ADELAIDE
DITTMERS
A
chuva tamborilava no telhado do frio alojamento. Aos poucos as gotas foram engrossando e
flocos de neve caíram suavemente do céu escuro. Dentro do grande barracão, um grupo de mulheres
cercava uma jovem, que gemia e se debatia com as dores do parto. Entre os dentes, tinham lhe colocado um
pedaço de pano para que seus gritos não fossem ouvidos do lado de fora.
A
madrugada gélida espantara os guardas daquele lugar de dor e extermínio para o
calor dos seus aposentos. Havensbrück
era um campo de concentração só para mulheres, onde eram obrigadas a executar
trabalhos escravos e exaustivos, que lhes minavam a saúde e a energia.
Durante
sua existência, milhares de mulheres, judias, ciganas e prostitutas eram
executadas ou morriam de exaustão.
Somente as mais fortes conseguiam sobreviver.
Naquela
noite, Sara contorcia-se, enquanto as outras prisioneiras ajudavam-na. Por sorte, uma delas formara-se em enfermagem
e era parteira e fazia as manobras do parto.
De
repente, o choro do recém-nascido irrompeu pelo lugar e as mulheres pegaram a
criança e a embrulharam em pedaços de pano.
Sara, exausta, pelo esforço, deu um grande suspiro e lágrimas
inundaram-lhe o rosto triste.
—
Querida amiga, o que você quer que façamos com a criança? Perguntou Esther, a parteira.
A
moça olhou para o filho. Seus olhos
contraíram-se e ela apertou os lábios num esgar de desespero.
— É
meu filho! Não tem culpa de nada. E
estendeu os braços para aninhá-lo junto ao peito.
As
mulheres entreolharam-se. Os olhos refletiram
a compaixão que sentiam pela pobre moça. E uma delas disse:
—
Vamos ter que escondê-lo para não ser morto por esses monstros. Temos que pensar em um plano.
Sara
apenas balançou a cabeça concordando.
Seus pensamentos foram para o dia em que um oficial a arrastou para um
aposento e a violentou brutalmente. Sacudiu a cabeça, tentando esquecer essa
terrível lembrança e um cansaço físico e emocional a tomou por inteiro. Adormeceu e durante toda a noite pesadelos
sacudiram-lhe o corpo debilitado.
A manhã
fria acordou-as para outro dia de trabalhos intensos. A neve cobria tudo com seu manto branco. As mulheres tinham decidido que iram enganar
os oficiais, respondendo por Sara na hora da inspeção. As roupas pesadas e as toucas iriam ajudá-las
no disfarce e assim a companheira poderia descansar pelo menos por um dia.
Com muito medo, mas com firmeza conseguiram
passar pela inspeção.
No
dia seguinte, no entanto, Sara mesmo enfraquecida enfrentou o trabalho duro. Por uma semana Sara fora convocada a fazer
um trabalho dentro do campo, o que lhe possibilitou uma maneira de alimentar o
bebê. Com a desculpa de ir ao banheiro corria para o alojamento e o amamentava
por uns minutos. Nesses momentos, o medo
misturava-se a uma forte determinação e satisfação de enganar aqueles
impiedosos algozes.
Enquanto
isso, na sala dos oficiais, uma reunião de urgência ocorria e o nervosismo e a
agitação ferviam no coração daqueles homens arrogantes e frios. O exército russo aproximava-se daquela área e
eles não queriam que eles se deparassem com o grande número de prisioneiras e
percebessem os atos criminosos que lá praticavam.
Discutiam
o que fazer com aquelas mulheres.
Gritavam uns com os outros. Não
havia mais tempo para exterminá-las, mas podiam diminuir a população, então
resolveram que abririam os portões para que a maioria delas saísse do campo. O
frio e a debilidade física iriam acabar com quase todas, deduziram friamente.
No
dia seguinte, uma multidão de mulheres foi reunida no pátio e a ordem foi dada
e os portões abriram-se.
Sara
desesperou-se e se descobrissem a criança, mas ajudada pelas companheiras de
infortúnio, cobriu o filho com o largo casaco e se enfiou no meio do enorme
grupo de mulheres. Auxiliada por Esther
e Ruth, as grandes amigas naquele infernal lugar, colocou um pedaço do pano do
vestido na boquinha do bebê para abafar o choro e saíram pelo grande portão.
A
estrada à frente perdia-se de vista.
Caminhavam muito juntas para tentar aquecerem-se mutuamente e suportarem
o frio intenso. Muitas choravam
baixinho. Andavam devagar e os rostos
refletiam o sofrimento e a desesperança de alcançarem a salvação. Sabiam que a morte as espreitava a cada
passo.
Sara
apoiava-se em Esther e Ruth e assim andaram alguns quilômetros. Muitas delas exaustas e combalidas caíram
pelo caminho. Era um cenário de horror, que expunha de uma maneira ímpar aonde
a maldade e a loucura humana podem chegar.
—
Não aguento mais! Vou ficar por
aqui! Murmurou Sara.
— De
jeito nenhum! Vamos parar um pouco.
Respondeu Esther com firmeza.
Pararam
e trocaram o bebê de colo para aliviar a extenuada companheira. Depois de descansarem, Ruth disse:
—
Vamos continuar! E amparou Sara. Quase se arrastando as três seguiram pela
estrada.
De
repente, a uns poucos metros, uma casa de campo surgiu ao lado do caminho.
Tinha um jardim, onde arbustos se curvavam pelo peso da neve, que caíra. Com
passos já cambaleantes tentavam continuar a caminhada, mas nesse momento, Sara caiu
desfalecida. As amigas desesperadas
tentavam reanimá-la. Uma senhora de
cabelos prateados e grandes olhos azuis surgiu diante delas.
— O
que está acontecendo? Para onde vocês
vão? E olhando para o pequeno grupo, que ainda resistia ao cansaço e ao frio.
—
Para onde vão por essa estrada gelada?
Os
olhos de Esther e Ruth fixaram a mulher e neles havia uma súplica silenciosa
por ajuda.
— Meu Deus, essa moça desmaiou! Vamos
levá-la para dentro. Ruth e a senhora
arrastaram Sara para o interior da casa.
Nesse momento, a criança que estava em baixo do casaco de Esther chorou.
—
Vocês têm uma criança escondida aí? Exclamou,
surpresa.
As
duas mulheres concordaram, apenas balançando a cabeça.
Dentro
da casa, o calor abraçou-as como um afago há muito esquecido.
—
Deitem a jovem aqui. Vou buscar uns sais
para acordá-la. E indicando um sofá saiu
com passos rápidos. Voltou em seguida e aproximou os sais para reanimá-la.
Minutos
depois, Sara abriu os olhos. Um grande
espanto espalhava-se pelo seu rosto pálido.
O que acontecera? Onde estava? A mulher olhava-a com piedade.
—
Que bom! Você voltou a si! E dirigindo o
olhar para as três mulheres, disse num estalo de compreensão:
—
Vocês vieram de Ravensbrück, não é? Como saíram de lá?
—
Sim, responderam com voz fraca. Abriram
o portão para muitas de nós! Não sabemos por que, mas achamos que queriam que
morrêssemos pelo caminho.
A
indignação cobriu o rosto da senhora, mas não foi percebida pelas mulheres
esgotadas pelo esforço de se manterem vivas.
—Sentem-se! Vou fazer um chá para aquecê-las, mas antes
vou cuidar dessa criança. Pegou o bebê e
o levou com ela.
