A ÚLTIMA QUARTA
Dizer
o quê? As coisas vão, mesmo, acontecendo...
Leon Alfonsin Vagliengo
COSTURANDO
A VIDA
No princípio da vida de casados, os jovens
Ângelo e Carmem Di Fortuna ganhavam a vida trabalhando lado a lado na modesta
oficina de costura, que montaram com muita simplicidade e capricho a pequena garagem
alugada, para trabalhar com pequenos ajustes ou consertos em roupas e outros
serviços semelhantes. Distribuindo cartões por todo o bairro, de casa em casa,
para divulgar seus serviços, ele conseguiu atrair os primeiros clientes e algum
movimento para a oficina.
Foi
assim, numa convivência diária de muito amor e dedicação, que se tornaram
conhecidos no lugar, ganharam o sustento e criaram o filho que logo tiveram,
que batizaram como Gastão Di Fortuna. Gastão foi o nome escolhido em comum
acordo pelos dois, porque identificava um personagem de muita sorte, nos
desenhos criados por Carl Barks, dos estúdios da Disney.
A
perfeição dos trabalhos realizados pelas mãos de fada de Carmen aos poucos
conquistou muitos fregueses, e surgiram algumas encomendas de feitio: ora uma
camisa ou uma blusa, uma saia ou um vestido; todas foram atendidas com muita
qualidade, trazendo fama para a oficina, e muitos outros pedidos surgiram.
Precisaram alugar um espaço maior e contratar mais profissionais da costura,
sempre sob a supervisão de Carmem, e assim foi se consolidando uma pequena
manufatura, a que deram o nome fantasia de “Carmen – Roupas de Qualidade”.
Todo
esse processo de evolução dos negócios teve a conduzi-lo o talento inato, as
posturas firmes e acertadas do empresário Ângelo, amparado pelo suporte técnico
de produção e controle de qualidade exercidos com maestria por sua esposa na
orientação dos novos contratados.
Entre
as corretas decisões do casal estava a de formar uma equipe completa e bem
treinada de bons profissionais, dando estabilidade e autonomia à empresa ao
longo dos anos, que assim pôde sobreviver a sua maior perda e ao momento mais
difícil da vida de Ângelo, quando Carmen, numa quarta-feira muito triste, foi
abatida por um enfarte súbito e fulminante, e ele se viu, ainda relativamente
jovem aos quarenta e nove anos, de repente e para sempre, sem o amor de sua
esposa querida, a companheira fiel com quem compartilhara os melhores momentos
de toda a vida.
NASCE UM IDEAL
Inconformado
com a viuvez precoce e trágica, Ângelo precisava encontrar uma forma de superar
a infelicidade que o atingira; e, numa decisão muito emotiva, fundou uma nova
empresa à parte, um estúdio independente para costura de altíssima qualidade,
ao qual atribuiu o nome de “Carmen – Ateliê de Roupas Finas”, com o propósito
de elevá-lo ao apogeu do sucesso no mundo da moda e assim perpetuar a lembrança
de Carmen, uma justa homenagem a sua parceira de sonhos, a mulher corajosa com
quem também dividira os dias difíceis que tiveram no início da vida em comum.
Obcecado
com esse projeto, contratou uma jovem estilista para orientar o design e a
produção limitada de roupas de alta moda, selecionou duas de suas mais
refinadas costureiras e as reservou para o Ateliê, e durante os três anos
seguintes viveu uma vida quase monástica, de imoderada dedicação ao trabalho na
direção das duas empresas, sem descansos que lhe permitissem desabafar a tensão
nervosa, que apenas crescia desde a morte de Carmen.
O
sucesso do Ateliê já despontava, com a participação em badalados desfiles de
moda, quando a saúde de Ângelo começou a dar alguns sinais de exaustão. Aos
cinquenta e dois anos deu-se conta de que o seu corpo já não era mais o mesmo
de antes: o peso aumentou, surgiu uma barriguinha, as roupas pareciam estar
encolhendo. Os exames de laboratório, que até recentemente traziam sempre
resultados de que se envaidecia, passaram a colocar minhocas na sua cabeça,
revelando indicadores apenas razoáveis.
Sem dar
muita importância a essas mudanças, passivamente as atribuía ao avanço da idade
e ao estresse devido às preocupações com o trabalho, mas sem nunca correlacionar
nada com a profunda tristeza que sentia desde a perda da esposa. Mas às vezes,
sozinho em casa, chorava ao lembrar-se dela.
