Cruz Preta
Adelaide
Dittmers
Padre
Francisco gostava de se postar à janela da torre da igreja ao cair da
tarde. As pequenas casas, que debruavam
as estreitas ruelas ficavam douradas pelo sol poente, o que escondia o desgaste
das paredes mal pintadas daquelas construções, cujos moradores tinham que se
conformar com a simplicidade de viver com o parco dinheiro, que lhes vinha de
um trabalho duro e extenuante.
Gostava
do observar as pessoas arcadas pelo cansaço, que voltavam para seus lares e
suas carências.
O
seu olhar alcançava e se detinha na velha Rua da Cruz Preta, assim chamada por
causa de uma grande e famosa cruz de ferro, que estava presa à fachada de uma
casa assobradada, que era a maior e mais bem conservada do lugar, moradia de um
endinheirado comerciante.
A
monotonia da ruela era quebrada pela algazarra dos estudantes, que por ali
passavam, espalhando suas juventudes e irreverências pelo lugar. Detinham-se à frente da casa da cruz preta
para admirar e atirar galanteios a uma jovem, que todos os dias debruçava sua
beleza em uma das janelas, derramando
sobre eles um olhar triste, mas ao mesmo tempo cobiçoso, prisioneira que se
sentia das normas rígidas daqueles tempos. Muitas vezes ela se escondia atrás
da grossa cortina da janela e o padre de seu posto de observação matutava se
era por timidez ou um jogo de sedução.
Padre
Francisco conhecia a família de longa data e observava esse movimento à frente
daquela janela com muito interesse.
Afinal era o pastor daquelas almas.
No
meio do grupo barulhento, um rapaz se destacava pela constância da presença e
por ficar ali parado, olhando para a janela, mesmo depois do grupo seguir seu
caminho. Abria os braços e depois colocava as mãos sobre o coração para
demonstrar à jovem seu interesse por ela. Algumas vezes entoava uma canção e se
despedia se curvando em um gesto de respeito e admiração.
Certo dia, o padre viu uma flor ser jogada e
alcançar a janela. A moça a pegou e a
prendeu nos longos cabelos negros. Com o
passar do tempo notou que a mucama, que criara a jovem desde pequena, saia à
porta com pedaços de papel, que eram trocados por outros, que o rapaz entregava. Cada vez mais Padre Francisco ficou
interessado em controlar o que acontecia naquela casa.
Em
um frio e chuvoso crepúsculo, em que a garoa toldava sua visão, o sacerdote
alcoviteiro arregalou os olhos ao ver o estudante escalar a enorme cruz
escorregadia pela água fina que caia.
Como
um tufão desceu as estreitas escadas da torre.
Aquilo não podia acontecer.
Era contra as leis da igreja. Ele tinha que defender a moral de seu
rebanho. Nunca permitiu o desvio para o
pecado de seus membros. Sempre lutou
pelo bom comportamento de seu povo.
Saiu
da igreja indiferente à garoa, tropeçando nos desníveis das ruas de terra
molhadas e lamacentas. A grande barriga
sacudia-se com a corrida e a boca abria-se a cada respiração para recuperar o
fôlego.
Chegou
à casa e bateu palmas com as forças que lhe restavam. A mucama o atendeu e
espantou-se com a presença molhada, esbaforida e inesperada do padre.
Ele
entrou e sem cerimônia jogou-se em uma cadeira exausto. Os donos da casa assustaram-se ao vê-lo, que
com palavras atabalhoadas relatou o que vira.
O pai galopou pelas escadas acima.
O rosto vermelho de raiva. Gritos foram ouvidos. Momentos depois, a moça chorosa foi arrastada
escada abaixo pelo pai furioso. Atrás, o
rapaz seguia-os com a mão no rosto em que se viam marcas de dedos causadas por
um bofetão que levara.
O
casal confessou que se amava e a jovem aos gritos jogou sua revolta por ser
sempre vigiada e sempre ser tratada com
uma rigidez férrea pelos pais, que não queria enxergar que ela não era mais uma
criança. Depois de uma acalorada
discussão, foi determinado que teriam que se casar o mais depressa possível.
Essa decisão foi recebida com uma alegria disfarçada pelos dois amantes.
Terminada
sua missão, padre Francisco despediu-se da família, depois de dar um sermão aos
jovens.
No
caminho de volta, a garoa ainda caia e espalhava-se pela ação do vento
frio. O padre caminhava meio encurvado
para evitar as gotas, que teimavam em molhar seu rosto e obscurecer sua visão. Era
atropelado pelos pensamentos, que surgiam fortes e que ele queria expulsar, mas
não conseguia. Queria que a chuva
lavasse sua alma do que estava sentindo.
Sempre
fora austero ao julgar as fraquezas humanas e por que agora ao ver o casal tão
feliz ao conquistar a aceitação de seu
amor, sentia uma grande e incompreensível inveja, que lhe corroia o
coração. O que lhe estava acontecendo. Pensou nas tardes, em que da janela,
observava a vida que passava lá embaixo, modorrenta, mas viva. Descobriu em um
lampejo que sempre almejara aquela liberdade.
Chegou
à casa paroquial angustiado. Subiu para o quarto e depois de se trocar e se
secar, ajoelhou-se em frente a uma cruz pendurada na parede fria e pediu a Deus
que o perdoasse pelos pensamentos pecadores. Permaneceu em oração por um longo
tempo.
Cansado,
deitou-se na cama e adormeceu.
E
sonhou que estava escalando a enorme cruz preta...
SENSACIONAL… Uma descrição perfeita dos detalhes e um final magnífico. Parabéns Adelaide
ResponderExcluirAbraços Helio
Mais uma ótima história da Adelaide, Descrições apropriadas, sequência perfeita, figurações preciosas, como: ...espalhando suas juventudes e irreverências..., ...debruçava sua beleza em uma das janelas... Excelente, gostei muito. Parabéns.
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