As
mulheres entreolharam-se. Pareciam não acreditar no que estava
acontecendo. Com dificuldade, Sara
sentou-se no sofá e de mãos dadas agradeceram a Deus por ter posto aquele bom
ser humano em seus caminhos.
Esther,
subitamente, disse em voz baixa:
—
Ela é alemã. Será que não nos vai trair.
Estou com medo.
E as
três abraçaram-se para que a força as unissem.
Depois
de um tempo, a senhora voltou com o pequenino nos braços.
—
Dei um banho quentinho nele. O
coitadinho estava quase morto.
O
bebê estava vestido, o que espantou ainda mais as três.
—
Não se espantem! As roupinhas eram do meu neto, que guardei de recordação. Disse com um sorriso simpático. E
acrescentou:
—
Quem é a mãe deste bebê? É bom
amamentá-lo. Deve estar com muita fome.
Sara
respondeu com um fio de voz:
—
Sou eu! E, com dificuldade, estendeu os braços para o filho, perguntando:
—
Por que a senhora está nos ajudando? Somos judias e os alemães nos odeiam.
—
Não sou nazista, querida! Desprezo esse regime. Muitos alemães, como eu, nunca concordaram
com o louco, que nos levou a essa guerra insana.
As
três suspiraram aliviadas.
—
Esperem um pouco. Vou buscar o chá. E saiu apressada.
A
criança aconchegada à mãe, sugava com força o leite materno.
Poucos
minutos depois, o chá foi servido pela boa mulher, que as acolhera. Um prato
com pão caseiro e gordura de porco completava a pequena refeição.
—
Depois de se alimentarem, vocês devem tomar um banho e trocar essas roupas
horríveis e úmidas. Temos muito que
conversar.
As
três companheiras devoraram o lanche.
Não comiam desde a noite anterior. A senhora observou como elas engoliam
com avidez o alimento. Estavam famintas
e pensou com tristeza quanto sofrimento essa guerra maldita vinha causando.
Mais
tarde, já aquecidas pelo banho e agasalhadas com roupas secas, sentaram-se na
sala e a boa mulher juntou-se a elas e começou a falar:
Meu
nome é Herta. Vivo sozinha aqui. Consegui sobreviver porque crio galinhas,
patos e porcos. Tenho também uma horta no quintal, de onde colho legumes e
algumas verduras, que transformo em conservas para o inverno. Com a guerra, os produtos básicos começaram a
faltar. Uma vez por semana, temos que enfrentar enormes filas para nos abastecer
com um mínimo de artigos de necessidade.
Meu marido morreu há muitos anos. Meu filho, Joachim, foi convocado logo no
início da guerra e sucumbiu em combate. Eu já odiava o homem causador de tudo
isso, cujo nome não gosto de pronunciar e o odiei ainda mais, porque roubou meu
Joachim. Ele era casado e tinha um
filho. Minha nora, Anne, morava comigo e
juntas cuidávamos do menino. Quando Anne
recebeu a notícia da morte do marido, não quis mais ficar na Alemanha. Os pais dela tinham emigrado para o Brasil e
ela quis ir para lá. Queria me levar,
mas eu me senti sem coragem de começar uma nova vida em um país tão distante.
Ela
conseguiu sair da Alemanha, por Berlim, onde voou para Portugal e de lá partiu
de navio para o Brasil. Com a guerra é difícil ter notícias deles, mas sei onde
moram e que estão bem. Nas poucas cartas, que recebi, eles escreveram que estão
adorando morar no novo país, o que me deixa mais conformada com a distância que
nos separa.
E é
por esse motivo, que tenho roupas dela e do menino guardadas até hoje. Às vezes
olho para elas e choro de saudades.
Sara,
Esther e Ruth estavam caladas. Apesar da
fraqueza e do cansaço, uma ternura e um respeito inesperados as invadiram por
aquela boa mulher.
No
decorrer do dia, as três relataram os horrores por que tinham passado. O trabalho
pesado por doze horas, as parcas refeições, as torturas emocionais, os estupros
e o medo de serem enviadas para as câmaras de gás. O clima pesado dos tristes relatos era
interrompido pelo choro da criança. Sara
então descobria o peito e o alimentava.
Ao
cair da tarde, Herta levantou-se e disse-lhes para se deitarem um pouco,
enquanto ela iria preparar uma sopa para o jantar. Elas insistiram em ajudá-la,
mas ela recusou, por que achava que tinham que descansar para se recompor do
que tinham passado naquele dia.
Ao
se deitarem nas camas macias, agradeceram mais uma vez a Deus por aquela mulher
que as acolhera. Mais tarde a sopa as revigorou mais um pouco, mas foram dormir
cedo para estarem completamente restabelecidas no próximo dia.
Na
manhã seguinte, a neve voltou a cobrir os campos ao redor. A bela região cercada de florestas
acomodou-se embaixo do cobertor branco e espesso daquela primavera fria. Os ramos das árvores, ainda despidos de
folhas, foram vestidos pela camada de gelo.
Herta,
como de costume, acordou cedo e começou o trabalho diário. Alimentou os animais, resguardados em um
galpão, onde ficavam quando o frio era intenso.
Entrou
e fez a primeira refeição da manhã.
Estava feliz por ter a companhia daquelas infelizes mulheres, cujas vidas
tinham sido interrompidas bruscamente pela loucura de um homem.
Aos
poucos, Esther, Ruth e Lara foram aparecendo na cozinha aconchegante. O aroma
do pão no forno era um presente para elas. Estavam mais dispostas, apesar do ar
abatido dos seus rostos. Cumprimentaram
Herta com um abraço e ofereceram-se para ajudar nos serviços domésticos.
Sentaram-se
à mesa e as histórias fluíram como a chuva que cai para limpar o céu cinzento.
ESTHER
Na
pequena cidade às margens do Reno, bonita e antiga, com ruelas estreitas,
calçadas por grandes pedras e de onde se avistava um imponente castelo do outro
lado do largo rio, maior via fluvial da Alemanha até os dias de hoje, a vida
deslizava calma e a convivência entre os habitantes era tranquila. As pessoas se conheciam, mas o respeito pela
vida particular dos outros sempre foi uma característica do povo alemão.
Uma
pequena parcela de judeus mantinha algumas lojas, de onde tiravam o sustento de
cada dia. Os pais de Esther vendiam
roupas, principalmente de inverno. Ela fez
um curso de enfermagem e tornou-se parteira.
Ajudou muitas crianças a virem ao mundo. Ela amava sua profissão, que
abraçou bem jovem.
Com
o começo da guerra e a perseguição aos judeus, a vida da família foi virada do
avesso. Tudo se desenrolou de maneira
muito rápida e inesperada. Forças do
exército nazista invadiram a cidade e depredaram as lojas da colônia judaica.
Os pais de Esther foram arrancados de casa e levados pelos soldados.
No
meio da confusão, a moça conseguiu refugiar-se na casa de uns amigos alemães,
onde permaneceu escondida por um ano.
Porém a Gestapo começou a perceber que muitas pessoas tentavam ajudar os
judeus, abrigando-os ou ajudando-os a fugir. E novamente o exército tomou conta
de várias cidades, invadindo as residências à procura de judeus.
As
notícias sobre essas invasões chegaram à pacata cidade do Reno e Esther, não
querendo colocar a vida dos amigos em risco, avisou-os que iria fugir e em uma
noite saiu sorrateiramente protegida pela escuridão.
