até hoje, mais de setenta anos depois.
Tantos momentos perigosos,
dramáticos, que vivenciei e superei incólume ao longo de minha vida, fizeram
com que eu desenvolvesse uma grande fé na proteção recebida de meu Anjo da
Guarda. E não apenas isso, muita
proteção recebi, também, para superar as minhas limitações e dificuldades, em
situações que foram decisivas para o meu destino.
Alguns acontecimentos de minha infância
e juventude ficaram gravados de forma indelével em minha memória pela gravidade
das circunstâncias em que ocorreram, e ainda permanecem vívidos, nunca se
apagam, como estes que passo a situar e narrar.
<<<< O >>>>
I – Recordações de uma viagem.
Estive em Mongaguá pela primeira vez em
mil novecentos e cinquenta e um, e tive o privilégio de conhecê-la como era
então: uma pequena, distante, tranquila, deliciosa localidade à beira da Praia
Grande, subordinada ao município de Itanhaém, no litoral sul de São Paulo. É cortada
ao meio pelo Rio Mongaguá, o maior dos que cruzam a praia antes de Itanhaém, que
impedia a passagem dos veículos que na época transitavam pelas areias da praia.
A linha férrea de Santos a Juquiá servia a toda a região, e nessa oportunidade lá
chegamos de trem.
Dessa minha primeira viagem restaram muitas lembranças.
Quase todas as ruas de Mongaguá eram de
areia, sem calçamento, mal definidas, com
uma rala vegetação rasteira que se espalhava pelo solo, produzindo pequenos
ouriços que grudavam dolorosamente espetados nos pés de quem os pisasse
descalço. Depois que pisei alguns, os meus pais me compraram um par de
alpargatas, daquelas feitas de brim, com aquele estranho solado de corda. A
estação ferroviária, o hotel, uma igrejinha
do outro lado do rio em relação ao hotel, uma pequena ponte para viabilizar a
passagem dos veículos, já longe da praia, mais para dentro da cidade, algumas
casas e muitos terrenos vazios, além da praia e do mar, eram os
elementos que compunham um cenário silencioso e encantador.
O Hotel Club Marinho, em Mongaguá,
pertencia a um casal já idoso quando os conheci, muito simpático e carinhoso
com seus hóspedes, especialmente, posso dizer, com um menino de apenas quatro
anos, que era eu nessa primeira vez em que lá nos hospedamos. A filha deles, a
senhora Chiquita, colega do meu pai, trabalhava no setor de pessoal do Banco do
Brasil, em São Paulo, e eventualmente intermediava as reservas e hospedagens
para os colegas interessados. Foi ela quem tomou algumas das providências
e orientou a nossa viagem.
Instalado num prédio à beira mar, com dois andares
além do térreo, o hotel era muito agradável e
acolhedor. Passados setenta anos, lembro-me bem, ainda, de seu agradável cheiro
de asseio, de suas escadas com degraus escuros e sonoros, em madeira, e das
refeições deliciosas preparadas em sua cozinha, degustadas no refeitório
próprio, bem instalado, mesas com toalhas branquinhas e lindos talheres que
incluíam as facas especiais para peixes, pouco comuns, que lá conheci.
Logo fiz um amigo, um solitário senhor alemão de
meia idade, que me dedicava muita paciência e atenção. Conversava comigo num
português meio atrapalhado e era hóspede do hotel. Fez amizade com meus pais e
ficou algumas vezes conosco na praia, conversando com eles e brincando comigo,
me ensinando a manusear a areia molhada para fazer pequenos castelos e
estradinhas com túneis, onde passávamos os carrinhos de brinquedo.
Gostei de pisar descalço e brincar na areia, mas
fiquei muito assustado quando os meus pais me levaram para o primeiro banho de
mar. Fugi do mar, desesperado, e chorei com medo das ondas, enquanto meu pai e
minha mãe tentavam me convencer a voltar para a água. Medo maior passei, porém,
quando, ingenuamente, fui ver de perto uma galinha com ninhada no quintal do
hotel e ela avançou para mim, ameaçadora; percebi o perigo, corri, meu pai me
socorreu, mas não deu tempo: tomei uma bela bicada no traseiro. Aí doeu, chorei
de novo.
