FEITIÇOS DA LUA
Hirtis Lazarin
Era uma hora da tarde quando Raquel estacionou
o carro. Horas seguidas de viagem, muita poeira levantada da estradinha
esburacada de terra batida. Quase
ninguém no percurso.
Abriu os vidros embaçados e
viu, bem a sua frente, o casarão abandonado.
Desceu tremendo de
emoção. Um sonho concretizado.
Sentou-se num bloco de
pedras, despiu-se do casaquinho de lã e desamarrou o tênis que apertava os pés. O sol de outono preguiçoso e macio
observava-a em silêncio.
Respirou fundo várias vezes
antes de caminhar ao redor do prédio histórico construído no século XVIII. Ali funcionou por cento e três anos a Câmara
dos Deputados de São Paulo.
Total abandono... Nunca
houve um projeto de preservação e restauração. Representa a morte de um
pedacinho da nossa cultura, um pedacinho da nossa história.
Uma dor sem fim ver uma
estrutura construída com todos os requintes que a arquitetura da época
oferecia, abalada por infiltração de raízes grossas e furiosas comprometendo o alicerce. O reboco caído expondo feridas nas paredes
encardidas e maltratadas. As janelas que
sobraram mergulhadas num choro abafado e triste, ao menor balanço do vento.
Na lateral esquerda, restou
uma escada de pedras coberta de musgo, ambiente propício às pererecas e grilos,
quando a noite cai. Ela conduz a um
alpendre coberto de folhas secas que, provavelmente, se renovam com a mudança
de temperatura. Duas poltronas, que já
foram aveludadas, abrigam uma gata que pariu e ali fez seu ninho.
Raquel é jornalista e se
alimenta de histórias não contadas da história real. Ainda criança, ouviu de seu avô-historiador
um caso intrigante que envolvia o deputado Dr. Alfonso Lima de Albuquerque, um
dos mais atuantes e cultos que atuou ali, nos idos de mil e oitocentos.
Um jovem de ideias nada
convencionais e que extrapolava os padrões estabelecidos na época. Sua criatividade não tinha limites. Era
apaixonado pela “LUA” e previa que, num futuro não tão distante, o homem
chegaria lá. Numa época em que o
transporte era feito por animais...
A moça empurrou,
cuidadosamente, a porta da entrada principal.
Moldada em ferro fundido, nem se mexeu.
Usando as duas mãos, imprimiu mais força e o ranger da ferrugem soou
como um lamento impertinente.
Abriu-se diante dela uma sala
imensa. O piso, nem se via, coberto que
estava de lixo. Entrou arrastando os
pés, temendo que o assoalho rompesse.
Fechou os olhos e se pôs a
imaginar como seria ali num dia normal de expediente: quantas vidas, quantas vozes ao mesmo tempo,
quantas discussões acaloradas, desentendimentos, risadas escancaradas. Homens elegantes em ternos alinhados, homens
munidos de bengalas, homens de todos os tipos... E poucas mulheres.
Uma cócega no pé acordou-a. Um
rato passou correndo e desapareceu em meio à sujeira. Raquel gritou, deu uma corridinha, mas não
desistiu da sua curiosidade.
A sua frente, estendia-se um
corredor sem fim, portas intercaladas, de ambos os lados. Em cada uma, resquícios do que foram
plaquinhas de alumínio. Tentou juntar o
que restou das letras gravadas, provavelmente o nome do último deputado que
ocupara aquele espaço. Impossível! O
tempo arruinara a caligrafia.
Raquel entrou em quase todas
as salas. Procurava algo importante. Encontrou abandono e solidão. Até que se deparou com o que mais queria: o
gabinete do Dr. Alfonso. Identificou-o
pelos relatos que colhera. Nas paredes, restavam desenhos quase que totalmente
apagados de vários modelos de naves espaciais, traçados do percurso à lua e
muitos rabiscos de cálculos matemáticos ininteligíveis. Feitos à base de tinta
a óleo, o que permitiu a resistência de alguns detalhes.
A sua obsessão pela “LUA”
cresceu de um jeito que extrapolou todos os limites de uma mente sã. Falava sozinho, perambulava pelo vilarejo
durante a noite e quase não dormia, desenhava nas paredes do quarto e do
gabinete, fazia cartazes e rasgava todos em ímpetos furiosos. O que começou como façanhas de um homem inteligente,
terminou como atos de loucura.
Dr. Alfonso não completou
trinta anos e morreu num manicômio.
Raquel tinha, então, todo
material necessário para seu furo de reportagem.
Parabéns Hirtis a sua história é uma verdadeira aula para o leitor . É muito bem elaborada e a gente acompanha com interesse a entrada da Jornalista na casa abandonada.
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