De
médico e louco, todo mundo um tem um pouco
Rejane
Martins
Alguns anos atrás, tive o prazer de conhecer um rapaz que
acabara de ingressar no curso de medicina, em uma das mais conceituadas
universidades brasileiras. Todos o consideravam a grande promessa.
Nascido numa família humilde sempre estudou em escolas públicas,
mas isso nunca abalou a fé em sua vocação. Queria salvar vidas, atenuar dores,
abastecer de esperança as pessoas que o procuraria.
Logo nos primeiros anos da faculdade, procurou meios para atuar
como monitor nas mais diversas disciplinas, estágio em clínicas e laboratórios,
conseguiu bolsa de incentivo à pesquisa, fazia de tudo para conhecer e se
sentir cada vez mais preparado.
Destacou-se tanto que na formatura foi homenageado como o
aluno modelo da turma. Lembro-me de nesse dia, com a voz embasbacada só
consegui balbuciar: “Esse garoto vai longe!”.
Como prêmio pelo seu esforço, foi beneficiado com uma bolsa de
trabalho por três anos no Boston Children’s Hospital, o mais conceituado
hospital infantil na atualidade. Seguindo a mesma rotina, aplicada nos tempos
de estudante universitário, o Dr. Humberto Silva também se destacou em terras
estadunidenses. Publicou vários artigos com temas exclusivos e abriu portas
para importantes pesquisas.
Palestras ao redor do mundo começaram a lotar sua agenda. Criou
e deu seu nome a uma Fundação de ajuda e proteção a crianças africanas. Uma ONG
que na luta contra a desnutrição, o abuso e negligência nos cuidados, atende
crianças carentes.
Dia após dia Dr. Humberto aumentava a certeza de que
o lugar que ele queria estar era no seu país, realizando os sonhos da
juventude. O distanciamento das metas estabelecidas no passado, apressou a hora de voltar, e assim o fez.
Chegou no Brasil, dirigiu-se à Curitiba, e se ofereceu para
trabalhar no Hospital Pediátrico Pequeno Príncipe. A elevada qualificação do
médico terrificou a administração do hospital que presumiu um custo muito
elevado ter esse profissional em seu quadro clínico, impossível de se arcar.
Requisitou uma reunião privada com o conselho do hospital, expôs
suas razões em procurá-los e apresentou uma proposta irrecusável. Concordaria
em receber uma remuneração ligeiramente superior a um profissional iniciante,
mas gostaria de ser chefe de uma ala de pesquisas em doenças infantis raras, e
uma equipe conceituada para auxiliá-lo. Solicitou também a implantação de um
programa social que atendesse gratuitamente, em determinados dias estipulados
pela administração, pacientes realmente carentes triados pelo hospital.
Após uma sucinta, porém minuciosa análise, a proposta foi
recebida sem ressalvas pelo conselho, a rápida deliberação foi responsável pela
mais rápida ainda assunção do Dr. Humberto e sua equipe.
Não demorou muito para Dr. Humberto sofrer o primeiro revés de
seu novo emprego. Nos corredores do hospital reencontrou um fantasma do
passado, possuidor de RG, CPF e nome, Dr. José Roberto Alcântara Gastão de
Mello. Colegas de turma é só um modo de se referir, um era o oposto ao outro.
O último interesse do então estudante José Roberto era a
medicina, estava sempre envolvido em falcatruas, em negócios escusos que
abrangiam a conquista de notas não merecidas, corrupção no mais elevado grau,
manipulando pessoas, recursos, cargos e influências.
Dr. José Roberto pertencia a alta cúpula administrativa que
mantinha vínculos com o governo em diversas esferas. Estava despendendo
muito de sua energia para assumir todo complexo como único e absoluto gestor,
além de cargo político ligado à saúde.
A ideia de trabalharem na mesma organização não agradava nenhum
dos dois. Ambos se sentiam incomodados com a presença do outro. Mas tinham
sorte pois rara eram as vezes que se cruzavam ou trocavam algumas palavras.
Durante um atendimento filantrópico a um garoto de 3 anos,
aparentemente tratava-se de uma infecção do trato respiratório, o Dr. Humberto
orientou que fosse ministrado amoxicilina no garoto. Logo que o remédio entrou
no pequeno corpo, ocorreu uma reação anafilática levando-o a óbito.