Para
onde ela iria? Com uma pequena sacola com alimentos e poucas roupas dirigiu-se
a uma estreita estrada, para talvez encontrar abrigo em algum lugar mais
seguro. O caminho subia pelas encostas
íngremes cobertas de vinhedos daquela bela e romântica região histórica, onde a
riqueza de velhos tempos era representada pelos suntuosos castelos, que
margeavam o rio, engastados como pedras preciosas nas altas montanhas. Os vastos parreirais também contribuíam para
a beleza e a fama daquele vale, fornecendo as uvas, que se transformavam no
delicioso vinho daquelas plagas.
Esther
caminhava devagar. Ao alcançar um
patamar, em que havia algumas árvores, já morta de cansaço, sentou-se e
encostada a uma delas adormeceu. As primeiras luzes da aurora a acordaram, ela
pegou um pedaço de pão com queijo e água e se alimentou. Depois levantou-se e como estivesse
carregando um peso enorme, continuou sua caminhada. Mais além encontrou um agricultor, que
cuidava de sua plantação. Parou e
perguntou-lhe se precisava de alguém para ajudá-lo. O homem a examinou dos pés à cabeça e
perguntou o que ela estava fazendo sozinha por aquele lugar. Um frio correu-lhe pela espinha, mas não quis
mentir e disse que estava fugindo por que era judia. Ele franziu a testa e negou-lhe ajuda.
Decepcionada,
seguiu o caminho. Perambulou sem rumo
pelo dia inteiro. Onde poderia se
esconder e se abrigar. Ao anoitecer,
exausta, deitou-se em uma relva, escondida por uns arbustos, perto de um
extenso vinhedo e adormeceu.
Horas
depois, quando o dia já começava a despertar, foi sacudida violentamente e
abrindo os olhos assustada, viu-se agarrada por um soldado. Tentou com todas as suas forças
desvencilhar-se dele, mas a mão pesada segurou seu pulso, o que fez com que
soltasse um grito de dor.
—
Quem é você? Perguntou o soldado com brutalidade. O que está fazendo? Fugindo?
—
Estou procurando trabalho! Gaguejou com olhos arregalados de terror. A guerra me tirou o que eu tinha.
— E
aqui, neste lugar, você pretende arrumar trabalho? Como é seu nome?
—
Esther. Respondeu com uma voz quase
inaudível.
—
Nome judeu! Grunhiu o soldado.
— Há
muitas alemãs com esse nome. É um nome bíblico.
—
Você não é alemã. Seus traços não
mentem. E apertou o pescoço da moça.
Confesse ou eu te mato aqui mesmo. Os olhos do homem faiscavam de ódio.
Cheia
de medo e cada vez mais assustada, ela confessou com uma raiva incontida.
—
Sim, pertenço a uma família judaica, cujos bens foram arrancados por vocês e
meus pais levados para não sei aonde.
O
soldado desferiu-lhe uma forte bofetada, que a fez cair para trás e levou-a
arrastada. Ela tentava se soltar dele,
ao que ele reagia, sacudindo-a com violência.
Foi
levada a uma estação, onde a colocaram em um trem lotado, que a levou a
Havensbrück. Nunca mais soube do
paradeiro da família. Os pais, tios, primos e um irmão desapareceram naquele
dia fatídico em que os nazistas invadiram a pequena cidade.
Um
pesado silêncio abateu-se na cozinha, quando ela terminou sua história. Durante
algum tempo as mulheres ficaram estáticas como estátuas de pedra.
Herta
levantou-se de repente e tentando animá-las, disse:
—
Vamos meninas! Vamos nos mexer. O trabalho distrai nossas almas e espanta a
tristeza.
As
moças também se levantaram e as quatro dividiram os trabalhos rotineiros. Sara e Herta cuidavam do bebê, ao mesmo tempo
em que auxiliavam as outras. Herta via o
neto, que partira para sempre, naquela criança.
Depois
do almoço, sentaram-se na sala, perto da lareira, que estalava e enchia o
aposento de calor. As chamas pareciam
hipnotizar as mulheres e dessa vez, Ruth contou sua história.
RUTH
O
verão tão esperado chegou com sol e céu azul na grande cidade, espantando o
cinza escuro do resto do ano. As pessoas
passeavam animadas pelo parque e muitas se sentavam no gramado para aproveitar
ao máximo o belo dia da estação mais quente do ano. A temperatura estava amena, característica
dos verões na Alemanha.
Com
um vestido florido e chapéu, Ruth sentou-se na relva para saborear o belo dia e
aquele sol tão esperado. Estava
feliz. Tinha começado um namoro há pouco
tempo com um colega do trabalho e tinham marcado um encontro no belo
parque. Levantou o rosto para o céu,
fechando os olhos com ar sonhador, pensando no porvir, que parecia
auspicioso. Quais surpresas que a vida
lhe traria, tudo estava correndo tão bem. O trabalho como técnica de farmácia
em uma grande empresa. A chegada do amor, que a estava enchendo de mil
projetos...
De repente,
o chapéu foi puxado para trás, descobrindo os cabelos dourados da moça. E lá
estava ele, com um sorriso nos lábios.
Ruth devolveu o sorriso e Peter sentou-se ao seu lado.
—
Bom dia, bela princesa!
—
Bom dia! Onde está seu cavalo branco, querido príncipe. Ela disse, devolvendo a brincadeira.
Riram
alegres, provocando-se um ao outro em divertidas disputas. Gostavam das mesmas coisas e tinham os mesmos
objetivos e ambições.
Depois
de algum tempo, levantaram-se e um demorado beijo os uniu. De mãos dadas,
passearam pelo parque. Jogaram pequenas
pedras no riacho de águas verdes, que, entre altas e frondosas árvores,
atravessava o extenso parque.
O
dia foi se deitando mansamente, enlevado pelos raios avermelhados do
pôr-do-sol. A noite chegou sem pressa,
estendendo o manto estrelado pela cidade.
Os
dois jovens despediram-se, depois de um dia em que compartilharam o amor, que
estava nascendo com força dentro deles.
Na
manhã seguinte, Ruth foi trabalhar. A
felicidade espalhava-se pelo seu rosto.
Quando chegou ao laboratório, Peter veio ao seu encontro com um rosto
sério e preocupado.
— O
que aconteceu? Por que você está com essa cara?
— As
notícias não são boas. O homem lá de cima está com umas ideias loucas. Uma
delas é de nos perseguir por sermos judeus. Anda dizendo que somos donos da
riqueza do país. E parece que quer conquistar outros países e difundir suas ideias.
— Li
sobre isso, mas não acreditei que tais ideias fossem adiante.
—
Mas pelas notícias estão se tornando realidade.
Um
frio intenso a invadiu. Seu povo sempre
sofreu perseguições ao longo dos séculos.
Mas por que isso agora? Eram
outros tempos. Trabalhavam e estudavam muito para progredir na vida com seu
esforço e seguiam a religião secular dos antepassados com discrição. Não podia entender.
— Ruth,
vou sair da Alemanha. Não confio nesse
governo. Tenho tios nos Estados
Unidos. Quero ir para lá.
A
moça quase desabou com a notícia.
— E
nós? Perguntou angustiada.
—
Venha comigo. Amo você. Podemos nos casar lá. Aqui está ficando muito perigoso.
—
Não posso deixar minha família.
—
Convença-os de ir também.
Arrasada,
a jovem dirigiu-se à bancada, em que trabalhava.
Pense
bem, querida! Peter disse, elevando a voz e foi para seus afazeres.
À
noite, em casa, Ruth contou aos pais e irmãs, o que Peter lhe dissera.
O
alvoroço tomou conta de todos. Não podiam ir.
