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segunda-feira, 7 de março de 2016

De médico e louco, todo mundo um tem um pouco - Rejane Martins


De médico e louco, todo mundo um tem um pouco
Rejane Martins

Alguns anos atrás, tive o prazer de conhecer um rapaz que acabara de ingressar no curso de medicina, em uma das mais conceituadas universidades brasileiras. Todos o consideravam a grande promessa.

Nascido numa família humilde sempre estudou em escolas públicas, mas isso nunca abalou a fé em sua vocação. Queria salvar vidas, atenuar dores, abastecer de esperança as pessoas que o procuraria.

Logo nos primeiros anos da faculdade, procurou meios para atuar como monitor nas mais diversas disciplinas, estágio em clínicas e laboratórios, conseguiu bolsa de incentivo à pesquisa, fazia de tudo para conhecer e se sentir cada vez mais preparado.
Destacou-se tanto  que na formatura foi homenageado como o aluno modelo da turma. Lembro-me de nesse dia, com a voz embasbacada só consegui balbuciar: “Esse garoto vai longe!”. 

Como prêmio pelo seu esforço, foi beneficiado com uma bolsa de trabalho por três anos no Boston Children’s Hospital, o mais conceituado hospital infantil na atualidade. Seguindo a mesma rotina, aplicada nos tempos de estudante universitário, o Dr. Humberto Silva também se destacou em terras estadunidenses. Publicou vários artigos com temas exclusivos e abriu portas para importantes pesquisas.

Palestras ao redor do mundo começaram a lotar sua agenda. Criou e deu seu nome a uma Fundação de ajuda e proteção a crianças africanas. Uma ONG que na luta contra a desnutrição, o abuso e negligência nos cuidados, atende crianças carentes.

Dia após dia Dr. Humberto aumentava a certeza de  que o lugar que ele queria estar era no seu país, realizando os sonhos da juventude. O distanciamento das metas estabelecidas no passado,  apressou a hora de voltar, e assim o fez.

Chegou no Brasil, dirigiu-se à Curitiba, e se ofereceu para trabalhar no Hospital Pediátrico Pequeno Príncipe. A elevada qualificação do médico terrificou a administração do hospital que presumiu um custo muito elevado ter esse profissional em seu quadro clínico, impossível de se arcar.

Requisitou uma reunião privada com o conselho do hospital, expôs suas razões em procurá-los e apresentou uma proposta irrecusável. Concordaria em receber uma remuneração ligeiramente superior a um profissional iniciante, mas gostaria de ser chefe de uma ala de pesquisas em doenças infantis raras, e uma equipe conceituada para auxiliá-lo. Solicitou também a implantação de um programa social que atendesse gratuitamente, em determinados dias estipulados pela administração, pacientes realmente carentes triados pelo hospital.

Após uma sucinta, porém minuciosa análise, a proposta foi recebida sem ressalvas pelo conselho, a rápida deliberação foi responsável pela mais rápida ainda assunção do Dr. Humberto e sua equipe.

Não demorou muito para Dr. Humberto sofrer o primeiro revés de seu novo emprego. Nos corredores do hospital reencontrou um fantasma do passado, possuidor de RG, CPF e nome, Dr. José Roberto Alcântara Gastão de Mello. Colegas de turma é só um modo de se referir, um era o oposto ao outro.

O último interesse do então estudante José Roberto era a medicina, estava sempre envolvido em falcatruas, em negócios escusos que abrangiam a conquista de notas não merecidas, corrupção no mais elevado grau, manipulando pessoas, recursos, cargos e influências.

Dr. José Roberto pertencia a alta cúpula administrativa que mantinha vínculos com o governo em diversas esferas. Estava  despendendo muito de sua energia para assumir todo complexo como único e absoluto gestor, além de cargo político ligado à saúde.

A ideia de trabalharem na mesma organização não agradava nenhum dos dois. Ambos se sentiam incomodados com a presença do outro. Mas tinham sorte pois rara eram as vezes que se cruzavam ou trocavam algumas palavras.

Durante um atendimento filantrópico a um garoto de 3 anos, aparentemente tratava-se de uma infecção do trato respiratório, o Dr. Humberto orientou que fosse ministrado amoxicilina no garoto. Logo que o remédio entrou no pequeno corpo, ocorreu uma reação anafilática levando-o a óbito.

