APOSENTADO
SEM ÂNGELA, COM ÂNGELA SEMPRE
Um conto que conta como e
por que ele mesmo foi contado noutro conto.
Também, um conto do amor que
ignora as fronteiras da morte.
Leon Vagliengo
Gustavo
sempre foi um executivo de sucesso, graças a seu preparo e competência. Em sua
brilhante carreira, desde muito cedo galgou cargos de chefia. Lider inconteste
e sempre querido por seus funcionários, após mais de quarenta anos de bons
serviços acostumara-se às vitórias, nunca havia sentido a decepção de um
fracasso.
As
fortes reprimendas que recebera de seu pai, quando não tirava notas altas na
escola, ou quando cometia algum erro, foram muito úteis para o seu aprendizado
e formação, mas deixaram marcas profundas em sua personalidade. Não suportava
errar ou perder.
A
aposentadoria lhe trouxe a oportunidade de realizar alguns sonhos, que antes
ficavam fora de seu alcance por falta de tempo. Viúvo havia já três anos,
sentia muita falta de sua Ângela, com quem desfrutara uma feliz cumplicidade
por quase meio século.
Para
fugir das recordações que tanto o machucavam e, também, para tornar mais cômoda
a sua vida, agora ainda mais solitária, mudou-se para um pequeno apartamento,
que mobiliou com muito cuidado para que lhe fosse confortável e de fácil
manutenção, próximo ao parque da cidade, onde poderia encontrar distrações,
fazer exercícios e, quem sabe, novos amigos.
Enquanto ainda trabalhava, depois da viuvez, procurava alguma
distração no lazer dos fins-de semana ou das férias, que sempre se restringia a
distrações convencionais e momentosas por essência, como cinema, TV,
espetáculos esportivos, almoços ou jantares em bons restaurantes, eventualmente
alguma curta viagem; porém, nada que envolvesse compromisso ou continuidade. E
sozinho, tudo ficava muito sem graça. Mas não era mais tempo para encontrar uma
nova companheira, e nem queria. Ele e Ângela não tiveram filhos, e o seu coração
ainda era todo para ela, que estava sempre presente em seu pensamento.
Agora, com a aposentadoria, teria que escolher alguma
atividade a que pudesse dedicar-se de verdade, em que pudesse colocar um pouco
de si mesmo, liberar suas ideias, seu espírito; enfim, buscar alguma ocupação
que lhe proporcionasse algum prazer pessoal para preencher o vazio que Ângela
deixara. Esta nova condição de aposentado se afigurava para Gustavo um pouco
assustadora, pela solidão que já pressentia. Tinha que encontrar o que fazer,
como preencher o seu tempo. Com esse propósito, meticulosamente foi avaliando
algumas possibilidades para organizar a sua nova vida.
Pensou
na prática regular de esportes, por exemplo, mas aos setenta anos já não teria
o vigor necessário para isso; em verdade, logo percebeu que seria muito
conveniente adotar atividades físicas moderadas, que ajudassem a preservar o
seu bem-estar, e, certamente, a idade já o aconselhava a não exagerar. Assim,
optou por uma caminhada diária, entremeada por alguns exercícios adequados a
suas condições de saúde.
Viajar, também, seria uma ótima alternativa, especialmente
para o início da nova fase. Mas impunha limites, especialmente os financeiros,
e não poderia ser realizada em caráter permanente.
Ainda
faltava encontrar uma atividade que ocupasse regularmente o longo tempo
disponível de que agora dispunha.
Depois
de muito cogitar, Gustavo pensou na possibilidade de dedicar-se a escrever.
Seria uma maneira de ocupar o seu tempo e uma forma direta de exercer a sua
criatividade, expor o seu pensamento, as suas emoções, os seus sentimentos. Um
campo vasto, inesgotável, a ser explorado. Encantou-se com a ideia. “Quem sabe,
um dia ainda escrevo as minhas memórias, escrevo sobre a saudade que sinto da
Ângela, ou até um belo poema para ela”.
Gustavo nunca havia antes se dedicado a escrever contos,
histórias ou memórias, não tinha essa prática. No trabalho que deixara, até
escrevia; dominava razoavelmente bem a gramática em suas concordâncias, na
coerência de sua sintaxe, na lógica de suas frases e tudo mais, mas eram textos
frios, correspondência comercial.