As notícias eram exageradas. O
pai era engenheiro em uma fábrica de automóveis e era muito respeitado por seus
pares e subordinados. Não, não podiam deixar para trás tudo o que tinham
construído. Ruth foi dormir como o
coração amargurado, dividida entre a família e o homem de sua vida.
Os
dias foram passando e Peter estava cada vez mais decidido em partir. Convencera a família em ir com ele.
Ruth
estava confusa. O medo crescia dentro dela, mas os pais e irmãs queriam esperar
mais para ver o que iria acontecer.
Chegou
o dia da grande decisão, Peter perguntou-lhe pela última vez, se iria com
eles. As passagens estavam compradas e
eles iriam partir logo, antes que fosse tarde demais. Ainda dava tempo de ela
comprar a passagem.
Ruth
abraçou-se a ele e as lágrimas molharam o rosto do namorado.
—
Não posso ir. Não vou deixar meus pais.
Segurou
o rosto do rapaz e deu-lhe um beijo demorado de despedida. A dor da perda e o fim de seus sonhos estavam
estampados no seu rosto triste. Virou-se
e saiu correndo sem olhar para trás.
Uma
semana depois, o pai de Ruth chegou em casa com um semblante carregado. Tinha sido demitido. As perseguições e depredações nas casas dos
judeus começaram cada vez mais fortes.
Eram marcados com a cruz de Davi para serem identificados.
Ruth
e a família fugiram para o campo, porque as fronteiras já estavam fechadas para
eles, porém ao sair do trem foram presos e separados.
Começou
aí o calvário, que a levou para Havensbrück e os pais com certeza para um
triste fim. O trem lotado e imundo, transportando pessoas para um incerto e
infeliz destino, sem a mínima chance de se defender era uma de suas memórias
mais terríveis.
Quando
acabou o relato, baixou a cabeça, quase murmurando;
—
Essa é a minha história.
Sara,
que estava a seu lado, apertou a mão da amiga. Herta levantou-se.
—
Vamos meninas! Vamos preparar o jantar! E com um sorriso escondeu o que lhe ia
por dentro.
Levantando-se
lentamente, as três a seguiram.
Quando
acordaram no outro dia, tiveram uma agradável surpresa: um sol pálido
esforçava-se em romper as nuvens. Ora aparecia, ora desaparecia. Aos poucos, venceu a barreira que o escondia
e timidamente firmou-se no céu. A neve
iluminada pelo astro rei refletia com intensidade a alvura do gelo, quase
cegando quem olhasse para ela.
Herta
abriu a porta da cozinha e sorveu o ar puro com prazer. Depois de tantos dias escuros, a alegria de
um dia ensolarado tomou conta dela. Logo
o verde e as flores viriam enfeitar os campos.
Ouviu passos atrás dela e virou-se.
Sara sorriu e ela quase se desmanchou ao ver aquele sorriso, apesar de
perceber que a tristeza ainda morava nos olhos da moça.
—
Venha querida! Hoje temos sol e céu azul.
E estendeu as mãos, tentando passar um pouco de força àquela nova mãe.
Em
silêncio, as duas apreciaram o dia claro, que estava nascendo. Depois entraram para fazer o café da
manhã. Logo depois, as quatro mulheres
estavam sentadas à volta da mesa, os olhos voltados para a janela, perdidas em
seus pensamentos.
Herta
interrompeu o silêncio:
Vejam
meninas, hoje está um bonito dia.
Podemos dar uma volta!
As
três estremeceram, voltando a realidade e a conversa pela primeira vez foi
entremeada de boas lembranças, o que desanuviou o ambiente. O pequenino dormia placidamente ao lado delas
no carrinho, que fora do neto de Herta.
Naquele
momento, Sara olhou para o filho e começou a contar a sua história.
SARA
A
pequena fazenda dos pais de Sara na Baviera, na região dos Alpes, ficava perto
de um lago azul, rodeado de uma relva macia, onde, na primavera flores de
diversas cores bordavam o verde. Os
pinheiros e os picos nevados ao longe completavam a beleza da paisagem.
Criadores
de vacas leiteiras, o trabalho da família era intenso, apesar de contarem com
alguns empregados, que ajudavam na lide diária.
Eram
cinco irmãos. Dois rapazes e três moças.
Um irmão cursava engenharia em Munique, o outro ajudava o pai na administração
da fazenda, onde também fabricavam deliciosos queijos. Uma das irmãs era secretária em uma grande
empresa de Munique. A mais nova ainda
estudava na escola local.
Sara
era professora e lecionava em uma escola rural.
Adorava crianças e dar aulas era algo mágico para ela. Muitas vezes
levava a turma para as florestas próximas para mostrar os pequenos animais e
ensinar-lhes sobre a vegetação nativa.
Criativa, era muito admirada pela dedicação de transmitir conhecimentos
de uma maneira lúdica e divertida.
Os
sábados da família eram reservados para as práticas religiosas. Nos domingos, depois da ordenha e da
alimentação dos animais, reuniam-se à mesa, em que a conversa sobre a rotina de
cada um corria alegre e solta. Unida, a
família, colaborava uns com os outros.
À
tarde, Samuel aparecia para buscar Sara para longos passeios por aquele lugar
paradisíaco. Conheciam-se desde a
infância. Eram inseparáveis. Corriam pelos campos. Deliciavam-se com os frutos silvestres e no
inverno deslizavam pela montanha em um trenó de madeira, feito pelo pai de
Samuel, que era marceneiro. Aos poucos,
aquela amizade foi se transformando em um profundo amor.
Estudioso
e inteligente entrou na faculdade de direito de Munique. A jovem ficou feliz por ele, mas ao mesmo
tempo receosa que a distância os afastasse.
Na estação, ele colocou um anel de compromisso no delicado dedo de Sara,
que ficou surpreendida e emocionada.
Forte, decidida e de opiniões firmes, ela tinha também um lado muito
sensível, que procurava esconder e só transparecia quando lidava com os
pequenos alunos, que tanto amava.
Os
anos de estudos de Samuel passaram entremeados de encontros, que aliviaram a
separação. Ao voltar, depois da formatura, a data do casamento foi marcada.
Em
uma manhã de fim de agosto, de temperatura amena e ensolarada, o movimento na
casada da fazenda era frenético. Na
cozinha, muitas mulheres tagarelavam e riam enquanto preparavam o almoço. Uma
grande mesa foi armada no jardim, coberta por uma toalha branca e enfeitada por
vasos com flores coloridas. Os compridos bancos de madeira, que a cercavam
davam o toque rústico à decoração.
Em
um dos quartos, as duas irmãs ajudavam Sara a se vestir. O vestido simples e
uma coroa de flores do campo enfeitavam o belo rosto da noiva. Os cabelos
castanhos e os olhos de um profundo azul acentuavam ainda mais a beleza da
jovem.
A excitação e a alegria espalhavam-se pela
casa inteira. Afinal, chegara o grande
dia para Sara e Samuel.
Quando
Sara saiu para a realização da cerimônia, todos ficaram emocionados. Ela estava linda. A tranquilidade e felicidade iluminavam seu
rosto.
Um
noivo muito ansioso e também emocionado a recebeu em um altar improvisado no
jardim, onde o rabino, amigo de muitos anos da família iria realizar os rituais
do casamento.
O
almoço farto e a alegria dos convidados prolongaram a festa até o entardecer.
Durante
dois meses, o novo casal desfrutou do grande amor que os unira. Felizes
passeavam pelos campos, fazendo planos para o futuro. Decidiram que nos primeiros tempos morariam
na fazenda e depois talvez mudassem para uma cidade maior.
