ERA UM SEGREDO
Hirtis
Lazarin
Estou no meu quarto trancado, revirando meu
pensamento sobre o que papai me confidenciou ontem. Um segredo que ele guardou
a sete chaves, durante quarenta e nove anos. Incumbiu-me de uma missão que
deverei cumprir assim que ele se for. Espero que isso demore a acontecer. Não
estou preparado pra viver sem a sua presença.
Hoje
ele tem sessenta e cinco, mas aparenta idade bem mais avançada. A pele clara
está mais enrugada do que deveria. Os olhos perderam o brilho e, por trás das
lentes grossas dos óculos, esconde a falta de vontade de viver.
Li
um poema, não guardei o nome do autor. Ele esclarece, com muita sabedoria, a
diferença entre ser idoso e ser velho. Papai está velho, não tem sonhos, dorme muito
e não tem vontade de aprender mais nada. Entregou-se.
Mas,
só agora, depois de ouvir a sua história, entendo a amargura que sempre tentou
esconder. Sei que tudo poderia ser
diferente, se tivesse confiado em alguém, aberto seu coração e contado sua verdade.
Mamãe é bem mais nova que ele, uma ótima
esposa e mãe. Mesmo com a casa sempre impregnada da poeira que vem da rua
esburacada e sem calçamento, e com o avental sujo de ovo, trabalha cantando e com o rádio ligado. Canta todas as músicas de
cor. Traz jovialidade à nossa casa.
Ela
casou-se por amor e não abandonou o barco, mesmo quando parecia estar se
afundando. As mulheres NÃO podem
abandonar o marido. Não conheço nenhum caso de mulher separada. O casamento é pra sempre.
Todos
os dias, durante o seu trabalho doméstico que nunca acaba, prende,
religiosamente, os cabelos longos (papai não deixa cortar) com fita de cetim no
alto da cabeça. O pescoço alongado deixa à mostra um crucifixo, preso a uma
gargantilha de ouro. Desde que a conheço, nunca deixou de usá-la. Disse que foi
uma promessa a Nossa Senhora, por graça alcançada. Minha família é mais
religiosa do que o necessário.
Sinto
que ela é feliz. Acho que não é como queria que fosse, mas tem uma casa
confortável e a aposentadoria do papai dá pra fazer uma viagem a Santos todos
os anos.
Acho
que vocês estão curiosos para que eu conte que segredo é esse e qual é minha
missão.
Bem,
vamos lá. Pra situá-los, estamos, hoje, no ano de 1864.
Tudo
começou por volta do ano 1819, quando papai tinha apenas 16 anos de idade.
Meus
avós mais quatro filhos moravam na Rua da Cruz Preta. Todos ali se conheciam.
As crianças e os adolescentes brincavam e se reuniam à frente de casa até o dia
escurecer. Não havia iluminação elétrica e mesmo se fosse lua cheia era chegada
a hora do banho e do jantar. E todos obedeciam.
Em
frente ao sobrado da esquina, havia uma cruz pintada de preto e ninguém sabia
ao certo como ela foi parar ali.
Numa
manhã, como outra qualquer, os moradores acordaram com ela plantada ali. Nenhum
barulho, nenhum movimento estranho durante a noite. Um mistério assustador para
aquele povo humilde e cheio de crendices.
Muitos
comentários, muita fofoca, surgiram e muito medo também. Como nenhuma teoria foi
confirmada, os moradores consultaram um padre e decidiram que o melhor era considerá-la
sagrada e fazer ali um ponto de oração.
O
padre Piero, que dirigia a igrejinha do final da rua, benzeu a cruz com muita
água benta para espantar qualquer influência negativa e mal olhado.
E
todos ficaram em paz...
Pra não
me alongar, vou resumir um pouco.
Meu
pai e a menina do sobrado da esquina, Maria Luíza, começaram a se ver às escondidas.
Na rua vizinha, havia um galpão abandonado que já fora o armazém do Seu
Zé. E era lá que os dois se encontravam.
Tudo tão bem planejado e controlado que ninguém nunca suspeitou.
Mas
o romance foi por água abaixo quando estudantes da Academia descobriram a tal
da Cruz Preta e começaram a frequentar o lugar.
Um
deles, talvez o mais ousado e encantador, na calada da noite, escalava o
madeiro só pra ver a mocinha toda faceira que o esperava debruçada na janela do
quarto. Ele conquistou e roubou o grande amor do meu pai.
Isso
durou até a mãe da menina acordar na madrugada pra tomar água. Quando voltava, e ainda no corredor da casa,
ouviu sussurros e gemidos vindos do quarto da filha. Achou que ela estava
sonhando e entrou pra agasalhá-la. A madrugada estava bem fria.
Pegou-os
em flagrante.
Não
demorou dois meses e já estavam casados. E o mais alarmante foi que o bebê
chegou antes da gestação completar oito meses.
E a
vida do meu pai mudou pra sempre quando ele conheceu a menina e pegou-a no
colo.
Discretamente,
abriu um dos botões do casaquinho e confirmou: a criança tinha, perto do
umbigo, uma mancha de nascença. Uma estrela igualzinha à que ele tinha também.
A filha era sua.
Este
é o segredo que guardou até ontem.
E a
minha missão é encontrar minha meia-irmã.
Agora,
contarei a vocês o meu segredo: já vou começar a procurar a filha do meu pai.
Eles precisam se conhecer.
Já
fiz as contas: ela tem hoje quarenta e cinco anos de idade.
Uma bela e emocionante história.
ResponderExcluirAbraços Helio
Boa história, contada por um narrador personagem em primeira pessoa, caracterizando as circunstâncias em que se formou um segredo embaraçoso. Muito bem.
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