Em investigação policial Dr. Humberto relatou todos os cuidados
tomados nos procedimentos médicos. O padrasto, que era o acompanhante do
menino, forneceu as informações solicitadas. Mas não mencionou a alergia.
Talvez não tivesse conhecimento da deficiência do organismo dele. O médico não
tinha porque suspeitar da fatalidade da droga.
Dr. José Roberto, representante oficial da instituição, também
foi convocado a depor, sua declaração chocou todo o corpo policial. Revelou que
garoto já era paciente do hospital há algum tempo, e que em seu histórico
médico havia o registro do grave quadro que o acometeu há dois anos atrás
quando ministraram a mesma droga. Se o Dr. Humberto tivesse puxado a ficha
online do paciente que ele teria acesso a todas as informações.
O acusado não conseguiu provar que não havia arquivo para aquele
garoto, que ele tentara visualizar os arquivos, mas o computador não carregou.
O hospital e a polícia não conseguiram provar o dolo no erro médico. O processo
continuaria em análise e qualquer fato novo e relevante os envolvidos seriam
novamente convocados.
A ambição desenfreada do Dr. José Roberto, levou-o a solicitar a
abertura de um processo ético junto ao Conselho Regional de Medicina. Já havia
passado da hora para que aquele médico tão bonzinho, tivesse o que realmente
merecesse.
Marcada a acareação, os dois profissionais apareceram no prédio
do conselho para prestar declaração. O primeiro a chegar foi Dr. Humberto,
sentado na sala de espera aguardava a vinda de seu delator.
Foi atingido por um soco no estômago, quando o as portas do
elevador se abriram. Ao lado do Dr. José Roberto, elegantemente trajada estava
Sylvia. Os cabelos apresentam outra tonalidade que combinava mais com o seu tom
de pele, o corte clássico apresentava certa modernidade no penteado impecável.
A roupa confeccionada exclusivamente para ela, valorizava as curvas do corpo
esguio e alto. E ao fixar o olhar nos pés, se permitiu um instante de
descontração: “Ah! Ela aprendeu a se equilibrar no salto alto”.
Sentiu-se abalado, como Sylvia tinha se aproximado do Recruta
Zero Berto? Ela não suportava nem olhar para ele nos tempos da faculdade. O que
aconteceu com eles? E o que aconteceu comigo? Como me afastei e anulei aquela
imagem estonteante dentro de mim?
Perdido num turbilhão de pensamentos, não percebeu a aproximação
do casal. Porém aquele aroma delicado e sutil do perfume o trouxe de volta à
realidade. Mesmo visivelmente afetado pela situação, conseguiu proferir algumas
palavras gentis e sinceras.
A audiência iniciou-se e o Dr. Humberto só tinha olhos e
pensamentos para Sylvia. Seu advogado precisou lhe admoestar sob a gravidade da
situação. O processo estava sendo movido por uma pessoa muito influente que
estava acostumada a conseguir tudo que queria. Ele precisa se concentrar cento
e dez por cento para conseguir provar sua inocência.
E assim o fez, mais uma vez blindou a imagem estonteante de
Sylvia e a guardou bem no fundo de suas memórias. Não se permitia cruzar os
olhares, nem procurar pelos sons emitidos por ela vez por outra
deliberadamente.
Todo o processo caminhava para uma condenação magistral do Dr.
Humberto. Tudo que ele tinha era, “eu entrei no sistema, mas a tela não
carregou nenhuma ficha médica do paciente”, “o padrasto do garoto não
relatou a alergia durante a consulta”.
No final da primeira sessão ninguém estava disposto a apostar na
inocência do réu. Temia-se pelo seu futuro, vislumbrava como negro e
sombrio. Foi para casa, e não que fosse um hábito seu, mas naquele dia ele
precisava, abriu uma garrafa de vinho esparramou-se no sofá, fechou os olhos e
segurou para não chorar.
O som inconvenientemente alegre de seu celular o arrancou do
transe, não acreditava na voz que ouvia de outro lado. Sylvia queria vê-lo, era
urgente, seu marido participaria de um evento político, inauguração de alguma
coisa que ela não registrou, e iria demorar. Eles teriam bastante tempo para
conversar.
Ponderou se, a essa altura dos acontecimentos, seria uma boa
ideia, mas Sylvia insistiu e aguçou a curiosidade, você gostará do encontro.
