Sem nada a perder
Ana Catarina Sant’Anna Maués
Em meio a escombros estava
eu. A noite caia como de costume e o frio se aproximava. Sede, fome, vestida
com trapos. Miséria por todos os cantos. Mas o que mais doía era a privação de
afeto. O olhar oco de toda aquela gente me angustiava por demais. Eu não tinha
nada, eles não tinham nada, nós não tínhamos esperança.
Tarde de outono. O
sol frio entrava pela janela formando doces sombras na parede alva. Eu tomava a
lição de minha aluna mais dedicada. O som das notas em perfeita harmonia
conduzia-nos ao nirvana. Sobre a mesa um bolo esperava. De repente ouvimos sirenes,
fortes clarões, e estouros ao longe. Minha mãe chegou esbaforida na sala do
piano.
― Vamos sair, rápido, rápido, ao abrigo, vamos, vamos!
Bum!
Despertei na escuridão
com a cabeça a enlouquecer de tanta dor.
Não sentia as pernas, estavam presas, acreditava que por blocos de
concreto. Sentia-me molhada, perecia lama pela densidade. Ao longe escutava
latido de cães. Guardava meu último esforço para gritar, o mais alto que
pudesse, quando chegassem perto. Graças a Deus consegui.
Com muito trabalho
conseguiram tirar-me daquele pesadelo. Mas era só o começo, outros me
aguardavam. Do lado de fora, não havia mais casa, bairro ou cidade. Tudo havia
desabado com a potência das bombas. Trataram minhas feridas ali mesmo e me
largaram num canto qualquer entre escombros, pois não haviam hospitais com
leitos e lençóis brancos. A vista tudo era um caos de cor cinza com cheiro de
morte. Ninguém chorava porque o desalento era maior que qualquer lágrima.
Até que um dia, no de
minha maior fraqueza, quando já agonizava, abri os olhos e vi, parecia
alucinação, um carro aproximava-se, trazendo uma bandeira, única cor naquele
cenário devastado. Homens altos, fortes
desceram do automóvel, aproximaram-se e certificando de que ainda respirava,
conversaram. Foi quando escutei um dizer ao outro sobre mim: ― Deve servir! E puseram-me no banco de
traz saindo em alta disparada.
Jogada naquele
automóvel como uma peça, um objeto qualquer nada fazia sentido. O que poderiam
querer comigo? Ainda presto a alguma coisa? Àquela
altura, pensava, o que mais de ruim poderia me acontecer? Enquanto era levada às pressas naquele
automóvel, sem saber para onde, aproveitava o macio daquele assento e o cheiro
bom que o vento trazia. Cheiro de vida.
Muitos anos se passaram.
Retomei minha antiga profissão. Não perdi a audição apurada para as notas
musicais. Quando lembro daquele momento
questiono se foi uma troca justa, afinal minhas córneas foram retiradas. No
jogo do tudo ou nada, elas foram o meu tudo para a vida.
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