Mais do que tudo, lembro-me do
barulho das ondas no quebra-mar, que ouvíamos durante toda a noite, devido à
proximidade e ao silêncio absoluto existente além do som do mar, e que, ao
invés de perturbar nosso sono, tornava-o delicioso e relaxante. Para um menino,
tudo era novo, simples, encantador, memórias maravilhosas da vida começando...
Muitos anos depois passei por lá e
vi, com triste saudade, que o velho prédio que foi a sede do Hotel, reformado e
expandido, passou a abrigar a Prefeitura Municipal.
E aqui começa a narração da primeira
aventura anunciada no início, ocorrida no ano de mil novecentos e cinquenta e cinco, quatro
anos depois da primeira ocasião em que lá nos hospedamos:
O valente Citroën preto modelo onze
ligeiro, ano mil novecentos e cinquenta e um, seguia corajoso, em velocidade
apenas moderada devido aos cuidados impostos ao motorista, meu pai, pela forte
chuva que caia no litoral de São Paulo naquele fim de tarde. Já havíamos
passado a Ponte Pênsil de São Vicente em direção à Praia Grande, que ainda nem
era um município, e o destino final seria o Hotel Club Marinho, trinta
quilômetros ao sul, que teriam que ser percorridos pelas areias da praia, pois
naqueles idos dos anos cinquenta não havia autoestrada que fizesse essa
ligação. Não era a primeira ocasião em que fazíamos essa viagem.
Nesta vez, porém, a chuva incessante
alagava a estradinha estreita, e fortes jatos de água saltavam longe, para os
lados, a cada buraco ou depressão do asfalto precário atingido pelas rodas do
carro. Enquanto eram vencidos os cinco quilômetros da pequena estrada, da ponte
até a praia, a chuva foi aumentando, transformando-se em forte tempestade.
Dentro do carro crescia um clima de silenciosa
tensão, à medida em que nos aproximávamos da praia. Minha mãe, habitualmente
medrosa durante as viagens, desta vez estava perceptivelmente apavorada; mas
tinha razão quando disse a meu pai que voltasse, que não seria possível chegar
a Mongaguá naquelas condições. Eu tinha apenas oito anos e também estava com
medo, pois já sabia que teríamos que atravessar os muitos riachos que cortam as
areias, os quais estariam transbordando com as águas daquela tempestade. Seriam
trinta quilômetros de praia deserta, pois raras eram as casas em toda a praia.
Não haveria socorro em caso de uma eventual necessidade, que já se afigurava muito provável. Para completar
a situação, alguns trovões começaram a ser ouvidos.
Meu pai, porém, aos quarenta anos,
era um motorista destemido e adorava desafios ao dirigir. Naquele momento,
muito atento ao que fazia, parecia imperturbável. Ao final da estrada entrou na praia
conduzindo o carro vagarosamente, buscando orientar-se para direcionar o carro
paralelamente ao mar e seguir viagem em direção ao Sul.
À beira-mar o cenário era assustador.
O tempo, já bastante escuro pelo entardecer e também devido às pesadas nuvens,
pouco nos permitia enxergar; a água, torrencialmente vertida pela tempestade,
praticamente encharcava toda a orla, tornando impossível definir onde terminava
a faixa de areia e começava o mar. Nesse momento eu tive a exata sensação de que
o meu pai não direcionara o carro corretamente, e dirigia-se quase frontalmente
em direção ao mar. Felizmente ia muito devagar, devido às dificuldades causadas
pela tempestade. Apavorados, eu e minha mãe, mal respirávamos.
Creio que a entrada pela praia durou menos de um
minuto, mas, na perspectiva de um menino de oito anos, foi o minuto mais longo
e sofrido de minha existência. Subitamente não mais suportei a incerteza e, desesperado,
gritei para meu pai: “vira mais o carro, estamos indo para o mar!”.
Dos Céus, imediatamente, veio o socorro. Inesquecível!
Assim que gritei, um raio enorme, absurdo,
apareceu sobre o mar, bem próximo à praia, iluminando
espetacularmente, por alguns instantes, todo aquele cenário, como se fosse um
dia ensolarado, explodindo segundos depois com forte estrondo. Sem nenhum
exagero, creio que foi o maior raio que vi em toda a minha vida. O resplendor produzido
pelo raio nos permitiu perceber claramente que eu tinha razão: o carro estava de frente para o mar, apenas
um tanto enviesado, e pouco faltava para invadi-lo, já a poucos metros das
primeiras ondas; nem o valente Citroën se manteria em funcionamento para sair
das águas, se nelas entrasse.