A intensa
atividade, cuidando dos negócios, o obrigara a restringir apenas para os fins
de semana as corridas matinais, que antes eram diárias e lhe davam tanta
satisfação. Sem perceber, nessa onda passou a atenuar o seu estresse com uma
crescente compensação gastronômica, nada aconselhável para a saúde.
O ESTRESSE
Mesmo
com toda essa carga negativa, não renunciava à realização de seu ideal, nem à
direção e ao controle das empresas, que construíra com muito empenho, rigor e
dedicação ao longo de toda a vida. Entretanto, já estava preparando o filho
Gastão, a quem ainda via como um menino, apesar de já estar com trinta anos e
diplomado em administração, para um dia substituí-lo no comando das empresas; porém,
ainda o considerava muito “verde” para assumir o controle, e não confiava totalmente
em suas decisões, principalmente na área financeira.
Devido
a isso, no começo lhe fazia discretas observações e sugestões, mas à medida em
que Gastão foi conquistando autonomia em suas funções, assumindo a liderança
dos funcionários e se tornando conhecido no mercado, a crescente tensão e a
insegurança de Ângelo se agravaram por ciúme e foram se tornando exageradas;
passou a fazer críticas ao filho que terminavam em discussões, muitas vezes
acaloradas e diante dos funcionários, criando constrangimentos e assumindo
proporções inconvenientes para o clima da empresa. Ele depois percebia e se
arrependia do seu descontrole, mas sempre quando já era tarde.
Num
desses dias Ângelo chegou ao trabalho furioso, falando sozinho, porque, no
trânsito, avançara um sinal vermelho sem perceber, quase provocando um
acidente. Além dos xingamentos que ouviu, com certeza o radar havia registrado
a placa do seu carro, e seria penalizado. Durante todo o percurso restante foi
remoendo uma desagradável sensação de culpa que feria profundamente a sua
vaidade de motorista.
Raivosamente,
e ainda incomodado com os dissabores do trânsito por que tinha passado, abriu
com violência a porta do carro, para descer. Colocou uma perna para fora, mas
não conseguiu mover o corpo. “Além de barbeiro estou gordo mesmo”, pensou,
ainda mais irritado, e tentou balançar o tronco, dando impulso na direção da
porta; novamente, não saiu do lugar. Fez isso mais uma vez, sem sucesso. De
repente, ficou claro que algo estava errado e o incidente de trânsito que o
atormentava saiu como por encanto de sua mente. Só assim se deu conta de que
estava preso, pois não havia desengatado o cinto de segurança. Mais irritado
ainda com essa “mancada” ridícula, soltou-se e rumou para o escritório, agora
ruminando a evidência de que sua cabeça não estava funcionando bem.
Esse
episódio burlesco foi a gota d’água.
Percorrendo
a estreita calçada que o levava ao escritório, Ângelo foi se acalmando. Abriu a
porta, entrou e se encaminhou diretamente para sua mesa de trabalho, sentou-se
confortavelmente na poltrona reclinável, mas nem olhou para contas, relatórios
ou documentos. Preferiu meditar sobre os episódios recentes e tudo mais que
estava acontecendo com ele, e ao final, mais tranquilo, respirou fundo e até se
riu ao pensar que não conseguira sair do carro porque não havia soltado o cinto
de segurança: “que ridículo, ainda bem que ninguém viu”, ponderou.
Essa
pausa foi importante para reconhecer que andava muito nervoso e estava na hora
de se afastar da empresa por um tempo, para um necessário descanso. Ainda era
relativamente moço e depois desse longo período de dedicação quase absoluta ao
trabalho por três anos, precisava desligar-se de suas memórias para retomar
integralmente sua vida, voltando aos exercícios regulares, à alimentação
saudável e a outras coisas que pudessem lhe devolver um pouco da saúde física e
emocional.
Dinheiro
não lhe faltava. Há muito tempo tinha deixado de ser uma preocupação. Admitiu
até a possibilidade de encontrar uma nova companheira. Carmem estaria sempre no
lugar mais especial de seu coração. Mas a vida, impiedosamente, continuava.
Precisava encerrar o luto e encontrar um rumo. Ela certamente aprovaria.
Ademais, tinha que admitir: o seu corpo há tempos estava exigindo os carinhos
de uma mulher.
Então,
decidiu-se.
Uma
longa conversa com Gastão e algumas recomendações, foram suficientes para
convencê-lo de que o seu menino estava pronto para assumir a direção total das
empresas por uns dias, enquanto ele estivesse fora. Seria uma ótima experiência
administrativa, além de excelente oportunidade para passar umas férias no Rio
de Janeiro, que Ângelo ainda não conhecia. E nada melhor do que Copacabana.