Certa
tarde, porém, Samuel chegou à casa, muito assustado. Ouvira na pequena cidade, que o exército
nazista se aproximava da região e que judeus eram mortos ou levados para
trabalhos forçados.
O
pai de Sara ligou o velho rádio. As
notícias eram assustadoras. O povo era
incitado a revelar o paradeiro dos judeus, ciganos e pessoas consideradas não
arianas. A guerra começara com invasões
aos países vizinhos.
—
Precisamos ir embora! Temos que fugir o
mais rápido possível! Exclamou Samuel.
—
Não. Vou esperar mais um pouco. Talvez as coisas melhorem. Não quero me precipitar.
Como
em muitas outras famílias de judeus, as pessoas não queriam acreditar que as
suas vidas estavam em perigo.
—
Por favor, Sr. Kaufman, temos que sair da Alemanha. As coisas vão só piorar!
Mas
o velho sogro não queria deixar tudo o que tinha: a amada fazenda, os animais,
o lugar que vivera a vida toda e ir para um destino incerto. Queria esperar um pouco para ver o desenrolar
dos fatos.
O
clima ficou tenso. Sara concordou com o
marido e tentava convencer o pai de fugirem.
Três
dias depois, Samuel foi à cidade para conversar com os pais e mais uma vez
convencê-los de fugir o mais depressa possível.
Todos estavam aturdidos. Não
queriam acreditar que tinham que deixar o que construíram por anos.
Na
fazenda, os trabalhos diários começaram, mas uma nuvem escura envolvia o
coração de todos. Sara não foi à
escola. Sentiu que a energia e
disposição, que sempre tivera, foram sugadas por um rodamoinho de emoções
contraditórias. Medo e revolta
travavam-lhe a razão. Tentou concentrar-se nos trabalhos caseiros.
Às
dez horas da manhã, um barulho estranho, como um tropel aproximou-se da
fazenda. Todos pararam o que faziam para
ver o que estava acontecendo.
Consternados, depararam-se com uma tropa de oficiais, que entrou pela
fazenda como feras, que correm para apanhar suas presas. O terror estampou-se
no rosto de cada um. O pai de Sara adiantou-se e gritou com raiva:
— O
que vocês querem aqui?
—
Quem você pensa que é? O comandante gritou.
E
apontando a arma, disparou, matando o pobre homem. Vários tiros ecoaram pelo
lugar e um a um, os homens foram caindo.
A
mãe de Sara apareceu à porta da cozinha.
Desesperada, chamava pelo marido.
Correu até o corpo, meio encolhido no meio do pátio e debruçou-se. Um choro convulso sacudia-lhe toda. Um
oficial aproximou-se e sem piedade atirou.
Sara
assistiu a tudo de uma das janelas da casa e quase desfaleceu ao ver aquela cena
de horror, mas juntando as forças, que sempre tivera, correu para dentro,
chamou a irmã mais nova e subiram as escadas, que levava ao sótão e lá se
esconderam embaixo de uma cama de casal.
Os
nazistas invadiram a casa e vasculharam cada cômodo, destruindo tudo que
encontravam pela frente. Dois deles
subiram até o sótão e abriram as portas de um armário, procurando por alguém
escondido. Já iam descer, quando a irmã
começou a soluçar. Sara tapou-lhe a
boca, mas era tarde demais. Foram
descobertas. Puxaram-nas com violência e
um deles apontou a arma. O outro, porém, o deteve.
—
Não, não atire. Essas são jovens e
fortes. Podem ser úteis nos campos de trabalho.
E as
arrastaram pela casa. Sara tentava
desvencilhar-se dos algozes. Já lá fora, Sara ao passar pelos corpos dos pais,
do irmão e dos outros sentiu um ódio tão profundo, que apertou seu coração e escureceu
seus olhos. Levantou a cabeça, como a
desafiar os homens e seguiu pela estrada.
Queria se manter viva. Essa seria
a vitória sobre eles.
Mais
tarde, foram enviadas em um trem de carga, onde as pessoas se apinhavam de
forma desumana. O cheiro do medo
espalhava-se pelo vagão. Sara abraçou a
irmã e procurava dar-lhe coragem.
O
trem parou em três estações, onde muitos eram despejados como uma mercadoria
para destinos imprevistos. Em uma dessas paragens arrancaram a irmã de Sara,
que se agarrava a ela com desespero e a levaram. Os gritos lancinantes da jovem eram ouvidos
ao longe. Sara quis ir com ela, mas a
empurraram para dentro e ela caiu sentada no chão duro. Com as mãos cobriu o rosto e os soluços a
sacudiram. Nenhuma lágrima brotou em seus olhos. Era como se ela houvesse secado por dentro e
a alma tivesse sido deixada para trás.
Esquecendo a promessa que fez a si mesma, naquele momento desejou
morrer.
Depois
de horas, chegaram a Berlim e ela foi levada ao campo de concentração de
Havensbrück. Cortaram-lhe os longos
cabelos e ela vestiu as roupas largas das prisioneiras. Nas primeiras semanas, ela agia como um
autômato. Com o rosto sem expressão,
executava o pesado trabalho, que impunham e se escondia atrás de uma revoltada
mudez. A morte seria um alívio, pensava
constantemente.
As
companheiras, compreendendo o sofrimento da moça, começaram a incentivá-la a
reagir e não se deixar levar pela crueldade da situação. Tinham que sobreviver
a qualquer custo, diziam a ela. Aos
poucos, a força que sempre tivera voltou devagar e ela começou a lutar pela
vida, como se tinha prometido ao ser presa.
Os
anos foram passando. Sara trabalhava
doze horas por dia como operária em uma grande empresa. O trabalho era extenuante, mas as refeições
compensavam. Várias companheiras tornaram-se amigas dela, mas duas eram as mais
próximas, Esther e Ruth, que trabalhavam ao lado dela na fábrica.
Muitas
mulheres, porém, não resistiam aos trabalhos pesados e aos maus tratos no
campo. A brutalidade dos oficiais estava
sempre presente. Depois de algum tempo,
câmaras de gás foram instaladas e as mulheres debilitadas, que já não
conseguiam trabalhar ou que estavam grávidas eram levadas para lá. O medo era
uma emoção que pairava sobre elas.
Magra
e pálida, apenas os olhos de intenso azul de Sara ainda marcavam sua beleza.
Certo dia, um dos oficiais, que fazia a chamada diária notou os belos olhos da
prisioneira e a delicadeza do rosto dela.
Aproximou-se dela e disse de maneira grosseira:
—
Hoje você não vai com as outras. Vai ficar comigo.
A
pobre moça arregalou os olhos. Sabia perfeitamente o que isso significava. O estupro era uma das torturas, que as
mulheres sofriam ali. Ela ficou
estática, como se fosse feita de pedra.
O oficial a puxou e a levou para uma sala, onde extravasou os instintos
mais primitivos. Quando Sara voltou ao
alojamento, lavou o corpo todo e era como também quisesse limpar a alma.
Durante
vários dias, o homem a levava para a sala.
Ela estava devastada pela violência, que sofria. Um dia ele não apareceu e as mulheres
supuseram que fora transferido.
Dois
meses passaram e Sara percebeu, que o corpo estava mudando. Estava grávida. Como iria enfrentar mais esse desafio. Nos primeiros meses, à noite, no catre duro,
em que dormia, batia na barriga, com raiva, tentando provocar um aborto. Os guardas não podiam desconfiar, que estava
grávida, senão iria para a câmara de gás.
