Vivendo
um Sonho
Rejane Martins
Desde criança Jéssica sonhava ser protagonista de
novela das oito na Rede Globo de televisão. Desejava contracenar com um galã
tão bonito como Tiago Lacerda que nesse momento iniciava sua promissora
carreira de ator.
Nesse mundo de devaneio todas as noites seu quarto se
transformava em camarim principal com direito a nome da estrela na porta. Sempre
que fitava o espelho da penteadeira emoldurado com pequenas lâmpadas acesas,
vislumbrava o rosto desse que lhe escreve, com um sorriso de agradecimento
sincero, relembrava de como eu explicara a importância de se escolher o nome
artístico com treze letras, mais do que superstição esse cuidado assegurava
pelo menos noventa por cento de chances de sucesso. Adotou o nome Marina Marques.
As roupas da mãe cedidas, sem a devida permissão,
transfiguravam em criações exclusivas de Givenchi, Doce Gabana, ou outro
aspirante a estilista que a usaria como escada para ter seu nome despontado no
mundo das celebridades.
Sua pequena cama juvenil se enriquecia com um lindo
dossel, os lençóis de linho ou de seda,
determinado no átimo, alvos e perfumados acolhiam a grande diva protegendo-a de
terríveis pesadelos.
Nesse mundo de cores, luzes e reconhecimentos
Marina Marques foi crescendo, e junto com ela seus sonhos e a certeza de que
estava predestinada ao glamour.
A adolescência chegou, as preocupações intensificaram
e a consumia diuturnamente. Vivia se questionando:
— Como hidratar os cabelos para ficarem tão sedosos como o das modelos de
propaganda de shampoo, sem dispensar pelo menos 12 horas por semana em um bom
salão de beleza?
— Como convencer meus pais sobre a injustiça que era obriga-la a cumprir
os compromissos estudantis (escola, os cursos de inglês e piano)?
— Como se tornar a primeira e única opção em qualquer papel, sem obedecer
uma rotina espartana de exercícios de pelo menos 6 horas diárias em uma
academia?
— Quem cuidaria de sua dieta, afinal é imprescindível vender saúde para
cumprir todos compromissos estabelecidos?
— E o mais preocupante, quem financiaria tudo isso?
Seu pai um funcionário público da Prefeitura do
Município de São Paulo, sua mãe uma competente e esforçada dona de casa, insistiam
em querer atender os anseios dos três filhos.
— Será que seus pais tão limitados não vislumbravam que somente ela, a
primogênita, estava predestinada ao sucesso?
Sua irmã sonhava em ser dentista e seu irmão almejava
fazer parte do Corpo de Bombeiros, pobres coitados.
— Quem, em sã consciência, não classificaria esses como sonhos medíocres?
O tempo foi passando, as preocupações da grande
Marina Marques agregadas às cobranças dos pais e amigos por uma definição na
carreira que iria acompanha-la por toda a vida.
— Ora bolas!! Como alguém ainda não sabia que o curso era Artes Cênicas?
— Que tipo de alienação acometeu a todos, que ainda não avistavam a
grande Marina Marques que habitava em suas entranhas?
Irritava-se em casa quando escutava:
— Mas filha, olha pensa bem. A sua melhor amiga optou por Direito, porque
almeja a promotoria pública.
̶ E o Renatinho, filho da comadre
Joana, está estudando como um louco para ingressar no curso de medicina.
̶ Eles sim têm os pés no chão,
enxergam longe, terão um futuro brilhante.
Na escola o discurso não era diferente:
̶ Já saiu o manual da Fuvest, você
vai se inscrever para que curso?
̶ Artes Cênicas.
̶ O quê? Artes Cênicas?
̶ Para que? É só ficar sorrindo
para as câmaras do Domingão do Faustão até que alguém a perceba e te convide
para atuar em uma novela.
Tamanha insensibilidade não afetou somente a
Jéssica (opa, Marina Marques), mas a mim também. Quanto desprezo pelo sonho de
uma vida inteira. As pessoas não percebem que se retirarem isso, arrancam todo
o sentido de vida dela.
Pouco a pouco, a depressão tomou conta de nossa
heroína. Durante o ritual noturno que antecede o sono, ela era incapaz de
acender a moldura de lâmpadas do espelho; os lençóis não mais a protegiam de
sonos ruins, até sua textura agora era áspera. Também pudera foram comprados ha
quinze dias na liquidação da Zêlo. A grande estrela e o seu nome em letras
douradas que adornavam a porta, não tinham mais espaço, posto que ela agora ela
divide o espaço com uma atriz coadjuvante, que lembrava em muito a sua irmã
mais nova.
̶ O que fazer com todos os
castelos construídos até então?
̶ Como voltar a ser acalentada
toda noite, pelas fortes rotinas tão cuidadosamente criadas?
Uma noite, a demora da chegada do sono ajudou Marina
Marques a decidir. Não cederei à pressão, e pensou em voz alta.
̶ Eu serei uma grande atriz, meu
nome abrirá portas. E um dia alguém muito importante irá dizer ao mundo “The Oscar goes to Marina Marques”.
̶ Mostrarei ao mundo do que sou
capaz.
Levantou-se, postou-se a frente do computador, e iniciou
a preenchimento da ficha de inscrição do vestibular. Encarou como bom presságio
o fato de escrever Marina Marques no campo nome do candidato. Corrigiu para o nome
de registro, Jéssica Aparecida dos Santos.
Realizou as provas e aguardou ansiosamente o
resultado. Evitava conversar com as pessoas sobre o assunto evitando ouvir
recriminações quanto a sua escolha.