Em investigação policial Dr. Humberto relatou todos os cuidados tomados nos procedimentos médicos. O padrasto, que era o acompanhante do menino, forneceu as informações solicitadas. Mas não mencionou a alergia. Talvez não tivesse conhecimento da deficiência do organismo dele. O médico não tinha porque suspeitar da fatalidade da droga.

Dr. José Roberto, representante oficial da instituição, também foi convocado a depor, sua declaração chocou todo o corpo policial. Revelou que garoto já era paciente do hospital há algum tempo, e que em seu histórico médico havia o registro do grave quadro que o acometeu há dois anos atrás quando ministraram a mesma droga. Se o Dr. Humberto tivesse puxado a ficha online do paciente que ele teria acesso a todas as informações.

O acusado não conseguiu provar que não havia arquivo para aquele garoto, que ele tentara visualizar os arquivos, mas o computador não carregou. O hospital e a polícia não conseguiram provar o dolo no erro médico. O processo continuaria em análise e qualquer fato novo e relevante os envolvidos seriam novamente convocados.
A ambição desenfreada do Dr. José Roberto, levou-o a solicitar a abertura de um processo ético junto ao Conselho Regional de Medicina. Já havia passado da hora para que aquele médico tão bonzinho, tivesse o que realmente merecesse.

Marcada a acareação, os dois profissionais apareceram no prédio do conselho para prestar declaração. O primeiro a chegar foi Dr. Humberto, sentado na sala de espera aguardava a vinda de seu delator.
Foi atingido por um soco no estômago, quando o as portas do elevador se abriram. Ao lado do Dr. José Roberto, elegantemente trajada estava Sylvia. Os cabelos apresentam outra tonalidade que combinava mais com o seu tom de pele, o corte clássico apresentava certa modernidade no penteado impecável. A roupa confeccionada exclusivamente para ela, valorizava as curvas do corpo esguio e alto. E ao fixar o olhar nos pés, se permitiu um instante de descontração: “Ah! Ela aprendeu a se equilibrar no salto alto”.

Sentiu-se abalado, como Sylvia tinha se aproximado do Recruta Zero Berto? Ela não suportava nem olhar para ele nos tempos da faculdade. O que aconteceu com eles? E o que aconteceu comigo? Como me afastei e anulei aquela imagem estonteante dentro de mim?

Perdido num turbilhão de pensamentos, não percebeu a aproximação do casal. Porém aquele aroma delicado e sutil do perfume o trouxe de volta à realidade. Mesmo visivelmente afetado pela situação, conseguiu proferir algumas palavras gentis e sinceras.

A audiência iniciou-se e o Dr. Humberto só tinha olhos e pensamentos para Sylvia. Seu advogado precisou lhe admoestar sob a gravidade da situação. O processo estava sendo movido por uma pessoa muito influente que estava acostumada a conseguir tudo que queria. Ele precisa se concentrar cento e dez por cento para conseguir provar sua inocência.

E assim o fez, mais uma vez blindou a imagem estonteante de Sylvia e a guardou bem no fundo de suas memórias. Não se permitia cruzar os olhares, nem procurar pelos sons emitidos por ela vez por outra deliberadamente.

Todo o processo caminhava para uma condenação magistral do Dr. Humberto. Tudo que ele tinha era, “eu entrei no sistema, mas a tela não carregou nenhuma ficha médica do paciente”, “o padrasto do garoto não relatou a alergia durante a consulta”.
No final da primeira sessão ninguém estava disposto a apostar na inocência do réu. Temia-se  pelo seu futuro, vislumbrava como negro e sombrio. Foi para casa, e não que fosse um hábito seu, mas naquele dia ele precisava, abriu uma garrafa de vinho esparramou-se no sofá, fechou os olhos e segurou para não chorar.

O som inconvenientemente alegre de seu celular o arrancou do transe, não acreditava na voz que ouvia de outro lado. Sylvia queria vê-lo, era urgente, seu marido participaria de um evento político, inauguração de alguma coisa que ela não registrou, e iria demorar. Eles teriam bastante tempo para conversar.

Ponderou se, a essa altura dos acontecimentos, seria uma boa ideia, mas Sylvia insistiu e aguçou a curiosidade, você gostará do encontro.

