REVIRAVOLTA
Hirtis
Lazarin
Alice, como quase todas as mulheres de sua
época, já nasciam com a vida programada: casar; ter filhos, de preferência,
vários; administrar a casa e educar as crianças.
A morte prematura do marido deixou-a
transtornada com dois filhos adolescentes para criar. O dinheiro da pensão era insuficiente. Viu-se forçada a dobrar a jornada de
trabalho. Durante o dia, era
recepcionista num consultório dentário.
A noite, era arrumar, limpar, cozinhar, lavar, dormir. Uma rotina pesada e angustiante. Os filhos.... Ah! Esses filhos... Só
aborrecimentos e incompreensão. Com o
tempo vieram o estresse, a depressão e os distúrbios do sono passaram a ser
constantes.
Alice esqueceu de si mesma. Fugia do espelho, pois ele revelava um rosto
envelhecido e tristonho. Os olhos
morteiros, parados, olhos de quem sempre vê o que não quer ver, sempre o mesmo
do nada.
Noites e noites, na insônia da madrugada,
sentava-se na soleira da porta da cozinha.
O coração cheio de solidão, o rosto molhado de lágrimas doloridas. Não rezava mais, até a fé já se fora. Uma Nossa Senhora, que ficava numa pequena
gruta de pedras no quintal, foi retirada e esquecida. Ali sozinha resmungava desabafos, confessava
mágoas, falta de esperança. Os filhos
rebeldes e egoístas, o tempo fluindo, a vida em pedaços. O fardo pesava demais. E lá no céu, a lua cheia, cheia de alegria, ouvia
tudo caladinha, comovida e sem graça. E
o silêncio era tal que até se ouviam as folhas roçando o ar.
Mas, a vida continua... As sementes
germinam, os filhos crescem, os ponteiros do relógio não param e até os
sentimentos se modificam. Alice não era
mais a mulher que chorava pelos cantos a ausência do esposo, não era mais a mãe
dedicada, sensível e tolerante. Deu um basta a tudo. As agruras fortaleceram-na, a tristeza virou
raiva, a dedicação virou desleixo, a paciência, desprezo. No silêncio elaborava planos de superação e
libertação.
No banco havia uma quantia razoável em
dinheiro. Uma herança aos filhos deixada
pelos avós maternos. Fria e determinada,
pôs em prática um plano que seria a sua libertação. Aos poucos, foi transferindo quantias a sua
conta até resgatar o valor total.
Remorso? Nem pensar. Os filhos já independentes e prontos para
serem inseridos no mercado de trabalho e a vida inteira pra conquistar espaço e
sonhos.
Alice deu uma reviravolta naquela vida
medíocre: entrou numa dieta rigorosa, cortou e pintou os cabelos cacheados,
renovou o guarda-roupa e um kit de maquiagem não se separava mais de sua
bolsa. Rejuvenesceu uns dez anos. Os filhos não paravam em casa e quase tudo lhes
passou despercebido.
No banho ou na cozinha, Alice flagrava-se
cantarolando. No espelho, os olhos brilhavam
e sorriam saborosamente. Para o trabalho
vestia-se com elegância e bom gosto.
Voltava para casa sem horário, frequentava "happy hours", fez amizades e conheceu homens
interessantes. Ressuscitou, enfim, a
fêmea que jazia dentro dela. Pedro Henrique
foi uma aparição colorida. Olhos daquele
verde rajado indefinido. Olhos nos olhos
encantados como duas serpentes medindo forças.
Simbiose...
Era sexta-feira. Cedinho, o sol mostrou a sua cara pela fresta
da janela e fugiu pelo corredor. Alice,
ansiosa, irrequieta e buliçosa, organizava roupas, escolhia as mais novas,
abria e fechava malas. Acendeu um
cigarro e esperou. Esperou o táxi e saiu
apressada. Não apareceu no trabalho e
nunca mais voltou para casa.
Alice desceu e conheceu o inferno.
Reenergizada subiu aos céus.
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