Ante a clara visão proporcionada pelo
raio, a reação de meu pai foi imediata, esterçando rapidamente a direção para
voltar à estrada, em retorno à Ponte Pênsil.
Foi por um triz que não entramos no
mar com o carro.
Voltamos a São Vicente, pernoitamos
numa pensão e no dia seguinte seguimos para nossas férias em Mongaguá. Durante
o longo percurso pela praia, um belo dia de sol e o cheiro salgado do mar
predominavam em nossas sensações.
II – A caminho da escola
Os Citroëns, como o do meu pai, foram
carros muito admirados e cobiçados, desde o final dos anos quarenta, pelo menos
– e o são até hoje, por alguns colecionadores –, por várias características que
os diferenciavam dos demais carros. Praticamente todos pretos com rodas claras
amareladas em contraste, eram, naqueles tempos, os únicos carros com as
vantagens da tração dianteira; bastante velozes e ágeis, tinham a merecida fama
de não capotar, entre outras boas características.
Porém, as portas do motorista e do
passageiro ao seu lado eram consideradas perigosas porque abriam-se para a
frente e, em trânsito, numa eventual falha da fechadura, poderiam escancarar-se
repentinamente pela ação do vento, oferecendo grave risco a esses ocupantes,
mesmo porque, naquele tempo, os carros não eram equipados com cinto de
segurança.
Pois é...!
Eu ainda era aluno do curso primário,
aos dez anos de idade. Num dia de mil novecentos e cinquenta e sete, logo após
o almoço, o meu pai me levava para a escola em nosso Citroën. A escola era o
Instituto Dom Bosco, no Bom Retiro, bairro central de São Paulo. Na então recém
inaugurada avenida Santos Dumont, continuação da Avenida Tiradentes, o asfalto
novinho era um paraíso para ele, que deliciava-se dirigindo velozmente, “sentindo o carro”, como dizia e fazia, sempre que possível, mesmo na cidade.
Na ausência de minha mãe, eu ia
sentado no banco da frente. Num dado momento, já próximos da escola, resolvi
abrir e bater a minha porta porque a sua primeira trava escapou e ela ficou mal
fechada, fazendo algum barulho e ameaçando abrir-se.
Muitas vezes eu já fizera isso com a porta traseira, quando sentado no meu
lugar habitual de criança, sem nenhum problema, pois a força do vento, com o
carro em movimento, até ajudava a bater aquela porta, que abria para trás.
No mesmo instante em que eu,
ingenuamente, acionei a maçaneta, a porta se abriu de uma vez, me puxando para
fora do carro. Meu pai, num rápido e incrível reflexo, me agarrou pelas pernas
como pôde, sem soltar o volante, e eu fiquei
seguro por ele e pendurado, com a mão segurando na maçaneta, o corpo fora do
carro a partir da cintura, vendo o asfalto passar velozmente a uns vinte
centímetros do meu nariz, até que ele conseguiu dominar a situação e me trouxe
de volta para dentro do carro.
Incólume, mas foi por um triz.
O Citroën era mesmo um carro
emocionante, especialmente quando guiado por meu pai: ousado, mas muito
habilidoso e competente na direção.
No Citroën aprendi a dirigir aos doze
anos, justamente na Praia Grande, com a orientação de meu pai. Por isso,
também, a minha decepção foi profunda quando ele o vendeu, em mil novecentos e
sessenta, após dez anos de uso diário e intenso, para substituí-lo por um
Volkswagen.
<<<< O >>>>
III – A curva fechada e o mistério.
Com o advento da era Volkswagen em
nossa família, as coisas mudaram. Agora o meu pai trocava o carro a cada um ou
dois anos, mas sempre por outro Volkswagen. Carro prático, relativamente
barato, econômico, mecânica simples, assistência técnica farta, o Volkswagen
logo conquistou o gosto popular.