O grande dia chegou, ansiosa entrou no site da
Fuvest, deu um F5 e digitou o nome Marina Marques para que o programa
localizasse seu nome. Mais uma vez riu da situação. Corrigiu e, voilà! Seu nome
apareceu no meio de tantos outros.
Passaram-se 4 anos e ela olhava a todos com nariz
empinado e um sorriso de vitória nos lábios. E um dia, olhando
despretensiosamente o quadro de anúncios da faculdade, leu: “Teste para atores
– recrutamento do elenco da próxima novela das oito”. Pensou consigo, Marina
Marques o seu grande dia chegou.
No dia marcado, lá foi ela toda confiante, foi uma
das primeiras a chegar para o teste. Não estava nem pouco nervosa, tudo aquilo era só pró-forma,
esse momento estava destinado a ela. Fez o teste – recitou um trecho de Anna
Karenina de Tolstói. Saiu do teste, planejando o uso da ponte aérea durante o
período de gravação e quanto despenderia do valor do contrato para isso.
Contou para todos que ela chegara lá. Esfregava na
cara de todos que ela sempre esteve certa, e que a recompensa pela sua coragem,
chamada de teimosia por muitos, era de oferecer um destino grandioso.
Passou no teste e foi para o Rio de Janeiro iniciar
as gravações. Todos aguardaram notícias de Jéssica ou Marina Marques, não
sabiam mais como chama-la, queriam informações sobre seu personagem, quando
apareceria na tela. Mas nada, Marina Marques não dava sinal de vida, ninguém
conseguia achá-la, o celular estava sempre fora de área, o Facebook parou de
ser atualizado. Marina Marques sumiu da face da terra.
Bem, o grande dia chegou. Estreia a novela e todos
com os olhos grudados na televisão, leram ansiosamente o nome do elenco, mas
não encontraram o nome dela.
— Com certeza passou despercebido.
Assistiram ao primeiro capítulo e nada de Marina
Marques.
̶ Ok. Amanhã assistiremos ao segundo capítulo e aí sim leremos o nome
dela no letreiro e a veremos atuar.
No dia seguinte a mesma decepção, onde estaria a
grande Marina Marques?
Andavam todos ansiosos e muitíssimos preocupados
com o “desaparecimento” de Jessica. Telefonemas para o Rio de Janeiro foram
dados muitos, mas, nenhuma notícia da
jovem. Ainda assim a família acompanhava a tal novela na esperança de vê-la em
alguma tomada.
Até que um dia, em um escritório de diretoria todo
envidraçado, tendo o Cristo Redentor como paisagem ao fundo, Marina Marques aparece
atrás de uma mesa de reunião imensa contornada por confortáveis cadeiras pretas
de couro.
Dirige-se até a cabeceira da mesa, posiciona-se ao
lado do ator principal, que representa o presidente do conglomerado, e coloca
um copo com água a sua frente. A sua imagem some da câmara.
—
Coitada da Jéssica.
— Bem que nós
avisamos. Imagine! Qual a probabilidade dela se tornar uma atriz de renome. A
grande diva da televisão. Que ingênua.
— E quanto a
novela? Acompanharemos a estória? Parece boa?
— Esse
presidente parece uma boa pessoa, mas eu acho que ele é o vilão e vai destruir
a vida daquela atriz argentina elegantíssima que contracena com ele.
— Eu proponho
que nos revezemos em acompanhar, e cada vez que houver uma cena com a Jéssica
postamos no face. Até o final da novela contaremos quantas aparições nossa
querida e grande diva aparecerá.
̶ Combinado!
̶ Combinado!
̶ Estou dentro!
̶ Certo!
̶ Gente, estava pensando aqui comigo. Acho que
a Jéssica sumiu de vergonha.
E um coro uníssono, ecoou.
̶ Ahahahaha. É mesmo.
A novela surpreendentemente mostrou uma trama
interessantíssima que prendeu a atenção de todos. Próximo ao fim, todos os
amigos de Jéssica se reuniam e para assistir e acrescentar mais uma unidade na
contagem no quadro de aparições de Marina Marques. Já foram contabilizadas 5
aparições, sem nenhuma fala, de no máximo, 2 segundos cada.
Enfim chegou o grande dia, será o que o ator
principal se revelaria o vilão? A sua parceira iria ser prejudicada pelas
maldades impostas a ela? E a Jéssica? Apareceria de novo?
A reunião foi no apartamento da promotora pública. Compraram
pizza, o médico Renatinho trouxe vinho argentino com Destinação de Origem
(afinal a ocasião pedia). Ninguém mais se lembrava de atualizar o quadro de
aparições de Jéssica. Sentaram-se todos na sala, todos solidários à
elegantíssima dama principal.
Iniciou o espetáculo, sim porque a essa altura dos
acontecimentos essa novela já se tornara um espetáculo. Todos mudos, estáticos,
respiração sôfrega. No desenrolar do capítulo mostrou o presidente do
conglomerado como um homem íntegro, e a atriz principal, a verdadeira vilã, usurpou
a empresa colocando-o para fora do prédio.
Foi chocante o final da trama, principalmente
quando a atriz se despindo da peruca, da dentadura e outros apetrechos permitiu
descortinar pouco a pouco um rosto muito conhecido de todos. Em total silêncio
constataram que a contagem estava totalmente errônea, e que a amiga de escola
cumprira sua promessa.
Aquele rosto emudeceu a pequena plateia, provocando
a queda dos queixos simultaneamente. Inclusive o queixo desse narrador, que
caiu ao constatar que Paula Martinez continha treze letras.
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