Marcaram em um bar afastado onde não fossem reconhecidos. Agora
ela estava mais parecida com a Sylvia que ele se lembrava, cabelos presos,
calça jeans, tênis, camisa casual sob um casaquinho meia estação, só para
quebrar a atuação do sereno. Por um instante almejou retornar a época
onde aquela visão era todo o seu universo.
Humberto saiu renovado desse encontro, não conseguia dormir,
contava os segundos para que o dia amanhecesse. Bem cedo efetuou a ligação mais
importante e promissora da sua vida.
De volta ao conselho regional, em uma reunião solicitada pelo
advogado do acusado, apresentou o relatório da rede de computador revelando o
uso da senha pessoal do Dr. José Roberto, na omissão da ficha médica on
line do garoto durante a consulta.
Apesar da veemente contestação do Dr. José Roberto, os membros
do conselho de classe não consideraram a argumentação de um médico respeitável ser
vítima de uma rede de intrigas.
O Ministério Público aceitou a denúncia do Conselho Federal de
Medicina contra o médico da cidade. O processo na justiça correu de forma
assustadoramente rápida culminando com a condenação máxima, todo o júri se
surpreendeu com o grau de frieza apresentado pelo réu, até parecia que não
tinha cometido crime algum.
O Dr. Humberto aliviado em provar sua inocência, se sentia
impelido a agradecer a pessoa responsável por sua liberdade. Mais tarde, chegou ao lugar combinado encontrou
Sylvia usando um lingerie bem sensual, iluminada por velas e um espumante no
gelo ao seu lado.
Recuperaram o tempo perdido, entregando-se as luxurias e aos
prazeres a noite toda. Em meio à madrugada, Humberto indagou a Sylvia se ela
acreditava que o marido tinha agido daquela maneira por desconfiar do caso
existente entre eles.
Sylvia não encontrava respostas para essa parte de sua vida.
Porque se uniu a um homem que tanto desprezara? Porque minimizou as ações ruins
praticadas por ele? Ela preferia apagar o triste período que a consumia com
remorso e culpa.
Todos se chocaram com a notícia da recente morte do Dr. José
Roberto no presidio. Por mais que quisessem saber, a polícia não comentava a
linha de investigação, ainda era um mistério foi suicídio, assassinato ou morte
natural.
Em menos de uma semana Dr. Humberto foi acordado pela força
policial à sua porta, recebendo voz de prisão pelo assassinato do Dr. José
Roberto.
Na delegacia Dr. Humberto alegava inocência, mas não esclarecia
seu paradeiro na hora presumível do crime. E a imagem captada pelas câmeras de
vigilância, que apesar de não terem uma boa resolução, não geravam dúvidas
sobre sua visita ao morto. E aquele documento falso, usado para no registro da
visita e, achado escondido em seu apartamento.
Usou seu direito a uma ligação, e rogou para que Sylvia
comparecesse a delegacia urgente. Relatou o acontecido e pediu para que ela o
liberasse do segredo e atestasse o álibi, posto que o ninho de amor deles
situava-se em local ermo, não havia outra testemunha ocular que pudesse
corroborar a presença dele lá.
Sylvia se levantou calmamente e iniciou seu discurso:
— Ora
bebê, porque eu faria isso? Tive tanto trabalho para tirar você e Recruta Zero
Berto do meu caminho, agora você me pede comiseração? Você acha que foi fácil
acessar o programa do hospital com a senha dele e excluir momentaneamente a
ficha médica do menino? E procurar um homem com suas características físicas
que estivesse disposto a matar por dinheiro? Sabe como foi difícil me tornar
invisível, e entrar no seu apartamento para esconder o documento falso?
Tudo foi muito oneroso, de tempo, dinheiro, paciência. Não sei
se é uma boa ideia jogar tudo para o alto agora. Afinal acabei de ser nomeada
gestora absoluta de todo o complexo hospitalar no lugar do meu finado marido,
que Deus o tenha!!
— Mas
Sylvia por quê? O que eu fiz a você? Você já tinha arquitetado essa
vingança quando me procurou em Boston, e me convenceu a voltar para o Brasil?
— Esse
plano, meu querido, se auto definiu no dia em que você foi viver a sua gloriosa
vida e me abandonou. Você realmente é ingênuo em acreditar que reencontraria
aquela garota apaixonada do passado, é bom você se conscientizar de que a
sua soberba prejudicou muitas pessoas, mas não há interesse em reconhecer isso,
não é mesmo!
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