O tempo foi passando e ao sentir os movimentos da criança dentro de si,
um sentimento contraditório a invadiu.
Aquele ser era também parte dela e não tinha culpa de ter sido gerado,
mas ao mesmo tempo era fruto da violência de um homem, por quem sentia asco e
odiava. A dúvida foi vencida pelo forte
instinto materno, que sempre tivera e que a tornou uma professora tão querida.
Durante
os nove meses de gravidez, teve o apoio e a proteção das companheiras,
principalmente das duas grandes amigas, Esther e Ruth.
Quando
terminou de contar sua história, estava exausta, pelo turbilhão de emoções, que
essas lembranças causaram, mas ao mesmo tempo, aliviada de pôr aquilo tudo para
fora. As lágrimas das companheiras
molhavam a mesa. O silêncio foi quebrado
pelo choro do bebê. Todas o olharam com
compaixão e ternura. A mãe vencedora de
difíceis batalhas o pegou no colo e o amamentou, enquanto, com carinho, passava
a mão pelo rostinho daquele filho inesperado.
Dias
depois, uma onda de notícias desencontradas invadiu os jornais e rádio
locais. A Alemanha estava sendo tomada
pelos aliados. As pessoas ansiosas
procuravam saber se isso realmente era verdadeiro. Logo de manhã, Herta ligou o velho rádio e
com surpresa, ouviu a notícia da rendição da Alemanha. Era oito de maio de 1945. A alegria e a esperança tomaram conta
daquelas intrépidas e sofridas mulheres.
As quatro abraçaram-se e a bondosa senhora fez um bolo e tirou do fundo
do armário uma velha garrafa de champanhe para comemorar o fim da guerra.
Esther,
Ruth e Sara conversaram com Herta, dizendo que tinham que seguir suas
vidas. Herta, porém, se opôs. Naqueles poucos dias, tinha se apegado às
hospedes, que trouxeram movimento a alegria a sua solidão, apesar dos anos
negros por que tinham passado.
—
Entendo que queiram continuar as vidas que interromperam, mas acho que devem
fazer isso com calma. Para onde vocês
pretendem ir? Já sabem?
Ruth
foi a primeira a responder:
— Um
primo muito amigo de meu pai mora nos Estados Unidos, mais precisamente em Nova
York e trocavam tantas cartas, que eu gostava de ler, que guardei o endereço
dele na memória. Tenho certeza que me receberia bem até eu arrumar minha vida.
—Ótimo,
Ruth! Precisamos descobrir como você pode chegar até lá.
— É
verdade! Respondeu ela pensativa.
— Infelizmente
não tenho ninguém fora da Alemanha a não ser um parente distante, que emigrou
para a Austrália e nunca mais tivemos notícias dele. Exclamou Esther.
—
Também não tenho ninguém fora da Alemanha.
Disse pesarosa Sara.
—
Então temos que resolver para onde vocês irão, com muita calma. Tenho certeza que vamos conseguir. Disse
Herta.
Na
Alemanha arrasada, o povo tentava se reerguer.
Uns partiam de lá com medo de novas guerras, outros tentavam reorganizar
as vidas.
Herta
e Ruth souberam que havia um escritório americano em Berlim para tratar da
divisão da cidade entre os aliados.
Arriscaram ir até lá, onde contaram a história de Ruth e mostraram o
endereço da família em Nova York. Depois
de diversas idas e vindas, o primo de Ruth foi contatado e ela recebeu
autorização para deixar a Alemanha.
O
mês de junho veio com temperaturas agradáveis e dias ensolarados. As flores cobriam os campos e o verde voltou
a cobrir a vegetação. As quatro mulheres
aproveitaram para passear pela bela região, para se despedir de Ruth, que ia
partir no começo da noite. Herta queria
que ela levasse aquele bonito lugar na memória.
A moça detinha o olhar em cada aspecto da paisagem do país em que nasceu
e onde perdeu tudo.
Ao
anoitecer, as quatro estavam no aeroporto e entre lágrimas e abraços disseram
adeus à amiga. Sara, apesar de muito
emocionada não conseguiu chorar. O avião
que a levaria para uma nova vida decolou com suavidade e elas o seguiram com o
olhar, desejando no íntimo que tivesse boa sorte.
Voltaram
para casa tristes e felizes ao mesmo tempo.
Tristes pela partida da amiga e felizes por que trilharia um novo
caminho.
No
café da manhã seguinte, a situação de Sara e Esther foi discutida. Não queriam permanecer na Alemanha, mas para
onde iriam?
Herta
lhes disse que poderiam ficar com ela, quanto tempo que quisessem, porque
levaram um novo alento para ela.
— A
senhora é uma pessoa incrível, mas Esther e eu não queremos ficar neste país,
que nos roubou tudo! Esther assentiu com
a cabeça.
—
Concordo. Temos que ir para outro lugar
para tentar esquecer o que nos aconteceu aqui.
—
Entendo vocês! Se fosse mais jovem talvez também iria embora. Acho que posso ajudá-las. Minha nora mora com os pais no Brasil, como
vocês sabem. Vou escrever para
eles. Acho que não se recusarão em
ajudá-las.
—
Obrigada! Disseram juntas. E Sara acrescentou:
—Nunca
seremos capazes de agradecer-lhe pelo bem que nos está fazendo. A senhora estará sempre em nossos corações e
em nossas memórias até o fim de nossas vidas.
—
Assino embaixo dessas palavras!
Acrescentou Esther.
Herta,
comovida, olhou para as duas com ternura.
—
Vou escrever para minha nora!
Mais
de um mês depois, veio a resposta e elas não couberam em si de alegria. Os pais e Anne receberiam as duas e as
ajudariam a se estabelecer no país.
Vários
foram os trâmites para elas conseguirem sair da Alemanha. Iriam de avião a Lisboa e de lá partiriam de
navio para o Brasil.
Em
uma tarde, as três sentaram-se no gramado. O bebê foi colocado em cima de um
lençol para tomar sol. Sacudindo as perninhas e os bracinhos, ele sorria,
querendo chamar a atenção delas, que se derretiam e lhe mostravam um ursinho de
pelúcia.
Sara
e Esther tiveram, então, uma longa conversa com a benfeitora. Queriam que ela fosse com elas para o Brasil.
Mostraram todas as vantagens dessa mudança: a proximidade com o neto e a nora,
com elas e a distância do país, em que perdeu o único filho. Mas ela resistiu.
—
Não, minhas queridas! Já não tenho mais disposição de sair daqui para um país
distante. Não tenho mais idade para recomeçar.
Não sei onde meu filho foi enterrado, mas para mim, parece que aqui
estou mais perto dele. Tenho também velhos amigos, que me apoiaram nos anos
difíceis da guerra.
Sara
e Esther olharam para ela com tristeza. Ela foi como uma mãe naqueles meses.
—
Vamos sempre nos comunicar. Queremos
enviar e receber muitas cartas. E gostaria de lhe dizer outra decisão
minha. Meu filho vai se chamar Joachim.
Quero que ele tenha o nome de seu filho.
Herta
abraçou Sara, comovida.
—
Obrigada, por essa homenagem ao Joachim.
Uma
semana depois, elas e a criança partiram. A despedida foi repleta de
emoções. Herta abanou um lenço até elas
entrarem no avião.
Chegaram
a Lisboa e foram abrigadas pelo governo português por três dias, depois dos
quais embarcaram em um navio de bandeira portuguesa para Santos.