Iria já na manhã seguinte, uma quarta-feira, dia previsivelmente tranquilo na estrada.
O próprio Gastão providenciou a reserva de um apartamento num hotel que
conhecia, na Rua República do Peru.
UM
MISTÉRIO
A
viagem pela rodovia foi tranquila. Dirigir seu próprio carro, para Ângelo,
sempre foi uma terapia de grande efeito. Foi devagar, relaxado, sem pressa de
chegar, apreciando o passeio, desfrutando aquela sensação de liberdade e
descompromisso que desde muito tempo não experimentava. Almoçou num restaurante
da estrada, achou que a comida estava ótima.
Chegou
a Copacabana no meio da tarde, e registrou-se no hotel sem prestar atenção em
nada, ansioso que estava para conhecer a famosa praia. Arrumou suas coisas no
quarto, refrescou-se, depois vestiu roupas de corredor, inclusive uma camiseta
de sua grife comercial, com o logotipo formado pelas letras CRQ, e logo
saiu. Ao chegar ao calçadão da Avenida
Atlântica, buscou uma referência para não se perder na volta. Escolheu e gravou
bem na memória um anúncio do refrigerante Sprite, na esquina da rua do hotel.
O
dia estava muito agradável, uma leve brisa vinda do mar atenuava os efeitos do
sol de final de tarde, e não estava aquele calor que sempre ouvira dizer do Rio
de Janeiro. Algumas moças bonitas que passavam iam despertando nele a percepção
de que se encontrava num ambiente diferente, que lhe inspirava aventuras.
Respirando tanta liberdade depois de tanto tempo, já imaginava travessuras para
a noite, os hormônios que lhe restavam andavam agitados havia algum tempo.
Depois
de caminhar por uns minutos pelo calçadão do lado da praia, resolveu correr um
pouco pela ciclovia asfaltada e quase vazia de bicicletas; ainda conseguia dar
uma boa corrida. Logo percebeu que outro corredor, um desconhecido,
estranhamente o acompanhava, calado. Seguiram correndo em silêncio até o Forte,
voltaram até o outro extremo da avenida e retornaram novamente no sentido do
Forte; nesse momento, sem mais nem menos, o outro corredor lhe perguntou se
iriam voltar “tudo de novo”; Ângelo não entendeu nada, mas achou muito
engraçado. Começava a sua terapia carioca.
—
Ué! Você eu não sei. Eu já estou terminando e vou parar já, já.
Com
isso começaram uma conversa amistosa e ficou sabendo que o rapaz, que se
chamava Severino, trabalhava numa construção ali perto; logo se despediram e
cada um foi para o seu lado. Esse é gente boa, mas é meio maluco, pensou
Ângelo, divertido.
O
exercício tinha sido muito bom, uns oito quilômetros de corrida leve, mas já
estava cansado e passou a procurar a rua com o anúncio do Sprite. Deveria ser
por ali, mas à medida que passavam os quarteirões, constatou, preocupado, que
havia um anúncio daqueles em cada esquina. E agora? Qual dessas é a rua... Como
é o nome mesmo? Não lembrava também o nome da rua do Hotel.
Finalmente,
encontrou uma que lhe pareceu familiar. É essa, pensou. Foi por ela e encontrou
um hotel. Ainda não estava familiarizado com a fachada, nem com as instalações,
mas pela distância da Avenida só podia ser aquele, não havia outros naquele
quarteirão.
—
É aqui! — acreditou, exclamando em voz alta num desabafo de alívio, para a
estranheza de um casal que saia do prédio nesse momento.
Deixara
a chave do quarto 28 na portaria. Ainda bem que tinha boa memória para números,
pois não foi reconhecido pelo recepcionista, que estranhou quando pediu a
chave. Desconfiado, o rapaz verificou e confirmou que não havia nenhum registro
de hóspede em nome de Ângelo Di Fortuna, e o quarto 28 não poderia ser, porque
estava vago. Depois de muita insistência de Ângelo, que já demonstrava um misto
de impaciência e irritação, e para resolver definitivamente o impasse sem
maiores confusões, o rapaz concordou em lhe mostrar o quarto. Chamou o
vigilante do hotel para os acompanhar, abriu a porta do quarto 28, e lá,
realmente, Ângelo não encontrou as suas coisas. Assustado, correu à garagem do
hotel, e lá também não encontrou seu carro.
Estava
só com as roupas de corrida, suado, cansado, não tinha dinheiro, nem cartão de
crédito, nem celular, nem mais nada.
Saiu daquele hotel completamente aturdido e passou a andar a esmo pelas
ruas das imediações. Não conseguia entender o que estava acontecendo.