Imaginando
que seria fácil a adaptação para a ficção, de início tentou. Tinha boas ideias,
mas sentiu a dificuldade quando procurava colocá-las num texto: em suma,
demorava muito para conseguir organizá-las numa sequência lógica e no final ficavam
sem graça. Analisando os seus escritos, logo percebeu que neles faltava a
emoção, faltavam os sentimentos. Eram, praticamente, descrições frias e pouco
interessantes, como as cartas comerciais que escrevia quando trabalhava. Não
produzia nada parecido com as peças que lia de bons autores. Nem de longe, como
se diz. Mas não poderia desistir, isso era muito importante para ele.
Precisaria de ajuda.
Após
algumas pesquisas, encontrou um grupo que se reunia semanalmente para aulas de
orientação sobre escrita literária. “É disso mesmo que eu preciso. Ângela me
apoiaria, com certeza”, pensou emocionado.
Fez
a inscrição.
Assim,
Gustavo passou a frequentar aulas de escrita literária, em busca de noções e
dicas que lhe proporcionassem o conhecimento básico para tentar realizar-se
como escritor.
Não
imaginava, porém, como seria desafiador. Constatou, na prática, que, a cada
aula, após algumas boas dicas e orientações, a Professora dava um tema ao aluno
e, como exercício de aula, a tarefa de encontrar uma história sobre esse tema em
algum lugar do seu cérebro para escrevê-la em cerca de meia hora e apresentá-la,
em leitura, à Professora e aos colegas. Esse era o método, que se completava
com os contos escritos em casa para a avaliação, crítica e correção pela
Professora.
O
problema todo, para Gustavo, eram esses exercícios rápidos, em que se expunha
no momento da leitura. Aula após aula, a muito custo, Gustavo rabiscava algumas
palavras, mas nada que parecesse uma história, por simples que fosse, pelo
menos em sua própria e exigente concepção. Ouvia as histórias escritas por seus
colegas, algumas muito boas, considerando a exiguidade do tempo em que eram
concebidas. Via que os outros conseguiam, ele não. Estava acostumado a vitórias
sempre, mas agora sentia-se derrotado. E isso não cabia em sua personalidade.
Essa
situação foi deixando Gustavo cada vez mais tenso. Sempre fora um vencedor,
agora sentia-se um fracassado. Mesmo com o incentivo da Professora, que tentava
tranquilizá-lo dizendo que aos poucos ele conseguiria, que seria só uma questão
de dedicação e treino, não adiantava. Intimamente, já estava se considerando um
fiasco em sua aspiração a escritor.
E a
tensão só foi crescendo, dificultando ainda mais o seu desempenho. Até que, após
uma das aulas em que não conseguiu fazer o exercício, chegou ao seu limite: “Que
vergonha, todos estão percebendo que eu não consigo. Ângela ficaria
decepcionada comigo, se soubesse os vexames que tenho passado”. Em verdade,
vexames que só estavam em sua cabeça, mas esse pensamento mexeu profundamente
com ele, dormiu muito mal naquela noite.
Em
pesadelo, viu-se no palco de um auditório, havia acabado de ler a história que
escreveu no exercício de aula. Com insuportável constrangimento via que os seus
colegas, alguns de amizades tão antigas, e até a Professora, riam muito, riam
sem parar, zombavam dele, porque a sua história era ridícula. Na porta desse
auditório surgiram, então, várias pessoas que também riam e faziam coro com
aquela monstruosa zombaria. Eram os Deputados... os Deputados!? Sim, os
Deputados! Ele, a Professora, seus colegas e essas pessoas estavam todos no
prédio da Assembleia Legislativa! Que vergonha!
De
repente, fez-se um silêncio sepulcral. Todos se calaram apavorados quando
apareceu aquele vulto etéreo, deslizando suavemente no ar. Era a sua Ângela, vestida
toda de branco e chorando muito, um choro convulsivo, entrecortado por gemidos
que pareciam vir do Além, porque ele, o seu amor eterno, estava sendo
humilhado. Nesse momento Gustavo acordou assustado, agitado, com o coração batendo
muito e forte, chorando pela vergonha que passara no sonho.
Aos
poucos foi se acalmando, retomou vagamente a percepção de que estava em seu
quarto, e viu que Ângela não estava lá, tivera um sonho ruim em que ela veio protegê-lo;
mas “... será que ela não estava mesmo?...parecia tão
real...” pensou, ainda em dúvida.