A
viagem marítima costumava demorar cerca de quinze dias. O céu e o mar eram a
única paisagem. O tédio e a expectativa desencadearam
ansiedade nas duas mulheres. Após dias
sem ver terra, a costa brasileira foi avistada e a beleza verdejante do litoral
encantou-as. Que belo país era esse, que
seria o novo lar delas.
Chegaram
a Santos em um dia claro. Nuvens brancas
encobriam um pouco o sol. Curiosas
admiravam a praia ao longe, debruada por grandes casarões. O navio foi se
aproximando do porto e atracou mansamente.
No cais uma pequena multidão esperava por entes queridos. As duas
perguntaram-se como encontrariam Anne e a família, que tinha escrito que iriam
esperá-las. Herta tinha lhes dado uma fotografia
da nora e dos pais, mas de anos atrás.
Nervosas desceram devagar do navio e ficaram
paradas na plataforma. Joachim ia de um colo para outro, excitado com o
movimento. O cais foi esvaziando e elas
viram um casal acompanhado de uma moça e um menino. Ao mesmo tempo, eles viram as duas moças paradas
com o bebê, que pareciam perdidas à procura de alguém. Aproximaram-se e a recepção calorosa
apaziguou-as. A dúvida de que seriam um
peso para aquela família desvaneceu-se.
Os
Schmidt moravam na zona sul de São Paulo, região que abrigava uma grande parte
da colônia alemã da cidade. A casa era
grande e confortável com um grande jardim e um quintal, onde jabuticabeiras e
abacateiros cercados por um gramado e uma pequena horta cresciam vigorosos. No
fundo, havia uma construção com um amplo quarto, banheiro e uma pequena
cozinha.
Lá
as hóspedes foram instaladas para terem mais liberdade e se sentirem à vontade.
Antes da chegada delas, o Sr. Schmidt já tinha pesquisado lugares em que elas
pudessem trabalhar. Por ter muitos conhecimentos, soube que havia uma vaga de
enfermeira no hospital alemão da cidade.
Esther teria que ir a uma entrevista para conseguir o lugar. Descobriu também que uma escola judaica no
Brás estava precisando de professores.
Sara
e Esther ficaram entusiasmadas por essas possibilidades, que estavam surgindo
tão rapidamente.
A
família de Anne as tratava com muito carinho e respeito, ajudando-as a se
adaptar à nova vida. Anne começou a
ensinar-lhes português.
Uma
manhã, Anne levou Esther para a entrevista. Quando saiu, a jovem tinha um sorriso
satisfeito. Tinha sido aceita. Na conversa mostrou que tinha sólidos
conhecimentos de enfermagem.
Dois
dias depois, foi a vez de Sara ser entrevistada na escola. A descrição de como trabalhava conquistou o
diretor, que ficou admirado com a capacidade dela em envolver os alunos.
As duas
estavam felizes. Tinham conseguido
trabalho.
A
família, que as acolheu, acalmou-as.
Elas poderiam ficar morando com eles.
Eles cuidariam do bebê de Sara, enquanto estivesse fora. As duas não podiam acreditar na sorte, que
estavam tendo. Pareceu-lhes que Deus as estava compensando dos terríveis anos,
que haviam vivido.
Sara
e Esther ingressaram nos novos trabalhos, que absorviam a atenção e desviavam
os pensamentos das tristes memórias, que lhes assaltavam de vez em quando.
Passo
a passo, foram dominando a nova língua.
A única dificuldade era o sotaque alemão, que era difícil de
desaparecer.
Depois
de três meses de trabalho fizeram questão de pagar um aluguel à família. Sara ofereceu uma pequena quantia por tomarem
conta de Joachim. Eles protestaram. Não precisavam daquelas dependências e
cuidar da criança os alegrava. O menino
estava se desenvolvendo bem e se tornou muito apegado a eles. Por isso, não
queriam aceitar, mas elas insistiram tanto que, para não as constranger e as
deixar à vontade, concordaram.
Herta
não foi esquecida. Trocavam cartas com
ela, contando sobre os trabalhos e o menino, que crescia. Correspondiam-se também com Ruth, que tinha
um bom emprego e ganhava bem. Souberam
que depois de dois anos deixou a casa do primo e alugou um pequeno
apartamento. Tinha algumas aventuras
amorosas, mas não queria se prender a ninguém.
Depois de tanto tempo presa, queria liberdade de fazer o que quisesse.
Adorava ir a exposições e a concertos. E perambular pela cidade, sentindo a
vida vibrante da cidade a inebriava. Estava completamente adaptada ao estilo de
vida americano.
Os
anos foram passando. Aos quatro anos,
Joachim ingressou na escola em que Sara dava aulas. Saia cedo com a mãe e voltava por volta do
meio do dia. Era um caminho longo. Pegavam o bonde, que ia até a Praça João
Mendes e caminhavam até a Praça Clóvis Bevilaqua para pegar o ônibus até o
Brás. Na maioria das vezes, o pequeno adormecia no colo da mãe ao voltar para
casa.
Passaram-se
seis anos. Joachim e Thomas, filho de
Anne, eram a alegria da casa. Apesar da
diferença de idade eram grandes amigos e juntos aprontavam algumas
traquinagens. Ajudado por Thomas. Joachim aprendeu a subir nas árvores do
quintal, o que deixava Sara em pânico, com receio que ele caísse, mas ele era
muito esperto e sabia se segurar nos galhos como Thomas.
Aos
domingos almoçavam todos juntos. As
mulheres preparavam o almoço e conversavam sobre os acontecimentos da semana. À tarde, muitas vezes, Anne, Sara e Esther e
os meninos iam ao cinema ou passeavam pela cidade. A amizade entre as três cresceu ao longo do
tempo. Em um domingo, em que se
deliciavam com um sorvete no centro da cidade, Anne contou que estava
interessada em um rapaz. Ambos
trabalhavam na mesma empresa. Iam
almoçar todos os dias juntos e ele era muito atencioso, sempre procurando
agradá-la. Sara e Esther divertiram-se
em brincar com ela e em incentivá-la a construir um novo relacionamento, depois
de tantos anos de viuvez.
Na
sua rotina diária, Esther conheceu um médico e o amor brotou entre eles. O namoro enlevou a enfermeira e um brilho de
felicidade surgiu nos olhos da moça.
As
duas começaram a sair aos domingos com os namorados e Sara se sentiu mais só.
Dedicava-se cada vez mais a Joachim, o que preenchia o vazio, que sentia dentro
dela.
Em
uma tarde, Sara voltou da escola com o menino e a mãe de Anne veio ao seu
encontro com um aspecto sério e triste.
— O que aconteceu? Perguntou assustada.
Frieda
segurou as mãos dela e apertou.
—
Chegou uma carta da Alemanha. Herta morreu de um ataque de coração.
—
Não, não pode ser! Ela era tão forte.
Ainda na semana passada, recebemos uma carta dela. E encostou a cabeça
no ombro na sua boa amiga.
—
Por que você está assim, mamãe? Perguntou assustado Joachin.
— A
sua vovó da Alemanha foi para o céu.
Disse, recompondo-se.
—
Ela morreu! Agora eu não tenho mais a minha avó alemã! Resmungou ele lamurioso.
Sara
olhou para Frieda e disse:
— E
esta avó bem aqui na sua frente.
O
menino agarrou-se às pernas da outra avó, que ganhara ao chegar ao Brasil e ela
pegou-o no colo.
Certo
dia, Joachim acordou com febre e dor de garganta. Sara foi para a escola sozinha. Era dia de folga de Esther, que ficou
cuidando dele. Estava preocupada, mas
sabia-o em boas mãos.
