Em desalinho
Ana Catarina Sant’Anna
Maues
Cheio de segredos ele vivia. Era homem de
ações nada claras. Pessoa fria e calculista. Por força do que dizia ser
profissão, não visitava parentes nem tinha amigos. Mas mantinha um secreto
interesse, repudiado de quando em vez, por ele próprio. De longe cobiçava Goreth, moça simples, doce,
frágil, que morava na esquina da rua sem calçamento. Todos os dias ele seguia o
perfume que ela exalava até o ponto do ônibus. Este hábito alimentava a alma
perturbada dele, com quem convivia há trinta anos.
Certa noite entendeu que havia chegado mais
um serviço. Abriu o envelope e a foto de Goreth refletiu na penumbra do quarto
alugado. Entrou em conflito. Não podia aceitar a tarefa de ceifar alma tão
angelical, isso era por demais pesar. Como louco, em atroz confusão, caminhou
por ruelas a dar socos na cabeça e a lanhar-se com o companheiro punhal.
Procurava esconderijo dentro de si mesmo para escapar da tal missão. Encolhido
num beco acariciava a foto do serviço, quando foi descoberto pela luz fraca do
luar e por Goreth que se aproximou oferecendo ajuda.
Amanheceu. O relógio marcava doze horas. Ele
acorda no quarto, entre lençol revolto, olhar vazio, oco, gélido. É o aposento
de sempre, onde a ordem não faz
morada. Sabe o que fez, e nessa
percepção olha a foto de Goreth no chão. Junta com reverência, pois sabe que
irá, a partir de agora, cultuá-la no
espelhaltar. Ali, ela e as outras estarão santificadas, na interpretação
defeituosa de tal mente insana, que entende fazer o bem quando as elimina.
Julga protegê-las de um mundo cruel e injusto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
DEIXE AQUI UMA MENSAGEM PARA O AUTOR DESTE TEXTO - NÃO ESQUEÇA DE ASSINAR SEU COMENTÁRIO. O AUTOR AGRADECE.