Quando eu me interessei pelo
Volkswagen, porém, não foi em razão de suas virtudes técnicas. Já adolescente,
sentia mesmo muita vontade de dirigir, mas ainda não tinha idade para isso, e
meu pai, corretamente, não o permitia. A única solução era “sair fora da lei” e
pegar o carro escondido para dar umas voltas sem destino pelo bairro,
aguentando a bronca depois. Vários amigos faziam o mesmo, e alimentávamos, uns
aos outros, a nossa ousadia, com o exemplo e o relato envaidecido de cada
aventura realizada.
Nessa época morávamos no Jardim São
Bento, na Zona Norte de São Paulo, um bairro muito convidativo para essas
perigosas travessuras, em razão de suas ruas asfaltadas e dos pouquíssimos
veículos que por elas transitavam. Travessuras perigosas porque, apesar da
habilidade que muitos do grupo desenvolveram, nas primeiras aventuras não a
tinham, mas não resistiam à tentação de fazer manobras arriscadas, estimulados
pelos amigos: andar em velocidade, derrapar nas curvas, dar cavalos-de-pau,
eram as mais comuns; acelerar forte no meio das curvas para “grudar” o carro no
chão, era preceito básico.
Numa tarde de sábado consegui pegar o
Volkswagen do meu pai e saí com dois ou três amigos, tão irresponsáveis quanto
eu, para dar umas voltas sem destino pelo bairro. Depois de dirigir algum tempo a esmo, subi a Rua Dom Domingo
de Silos, entrei na Rua São Mauro e, em seguida,
entrei à direita, na Rua Padre Ângelo Siqueira.
A Rua Padre Ângelo Siqueira é uma rua
relativamente curta, mas sinuosa. Era asfaltada como as outras do bairro, mas
com muitos buracos e irregularidades no asfalto em suas curvas e entre elas, o
que prejudicava a estabilidade dos carros. Começava com uma descida de uns
oitenta metros, vinha uma curva fechada à esquerda e, uns cinquenta metros e
vários buracos depois, outra curva, também fechada, à direita, formando um “s” e
iniciando uma subida de menor extensão que a descida. Ao lado esquerdo dessa
subida, logo além da guia, pois não havia calçada, uma longa e perigosa
ribanceira.
Desci a rua acelerando o carro, as
manobras teriam que ser feitas com rapidez. Fiz a primeira curva, para a
esquerda, num instante passei pelos cinquenta metros esburacados, e comecei a
esterçar a direção, já acelerando forte no meio da curva para a direita para “grudar”
o carro ao chão, quando um forte solavanco provocado por algum buraco fez com
que as minhas mãos escapassem do volante, e a força centrífuga gerada pela
curva brusca jogou o meu corpo sobre a porta do carro, onde fiquei grudado, por
um átimo, devido à pressão sofrida. No meio da curva perdi completamente o
controle do carro, que estava acelerado.
Num movimento reflexo e desesperado,
tão rápido quanto pude, me reequilibrei e retomei a posição ao volante, já certo
de que não teria mais como evitar que o carro pulasse a guia e rolasse a
ribanceira. Então, não entendi como, mas, inacreditavelmente, vi que o carro
estava perfeitamente alinhado com a rua, como se nada de anormal houvesse
acontecido.
Foi por um triz, o susto foi apavorante.
Acabou-se o passeio, voltei mansinho para casa.
Mas...ainda no caminho de casa, ainda
com o coração disparado, veio a estranheza: Como foi possível o carro ter
ficado tão bem alinhado com a rua, naquelas circunstâncias? Quem conduziu o
carro naqueles instantes em que estava completamente à solta? Até hoje, para
mim, que vivi o momento, é um mistério.
Ou não?
Mais tarde, já em casa e passado o susto, tentando
entender, lembrei e desconfiei, pela primeira vez, do Anjo da minha
medalhinha...
<<<< O
>>>>
IV – De repente, uma menina.
Já fazia cerca de um ano que eu
estava dirigindo habilitado. Menos imaturo e bastante treinado ao volante com as
peripécias praticadas, eu sentia que dominava muito bem o carro. Aos
dezenove anos, para mim, dirigir era um delicioso prazer, um verdadeiro esporte
em que eu me propunha desafios, os mais diversos, que serviam para aperfeiçoar o
meu domínio da direção, mas que, agora, deveriam sempre ser realizados em
segurança, conforme eu a entendia.
