O julgamento
Ana
Catarina S’Antanna Maués
Inglaterra,
ano mil centos e um.
O
vento uivava anunciando mais uma noite de baixa temperatura. Felipe tinha as
mãos geladas apesar da lareira. Em movimentos mecânicos ele alimentava o calor
com mais lenha. Sentia frio, muito frio, seria nervoso? A qualquer momento eles
chegariam. Poderia ter fugido, mas não quis deixar toda uma existência para
trás, lembrança marcada em objetos, móveis, no lar, na natureza que constituía
a terra em que nasceu, por algo que no seu entender, pudesse ser resolvido.
Então ficou para enfrentá-los.
Com
a ponta dos dedos afastava, vez por outras, a cortina e olhava o céu por cima
da floresta que cercava a casa. O tempo carrancudo com nuvens escuras, causava
mau pressentimento. Até os pássaros hoje recolheram-se mais cedo. Estava só. Na
sala o cuco do relógio era sua única companhia, porém péssima, pois avançando
os minutos acelerava a angústia e agitava o coração.
Passado
algum tempo ele escutou barulho. Lá vinham eles falando alto, subindo a estrada
de chão, segurando tochas que bem sabia não eram para iluminar o caminho.
Neste
momento resolveu folhear como páginas de um livro, o passado recente. Voltou
cerca de quinze dias, escolheu a data em que a conheceu. Tinha acordado cedo,
tomado a espingarda e se enveredado mata à dentro procurando uma boa caça. De
repente viu um animal, mirou no pequeno alce, tamanho suficiente para
alimentá-lo bom tempo. Disparo perfeito, mas um grito ecoou entre as árvores.
Ele correu na direção do som e viu uma moça caída próxima ao alce. Felipe a
carregou, o ferimento não parecia grave, foi de raspão no braço, mas a fez
desmaiar. Ele havia com um único tiro, atingido a ambos.
Já
em casa esperou que despertasse. Quando ela abriu os olhos ele disse:
— O
ferimento é discreto, fiz um curativo, nem ficará cicatriz. Mas diga, o que
fazia ali? Não há residência por essas bandas, sei, porque moro há anos e caço
com tranquilidade sabendo disso.
Ela
continuava calada.
— Você não fala? É muda? Sabe escrever ao menos?
Felipe
toma papel e lápis e escreve perguntando o nome dela. Ela finalmente resolveu
falar:
— Não há necessidade de papel, não sou muda.
Estava apreciando a paisagem e me afastei do vilarejo, só isto.
—
Mas, o vilarejo fica bem distante, é perigoso para uma moça sozinha
aventurar-se na mata.
— Eu
sei me defender. Não preciso de cuidados de estranhos.
— Oh! Sim. Basta não passar na frente de um
tiro. Felipe fez uma careta e ela não segurou o riso.
Depois
deste breve diálogo, outros vieram e os dois, no final da tarde, já estavam bem
amigos. No almoço ele preparou um belo bife e brindaram ao falecido alce que os
fez conhecerem-se.
Lá
pelas tantas ele disse:
— A
conversa está boa, mas preciso levá-la para sua família e explicar o
acontecido. Vou só pegar um casaco para mim e outro para você. Felipe saiu da
sala falando e retornou dizendo: Não está muito perfumado, pois não
sou bom para lavar roupas, mas você não se importa de por alguns minutos ficar
com cheirinho de...
Ela
havia sumido.
Ele
andou em volta da casa, foi até a colina, que lhe dava uma visão mais ampla,
mas nada adiantou, ela havia desaparecido. Então, desiludido voltou.
No
outro dia ele estava preparando o chá da manhã, quando escutou um toc toc suave na porta. Abriu e quem
estava lá? Ela.
—
Ora, ora se não é a fujona de ontem!
— Não fugi, só não quis dar trabalho.
— Antes
de mais nada diga seu nome, pois ontem quando a procurava não sabia nem qual
chamar.
—
Celeste.
— Combina com seus olhos, além do que é nome de
princesa. Você é uma?
Ela
sorriu charmosa e balançou a cabeça negativamente.
— Mas,
entre, está frio aí fora, quer chá?
— Sim.
— Posso pegar as xícaras no armário ou quando
me virar você não estará mais aqui?
Celeste
sorriu com timidez.
Depois
deste dia ela passou visitá-lo, as vezes pela manhã bem cedo, em outras no meio
da tarde, mas disfarçava quando Felipe perguntava onde morava e aí ele parou de
insistir e também de pedir para levá-la em casa. Percebeu-se com medo desta
curiosidade dele, afugentá-la e isso era coisa que não queria de forma alguma.
Era
notável que entre os dois havia mais que simples amizade. Até que um dia ele
tirou na gaita, uma música bastante animada e ela se dispôs a dançar. Estavam
felizes. Felipe em certo momento largou o instrumento e segurou a mão dela e
entre sorrisos dançavam e sem planejarem aconteceu um beijo. O aconchego dos
braços dele em volta da cintura dela acendeu o calor no coração. As mentes
embriagaram-se de desejo e ambos cederam ao impulso da paixão. O amor se fez
entre carícias e afagos. Bocas e mãos atrevidas descobriram-se e deliciavam-se
num sentimento envolto de pureza que constitui o amor entre dois jovens
inexperientes.
Depois
de breve instante as mãos continuavam entrelaçadas. Felipe rompeu o silêncio e
disse que desta vez não a deixaria sair escondida, queria conhecer os pais dela
e pedi-la em casamento. Neste momento Celeste confessou em prantos que era
prometida ao rei e naquele dia do tiro, estava fugindo do compromisso assumido
pelo pai e pela família toda, que viam neste enlace razões para deixarem a
miséria de vida que o acompanhavam, mas ela jamais concordou. Queria amar de
verdade e ser amada e a família queria roubar isso dela. O destino tinha
colocado Felipe em sua vida, pois ela o amava. E em prantos abraçou-o forte.
Combinaram
então de irem até a vila, encontrar o pai dela e contar tudo.
A
recepção não foi nada amistosa. O pai de Celeste foi bruto e logo que a viu em
companhia de Felipe, desferiu um tapa que fez sangrar os lábios trêmulos da
moça. Felipe não teve como reagir, os irmãos dela logo o seguraram pelo braço
imobilizando-o e de nada adiantavam as súplicas por diálogo, eles batiam e
batiam nele. E muito pior ficou quando ela revelou que havia se entregado por
amor.
A
família então expulsou a pontapés Felipe do recinto. Houve uma aglomeração de
pessoas em frente à residência. O pai de Celeste divulgou a quatro ventos que
Felipe tinha desonrado a prometida do rei e por isso ele conclamava todos ao
julgamento do fato.
Felipe
foi levado para casa e jogado como um farnel, como resto humano. Entrou com
dificuldade na residência e pensava em fugir, pois não acreditava numa justiça
que lhe concedesse o direito de viver com Celeste.
Logo,
ele os viu vindo. Não foi preciso abrir a porta, eles arrombaram com o pé e
pegaram abruptamente Felipe pelos cabelos, pelos braços e chegando fora da casa
a fogueira já estava feita. Nela amarraram-no e sem perder tempo atearam fogo.
Ele gritava nas chamas ardentes, jurando amor por Celeste. Nesta hora ela
apareceu vinda não se sabe de onde e atirou-se às chamas e num último beijo
eles consumiram-se na frente de todos.
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