A galope
Hirtis Lazarin
Ela
nasceu numa família pobre e desestruturada.
Pai alcoólatra e mãe que aceitou a cruz como se não houvesse nada mais
além.
Helena
cansou-se de ouvir: "É o destino, filha".
Os
domingos eram torturantes. O pai não
saía de casa, bebia e comia sem parar. A
mãe dividia o tempo entre o fogão e a pia.
Na
chegada da noite, já bêbado, inundava a casa de palavrões e louças espatifadas
pelo chão. Desmaiava no sofá da sala para
acordar, mal-humorado, só na segunda-feira, já gritando pelo café fresco.
Incontáveis
vezes, Helena e a mãe, trancadas no quarto, imploravam proteção à Virgem
Maria. Quantas velas foram acesas e
queimadas.
Helena
nunca teve a chance de trazer amigos para casa, ouvir música sossegada ou
escolher seu programa de t.v.
E, à
medida que crescia, falava menos e revoltava-se mais. Sentia-se muito só e com vergonha da família.
Não
suportava a ignorância do pai, nem a passividade da mãe. Abandonou os estudos a contragosto da dona
Esmeralda que sabia muito bem a falta que faz.
Sem estudo, tornamo-nos escravos de nós mesmos. E a mocinha fingia não entender...
Nem
tinha dezoito anos quando abandonou a todos e fugiu com o namorado. A mãe quase morreu de tristeza. Que experiência poderia Helena ter? Qualquer coisa seria melhor que viver
insegura e amargurada naquela casa dos horrores.
Mas,
Helena teve sorte. Samuel era um rapaz
bom e trabalhador. Fazia de tudo para ajudá-la
na superação dos traumas, pagou psiquiatra, psicólogo e até se perdeu com
tantos boletos de prestação na compra de um cavalo, quando ficou sabendo que a
equitação ajudava na recuperação traumática.
Mas
nada adiantava. Helena continuava
amarga e de palavras frias.
Tentou
engravidar. Quem sabe o riso e o choro
de uma criança pudessem ajudá-la? O trabalho
ininterrupto preencheria o vazio existencial?
Após
idas e vindas às clínicas e muitas tentativas, a gravidez não vingou.
Na
casa escura, não havia mais música, nem sol.
As janelas sempre fechadas impregnavam às paredes de um cheiro
embolorado, úmido e cinzento.
Até
os muros que rodeavam a construção, gritavam melancolia. Cuspiam cal e cimento. E os buracos só aumentavam.
Samuel
chegava cada dia mais tarde. Passava
sempre no boteco da esquina para um trago com os amigos e lá esquecia-se do
tempo. E, quando encontrou, em casa,
garrafas vazias de bebida alcoólica escondidas debaixo de um móvel, não teve
dúvidas. Chegara a hora de deixar tudo
pra trás. Não houve discussão nem briga. Helena sabia que acabara de cavar um buraco
profundo pra enterrar de vez sua vida.
Era
a primeira noite que ela dormia sozinha.
Sentiu falta do corpo masculino roçando o seu. Sentiu falta do cheiro e até do ronco de
Samuel.
Chorou
tanto que ela e o travesseiro dormiram molhados.
Era
de madrugada quando acordou sobressaltada.
No escuro e sem energia, aproximou o relógio dos olhos e os ponteiros
marcavam quatro horas.
Espiou
pela fresta da janela e o vento uivante derrubava coisas e arrastava-as numa
cantoria infernal.
Apavorada
e só, Helena desceu as escadas. As
janelas e a porta escancaradas. As
cortinas de tecido fino mais pareciam velas desgarradas em alto mar,
entrelaçadas em nós. O chão brilhava
encharcado de chuva. A louça do último
jantar eram cacos espalhados sobre a mesa e pelo chão.
O
cavalo que vivia solto no quintal relinchou como nunca antes e só se aquietou
quando a moça apareceu à porta.
Num
ímpeto, Helena soltou os cabelos que viviam escondidos, despiu-se e correu para
a chuva. Montou no cavalo branco e,
galopando freneticamente, desapareceu em meio à escuridão da tempestade.
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