Em rotatórias ou curvas mais largas, por
exemplo, o desafio era percorrê-las com perfeição, respeitando em todo o
contorno uma faixa imaginária, pois na época as pistas da cidade de São Paulo
não eram demarcadas. À noite, ao voltar do namoro, me propunha outros desafios:
ora tentava fazer o percurso de uns vinte quilômetros, da casa da namorada até
a minha, em menor tempo a cada dia, ora tentava fazer todo o percurso sem usar
os freios, controlando a velocidade com o câmbio manual. Nunca consegui fazer
todo o percurso sem frear nem uma vez, mas adquiri um bom controle do carro e
até a calcular os tempos dos semáforos por onde passava habitualmente.
Andar em velocidade, porém era a
prática mais comum. Não podia deixar que outro carro ultrapassasse o meu, a
disputa no trânsito era permanente. Sempre fiel ao preceito de acelerar no meio
das curvas para assegurar a estabilidade do carro, princípio básico
especialmente para carros de tração traseira, como o Volkswagen, eu dificilmente
dirigia devagar, mesmo porque, na época, quase não havia fiscalização para o
cumprimento das regras de trânsito.
Apesar de tanto empenho, porém, eu ainda
tinha muitas coisas para aprender sobre riscos do trânsito; e um dia o perigo
se revelou, o susto aconteceu.
Eu vinha conduzindo o meu Volkswagen pela avenida
Caetano Álvares e entrei com alguma velocidade na Rua Mariquinha Vianna, em
direção à Avenida Água Fria, na Zona Norte de São Paulo; essa rua, naquela
época, admitia duas mãos de direção e tinha, por calçamento, os escorregadios paralelepípedos,
então muito comuns nas vias públicas de São Paulo.
Muitos carros estacionados ao lado direito, de
entre deles saiu, de repente, uma menina de uns sete ou oito anos, correndo
para atravessar a rua. Senti, com certeza, que não haveria tempo para frear o
carro.
Ela logo percebeu o perigo a que se expusera e,
tentando parar a sua corrida, passou a pular de lado, numa perna só, reduzindo
um pouco a distância que percorreria, cena que gravei para sempre. Como eu não
teria tempo para deter o carro antes do impacto, desviei dela rapidamente,
passando muito perto da menina e da guia à minha esquerda, completamente
contramão. Meu carro, mesmo com a súbita guinada, incrivelmente não derrapou
nos paralelepípedos; e também não vinha nenhum outro no sentido contrário ao
meu.
Nada aconteceu, foi por um triz.
Sorte ou milagre?
Mais uma vez, senti a presença do
Anjo da Guarda. Creio que desta vez eram dois.
V – Enxergando ao longe, entendendo muito de perto.
O ano de mil novecentos e sessenta e
seis veio cheio de novidades para mim. Pela primeira vez, após oito anos de
convívio, eu não mais encontraria diariamente os meus colegas do Colégio
Estadual Doutor Octávio Mendes - CEDOM, pois havia completado o curso colegial
no ano anterior. Era, também, o meu primeiro ano como aluno de faculdade, e eu
já pensava em procurar um emprego. Foi nesse ano que o meu pai me avisou que
seria realizado o primeiro concurso público para o recém-criado Banco Central
da República do Brasil, hoje Banco Central do Brasil.
Confirmei que me interessava, sim, ao ler o Edital;
fiz a minha inscrição e me preparei como pude para as provas, que foram
realizadas exclusivamente na cidade do Rio de Janeiro. A estadia foi uma boa oportunidade
para um rápido convívio com os meus tios Magda e Eduardo, que carinhosamente
nos acolheram em seu apartamento no Leblon, a mim e a meu pai, que me
acompanhou em duas das três oportunidades em que lá estive, quando foram
realizadas as provas de conhecimentos, datilografia e aptidão, física e
psicológica.
Na véspera da prova de datilografia, justamente
aquela para a qual eu estava menos preparado, a minha tia me deu um alerta
curioso, que foi muito importante: “Ao iniciar a prova os candidatos estarão
tensos pela expectativa e vão romper o silêncio de repente, todos ao mesmo
tempo, apressados para concluir o teste no prazo; vai fazer um grande barulho.