Marcaram em um bar afastado onde não fossem reconhecidos. Agora ela estava mais parecida com a Sylvia que ele se lembrava, cabelos presos, calça jeans, tênis, camisa casual sob um casaquinho meia estação, só para quebrar a atuação do sereno.  Por um instante almejou retornar a época onde aquela visão era todo o seu universo.
Humberto saiu renovado desse encontro, não conseguia dormir, contava os segundos para que o dia amanhecesse. Bem cedo efetuou a ligação mais importante e promissora da sua vida.

De volta ao conselho regional, em uma reunião solicitada pelo advogado do acusado, apresentou o relatório da rede de computador revelando o uso da senha pessoal do Dr. José Roberto, na omissão da ficha médica on line do garoto durante a consulta.
Apesar da veemente contestação do Dr. José Roberto, os membros do conselho de classe não consideraram a argumentação de um médico respeitável ser vítima de uma rede de intrigas.
O Ministério Público aceitou a denúncia do Conselho Federal de Medicina contra o médico da cidade. O processo na justiça correu de forma assustadoramente rápida culminando com a condenação máxima, todo o júri se surpreendeu com o grau de frieza apresentado pelo réu, até parecia que não tinha cometido crime algum.
O Dr. Humberto aliviado em provar sua inocência, se sentia impelido a agradecer a pessoa responsável por sua liberdade. Mais tarde, chegou ao lugar combinado  encontrou Sylvia usando um lingerie bem sensual, iluminada por velas e um espumante no gelo ao seu lado.

Recuperaram o tempo perdido, entregando-se as luxurias e aos prazeres a noite toda. Em meio à madrugada, Humberto indagou a Sylvia se ela acreditava que o marido tinha agido daquela maneira por desconfiar do caso existente entre eles.

Sylvia não encontrava respostas para essa parte de sua vida. Porque se uniu a um homem que tanto desprezara? Porque minimizou as ações ruins praticadas por ele? Ela preferia apagar o triste período que a consumia com remorso e culpa.

Todos se chocaram com a notícia da recente morte do Dr. José Roberto no presidio. Por mais que quisessem saber, a polícia não comentava a linha de investigação, ainda era um mistério foi suicídio, assassinato ou morte natural.

Em menos de uma semana Dr. Humberto foi acordado pela força policial à sua porta, recebendo voz de prisão pelo assassinato do Dr. José Roberto.

Na delegacia Dr. Humberto alegava inocência, mas não esclarecia seu paradeiro na hora presumível do crime. E a imagem captada pelas câmeras de vigilância, que apesar de não terem uma boa resolução, não geravam dúvidas sobre sua visita ao morto. E aquele documento falso, usado para no registro da visita e, achado escondido em seu apartamento.  

Usou seu direito a uma ligação, e rogou para que Sylvia comparecesse a delegacia urgente. Relatou o acontecido e pediu para que ela o liberasse do segredo e atestasse o álibi, posto que o ninho de amor deles situava-se em local ermo, não havia outra testemunha ocular que pudesse corroborar a presença dele lá.

Sylvia se levantou calmamente e iniciou seu discurso:

— Ora bebê, porque eu faria isso? Tive tanto trabalho para tirar você e Recruta Zero Berto do meu caminho, agora você me pede comiseração? Você acha que foi fácil acessar o programa do hospital com a senha dele e excluir momentaneamente a ficha médica do menino? E procurar um homem com suas características físicas que estivesse disposto a matar por dinheiro? Sabe como foi difícil me tornar invisível, e entrar no seu apartamento para esconder o documento falso?

Tudo foi muito oneroso, de tempo, dinheiro, paciência. Não sei se é uma boa ideia jogar tudo para o alto agora. Afinal acabei de ser nomeada gestora absoluta de todo o complexo hospitalar no lugar do meu finado marido, que Deus o tenha!!

— Mas Sylvia por quê? O que eu fiz a você? Você já tinha arquitetado essa vingança quando me procurou em Boston, e me convenceu a voltar para o Brasil?

— Esse plano, meu querido, se auto definiu no dia em que você foi viver a sua gloriosa vida e me abandonou. Você realmente é ingênuo em acreditar que reencontraria aquela garota apaixonada do passado, é bom você se conscientizar de que a sua soberba prejudicou muitas pessoas, mas não há interesse em reconhecer isso, não é mesmo!


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