FIM
DE LINHA
Hirtis Lazarin
Nasci numa família pobre e desestruturada. Um
pai alcoólatra e uma mãe que aceitou a cruz como se não houvesse nada mais
além.
Cansei de ouvir: "É o destino, filha".
Os domingos em casa eram torturantes. O homem
não saía, bebia sem parar, fome não tinha.
À chegada da noite, ele desmaiava no sofá da
sala para acordar só na segunda-feira. Ou então recitava incansavelmente
a mesma ladainha recheada de palavrões acompanhada de pratos despedaçados
contra paredes, panelas e comida quente esparramadas pelo chão.
Lembro-me que, ainda pequenina, mamãe e eu
atemorizadas e trancadas no quarto, rezávamos ajoelhadas, implorando
proteção à Nossa Senhora. Quantas velas acendemos!
À medida que fui crescendo e entendendo um pouco
mais da vida, fiquei revoltada. Não suportava as loucuras do meu pai, nem
a passividade de minha mãe. Sentia raiva, muita raiva...
Nunca tive a oportunidade de trazer amigos, ouvir
música, ou escolher o programa de TV.
Sentia vergonha da minha família.
Aos dezoito anos, abandonei os estudos e fui morar
com meu primeiro namoradinho. Que experiência eu poderia ter? Mas
qualquer coisa seria melhor que viver insegura e revoltada naquela casa
horrorosa.
Samuel era um rapaz bom e trabalhador, bem mais
velho que eu.
Fez de tudo para me ajudar. Pagou psicóloga,
psiquiatra e acreditem, até me deu um cavalo de presente pois sabia que eu
amava cavalos. E ouviu dizer que equitação é um bom remédio para
diversos distúrbios.
Segui à risca todo tratamento, mas com o passar do
tempo fui desanimando. Eu continuava deprimida e revoltada.
Carregava tantos traumas que me fizeram uma mulher
fechada, de palavras amargas e frias.
Descobri que as manchas roxas que marcavam
temporariamente a pele branquinha de mamãe, arroxearam para sempre minha alma
sofrida.
Tentei engravidar. Quem sabe o riso e o choro
saudável de crianças pudessem me ajudar. O trabalho dobrado preencheria
esse vazio existencial.
Não consegui.
Em casa não havia mais música. O silêncio ficou
doloroso.
As janelas, mantinha-as fechadas. A ausência
de sol deixava o ambiente interior impregnado de um cheiro embolorado,
úmido e cinzento.
Até os muros que nos rodeavam denunciavam
melancolia. Cuspiam cal e cimento e os buracos surgiam desprezados.
Samuel não suportou viver junto de tanta
amargura. Ele estava certo. Era jovem e cheio de vida. Tinha
direito à felicidade. Deixei-o partir.
Eu estava ciente de que acabava de fazer um buraco
profundo para enterrar minha última possibilidade, meu último desejo.
Desisti, então, de vez da magia de viver.
Desisti de tirar o coelho de dentro da cartola.
Era a primeira noite que dormiria sozinha.
Senti falta do corpo dele roçando o meu. Senti falta do seu cheiro e até
do seu ronco...
Chorei tanto que eu e meu travesseiro dormimos
molhados.
Acordei sobressaltada. O relógio marcava
quatro horas da manhã.
A energia estava cortada. Por uma fresta da
janela, espiei e lá fora um vendaval uivante derrubava tralhas e arrastava
outras. Os galhos mais frágeis se contorciam em desespero, teimando em
não abandonar o tronco das árvores.
Relâmpagos intermitentes clareavam e
escureciam os aposentos. Os raios pareciam explodir dentro de casa.
Desci as escadas tremendo de pavor. Nunca vi coisa
parecida em toda minha vida.
Encontrei as janelas e portas da cozinha
escancaradas. O meu cavalo solto no quintal só se aquietou quando
apareci na porta. A louça do nosso último jantar eram cacos
espalhados pelo chão. As cortinas de tecido fino feito velas desgarradas
em alto mar, entrelaçaram-se em nós.
Uma chuva torrencial desabou.
Eu já não tinha mais nada a perder. Então
soltei os cabelos longos, despi-me e nua montei no cavalo branco.
E galopando freneticamente me perdi em meio à
tempestade.
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