Mais
acordado, Gustavo levantou-se, foi ao banheiro, lavou o rosto; foi até a
cozinha, bebeu um copo de água, acalmou-se de vez; então, já inteiramente consciente,
reconheceu o estresse que as aulas provocavam nele, devido ao desafio do
exercício. Não era do seu feitio, mas já havia alguns dias que estava pensando
em desistir, não estava aguentando mais aquela tensão. Tentava não pensar nisso
porque significaria o encerramento de seu sonho de escrever. Mas sofria. Sentia-se
em divergência consigo mesmo perante a luta renhida travada entre o razoável,
que eram as suas dificuldades como aluno iniciante, e as despóticas exigências de
sua personalidade, que não tolerava insucessos. Precisava reagir.
Não
era à toa que Gustavo conquistara o prestígio de vencedor. A sua tenacidade, a
sua perseverança, a sua garra, sempre o mantiveram em combate até a vitória. Resolveu
continuar, enfrentar aquele martírio.
As
aulas se sucederam, os temores se sucederam, os exercícios se sucederam, e
Gustavo, até em homenagem à memória de Ângela, continuou lá, na luta, mesmo com
aquele sofrimento crescente devido a sua sensação de insegurança e
incompetência. Em verdade, a batalha não terminara. Cada exercício feito era um
grande tormento, mas também era um treino. Um dia esse esforço ainda lhe traria
frutos.
Naquela
tarde, uma nova aula. Desde algumas horas antes, a tensão já tomava conta de
Gustavo. Era uma inquietação incômoda e persistente, um misto de temor,
ansiedade e angústia, que ele buscava disfarçar, não poderia revelar. Sentia
que não seria compreendido, achava que aquele sentimento era apenas seu, devido
ao seu modo de ser.
A
aula transcorreu normalmente, como sempre. E quando veio o exercício,
inesperadamente veio também uma inspiração. Gustavo resolveu escrever sobre um
aluno de escrita literária que tinha um temor crescente pelos exercícios de
aula, porque não conseguia fazê-los e ficava, a cada insucesso, com mais
vergonha da Professora e dos colegas. Contou tudo, até o pesadelo. Era ele
mesmo, era a sua história. Como a conhecia bem e sabia toda a sua sequência,
desta vez não foi tão difícil escrevê-la, o que fez rapidamente, no prazo
estipulado.
Depois
de ler o seu trabalho para a Professora e seus colegas, descobriu, pelos
comentários solidários que ouviu, que ele não era o único a temer os exercícios
de aula; eles também os temiam e sentiam-se inseguros, a sua história criou uma
oportunidade para a revelação. E a boa
receptividade que os seus companheiros tiveram ao escutá-la, foi, para ele, o
incentivo definitivo.
No
sorriso divertido e carinhoso da Professora, finalmente o atestado de uma
vitória.
Gustavo,
tal como um menino, sentiu-se aliviado, entusiasmou-se com esse primeiro
sucesso, renovou a sua autoconfiança e não teve mais dúvidas em continuar. “Ainda
serei, sim, um escritor. Lá no Céu, Ângela, certamente, ficará orgulhosa de mim,
como sempre”, pensou, feliz e sonhador.
Ninguém
entendeu quando o ouviram dizer, sorrindo, desligado de tudo e absorto em seus
pensamentos, sem nem perceber que estava falando sozinho:
— Imagine,
então, quando eu fizer um poema para ela!
O personagem Gustavo nunca discutiu a importância de escrever histórias rápidas, sob pressão, pois sabia como seria produtivo, para o seu aprendizado, enfrentar esse desafio. O problema era outro, de fundo psicológico, só dele: sentia-se mal porque não conseguia admitir o insucesso. Mas, com o tempo, venceu os seus bloqueios e mostrou o valor da persistência. Seus colegas também sentiam-se inseguros ante a incerteza de conseguir, mas não sofriam. Reconheciam com naturalidade que é apenas um ótimo treino estimulado e, ao final, vem o comentário que orienta. Esta história saiu do esboço feito na aula, em um desses exercícios rápidos.
ResponderExcluirBeleza Leon, penso que você relatou um pouco de cada um de nós. Também outras pessoas, em outras situações poderão tirar proveito desta luta.
ResponderExcluirAbraços
Salema