Alguns deles vão se assustar e enfiar os dedos no teclado, enganchando os tipos
da máquina e até borrando a folha. Ao sinal, espere alguns segundos e respire
fundo antes de começar”.
Foi como ela disse, fiz como ela disse. Deu
certo: consegui fazer todo o texto sem erros, inclusive com a margem direita
perfeitamente retificada, como era exigido na época. Isso me ajudou muito para
conseguir a aprovação no concurso que definiu a minha atividade profissional
por mais de quarenta e um anos, a partir de janeiro de mil novecentos e
sessenta e sete, quando tomei posse.
Minha história poderia ter sido bem
mais curta.
Naquele ano, a Rodovia Presidente Dutra estava em
obras para duplicação de suas pistas. Eu e meu pai retornávamos a São Paulo de
uma dessas viagens para o concurso, e eu ia dirigindo o Volkswagen por uma
longa reta, ainda na baixada fluminense. À nossa esquerda, separada por um largo
canteiro de mato, a pista de mão contrária, poucos carros em trânsito. Ao nosso
lado, na faixa da direita, um grande carro preto americano, daqueles antigos,
bem alto, por algum tempo atrapalhava a nossa visão de placas de sinalização
que porventura houvesse.
Bem ao longe vi um grande caminhão que vinha em
sentido contrário e comentei com o meu pai que ele parecia estar na mesma pista
em que estávamos. A grande distância que ainda nos separava e a pouca
probabilidade de que isso estivesse ocorrendo, prejudicavam a minha certeza...,
mas...parecia mesmo! Cismado, fixei a vista no caminhão ainda distante, mas nos
aproximávamos rapidamente, a cerca de duzentos quilômetros por hora, somadas as
velocidades. E tudo aconteceu muito rapidamente.
A cada instante mais focado em observar e tentar
entender a posição do caminhão, por pouco não percebi a existência de um
pequeno acesso para a pista paralela que ele deveria tomar, saindo da mão dupla
que percorria; foi apenas com o rabo dos olhos que vi aquela entrada quando passei
por ela e imediatamente lembrei-me de que a rodovia estava em obras de duplicação,
compreendendo que o caminhão, já bem próximo, estava realmente na mesma pista e
faixa que nós; sem contar que eu havia ficado na contramão, depois daquele
acesso!
Desesperador! O Volkswagen não era potente e o
carro preto continuava ao nosso lado.
Pisei no acelerador até o fundo para acabar de
ultrapassar o carro preto, avançando de frente para o caminhão até o limite possível
da segurança, e mudei o carro para a faixa de rolamento da direita sem sequer
ter a certeza de que já havia ultrapassado o outro carro. Calculei que sim, mas
eu nem poderia olhar porque estava controlando a rápida aproximação do
caminhão.
Só deu tempo de mudar de faixa. O enorme veículo
passou ao nosso lado balançando o Volkswagen com o deslocamento de ar e fazendo
um barulho de ferragens duro e ensurdecedor, que retorna martelando os meus
ouvidos, por manobras da mente, todas as vezes em que me lembro desse episódio.
Acredito que o motorista do carro preto tenha diminuído a velocidade, mas o do
caminhão não o fez; talvez nem tenha percebido que eu estava em apuros. E nem
conseguiria segurar o seu pesado veículo no último momento. Se o acesso
estivesse alguns metros adiante de onde o vi, eu não teria tido tempo para
reagir. Apareceu para mim de repente, no momento extremo, como aquele raio...
Mais uma vez, foi por um triz. E que
triz!
<<<< O >>>>
Estas são apenas algumas de minhas histórias, na forma como ocorreram, talvez
as mais dramáticas que vivenciei, nas quais precisei de uma proteção instantânea;
e ela veio: estranha, invisível, sobrenatural, inesperada.
Muitas outras situações aconteceram, no plano
pessoal ou profissional, em que também me senti amparado de uma maneira
especial. Seriam mesmo intervenções do meu Anjo da Guarda? O que fiz para
merecê-las? Deixo essas perguntas aos leitores, para que as interpretem de
acordo com a sua crença.
Por
tudo o que contei e muito mais, eu sou profundamente agradecido.