Na
volta para casa, no horário costumeiro, Sara esperava pelo bonde na Praça João
Mendes. Estava ansiosa para chegar em
casa e ver o filho.
De
repente, um aperto no coração a imobilizou.
A poucos metros dela, estava um rapaz, elegantemente vestido de terno e
gravata. ¨Não pode ser¨, pensou. ¨Devo
estar sonhando. Estava mais velho.
Alguns frios brancos enfeitavam lhe as têmporas. Mas era ele. Andou em sua direção e gritou:
—
Samuel?
Ele
olhou para ela e o espanto invadiu seu rosto.
—
Sara? É você? Como pode ser?
Os
dois abraçaram-se confusos. Depois
olharam-se como se reconhecendo.
—
Você está viva! Pensei que tinha morrido naquele dia fatídico.
—
Não, não morri com eles. É uma longa
história.
Puxando-a
pela mão, ele a levou até um bar próximo e sentaram-se em um banco alto, junto
ao balcão. Depois de pedir uma bebida, contou-lhe que estivera na fazenda
depois da chacina. Os corpos não estavam mais lá, mas havia muito sangue
espalhado pelo chão. Urrando de dor e
ódio voltou para a cidade. Os pais também tinham desaparecido e a marcenaria
depredada.
Pegou
o diploma, os documentos e uma troca de roupa e subiu na velha caminhonete do
pai. Saiu como um louco pela velha
estrada, conhecida apenas pelos habitantes locais. Estava fora de si. Até hoje não sabe como conseguiu
dirigir. Depois de algumas horas,
atordoado pelo acontecido e os solavancos da estrada chegou perto da fronteira
da Suíça e com muita cautela conseguiu passar para o outro lado em uma área
desabitada. A Suíça era um país neutro e
lá estaria mais seguro. Chegou a Berna depois
de muitas horas e pediu asilo. Foi
informado que era melhor ir para um país longe dali e lhe indicaram o consulado
brasileiro. Depois de muito insistir,
informaram, que na França, um cônsul português, estava concedendo vistos aos
judeus. Implorou para que lhe dessem uma passagem até a França. Conseguido o bilhete, partiu para a França, onde
obteve o tão desejado visto, que o levou a Portugal. Chegando lá, descobriu que Salazar não via
com bons olhos o ingresso de judeus no país e por essa razão o governo quis
logo despachá-lo para o Brasil, o que para ele foi um motivo de muita
satisfação.
Chegando
aqui, procurou uma sinagoga para contar sua história. O rabino entrou em
contato com alguns membros da colônia judaica e arranjou-lhe abrigo na casa de
um comerciante, com a condição de trabalhar em sua loja. Durante dois anos trabalhou no pequeno
estabelecimento do anfitrião. À noite dedicava-se com afinco em conhecer as
leis brasileiras. No fim desses anos,
soube que precisava prestar exame na OAB para exercer a advocacia no Brasil.
Estudou muito durante algum tempo e confiante prestou o exame. Passou e conseguiu trabalho em um escritório
de advogados. Especializou-se em direito internacional e galgou vários degraus
na profissão.
Terminou
o relato com um profundo suspiro.
— E
aqui estou eu, desde então, levando minha vida.
Tive várias candidatas ao meu coração, mas não consegui me ligar a
nenhuma. Sua lembrança esteve sempre
presente em mim.
— E
você, o que lhe aconteceu?
Sara
contou a sua história. A voz pausada era interrompida por segundos de silêncio,
em que respirava fundo, procurando o ar que lhe fugia.
Samuel
ouvia com o peito apertado pela descrição do sofrimento que ela passara. Ela
desviava o rosto para não ver a reação do rapaz. O relato do estupro fez com
que ele fechasse o punho e desse um soco no balcão, balançando a cabeça
transtornado. O nascimento do filho de
Sara, a decisão de aceitá-lo e o amor que ela tinha por ele nublou o rosto de
Samuel. Baixando os olhos, contou-lhe
como fora salva por uma bondosa mulher, junto com as amigas e como era sua vida
no país que a acolheu.
Quando
terminou, pousou o olhar no rosto do marido e estranhou a expressão dele. O rosto contraído do rapaz destilava ódio e
um esgar de desprezo apertou-lhe os lábios.
—
Como você fez isso? Ficar com o filho de um desgraçado desse?
Ela
encolheu-se.
—
Ele é parte de mim. Não podia deixá-lo morrer.
Foi parte do meu corpo durante nove meses. Adoro meu filho. É uma
criança meiga e linda, que me dá forças para lutar. Hoje não está comigo porque está doente. Se não estaria aqui agora. Frequenta a escola, em que dou aulas no
Brás. Não sei se você conhece. É uma
escola judaica.
— Já
ouvi falar. Respondeu secamente.
Sua
atitude tinha mudado. Estava com uma expressão dura e fria.
Sara
estendeu a mão para segurar a dele, mas Samuel a retirou de maneira brusca.
—
Por que você está agindo assim?
—
Não posso te aceitar de volta, por mais que você foi a mulher de minha vida. Não quero ter perto de mim o filho de um
torturador de judeus. E levantou-se e
foi embora sem olhar para trás, ela levantou-se do banco devagar, como que
hipnotizada.
Mais
tarde contou para Esther e Anne o acontecido.
A palidez pintava o rosto bonito. A amargura transparecia na sua voz.
Elas a consolaram, dizendo que se Samuel agiu assim, não merecia a grande
mulher, que ela era.
À
noite, mediu a temperatura de Joachim e ficou aliviada ao ver que estava sem
febre. Era um menino forte. Colocou-o com
um beijo na cama e deitou-se ao lado dele.
Pela segunda vez tinha perdido o grande amor de sua vida, mas não se
arrependeu da escolha que fez naquela noite fria em que o menino veio ao
mundo. Ele era sua força e o que a movia
para um futuro melhor.
Passaram-se
semanas. Sara cumpriu as horas de aulas
e foi buscar Joachim na outra sala.
Conversou com a professora, que sempre elogiava o comportamento e a
inteligência do menino. Os dois saíram
de mãos dadas. O menino tagarelava sem parar, contando tudo o que tinha feito
na classe e com os coleguinhas. Ela sorria pelo entusiasmo que ele sempre tinha
ao sair da escola.
Ao levantar
os olhos, estacou de repente surpreendida.
Perto da porta da escola, estava Samuel parado. Um arrepio percorreu seu corpo.
—
Por que você parou, mamãe?
Ela não respondeu. Samuel veio em sua direção. O rosto estava
sério, mas o olhar era de um homem apaixonado.
— Desculpe, Sara. Fui bruto. O ódio
cegou-me. Precisei digerir tudo o que
lhe aconteceu. Nunca deixei de te amar. E dizendo isso, abraçou-a. Ela
correspondeu ao abraço e pela primeira vez em muitos anos, lágrimas rolaram
pelo seu rosto.
—
Mamãe, quem é esse homem?
Samuel
virou-se para ele e pegou-o ao colo e respondeu emocionado:
— Sou seu pai.
O
menino gritou de alegria:
—Eu
tenho um pai! Eu tenho um pai!
Ele
olhou para o menino e percebeu que ele era a cara da mãe. Um lindo menino, de cabelos castanhos e
profundos olhos azuis.
Colocou-o
com delicadeza no chão e os três de mãos dadas foram pela rua. O nascimento de uma nova vida principiou
naquele momento.
A DE TOMMASO, sempre muito interessada em acompanhar as atividades do ICAL, patrocinou a premiação para este romance vencedor, uma mala de viagem para a Adelaide viajar, aproveitar a vida.