Marcas que não se apagam
Adelaide
Dittmers
Do
pequeno barraco pendurado no morro despido de verde, gritos estridentes
cortavam a noite escura.
Um
menino de uns dez anos tampava ou ouvidos, acocorado atrás de uma pequena mesa
feita de ripas de madeira sem cor. Os
olhos fechados e mudos de terror. O choro sacudia seu corpo franzino.
Na
cama tosca encostada a uma parede precária, a mulher debatia-se tentando
desvencilhar-se das pancadas e pontapés do companheiro bêbado.
De
repente, a criança levantou-se e se jogou contra o pai, num assomo de
desespero, socando-o com seus bracinhos frágeis. O homem o empurrou com
violência e ele se estatelou no chão. A mulher soltou um berro e tentou acudir
o filho, que chorava descontrolado, mas foi impedida pelo homem enlouquecido,
que pegara uma faca e a ameaçava, encostando a arma no peito da pobre mulher.
Nesse
momento, a porta foi empurrada com força e dois homens entraram e seguraram o
desvairado, tirando-lhe a faca das mãos.
— Você
está louco, Severino! Ia matar sua
mulher! Olha esse menino!
—
Saiam daqui! Severino gritou com a voz enrolada pela bebida.
Os
homens o jogaram em um banco. De sua
boca saia uma baba malcheirosa. Os olhos
vidrados não conseguiam se fixar nos invasores.
Josilene,
que caíra sentada na cama, levantou-se devagar, atordoada, tentando manter-se de pé. Os lábios
sangravam. Vergões espalhavam-se pelo seu corpo. O olhar doído procurava o
filho, sentado em um canto. Com passos
lentos e indecisos chegou até ele. Os
dois se abraçaram. Um dos vizinhos
disse:
— Vem
Josilene. Hoje você e Josué dormem em
casa.
Ela
acedeu com um movimento da cabeça e seguiu-o como uma sonâmbula, puxando o
menino pela mão.
O
pequeno lançou um olhar de medo e de raiva ao pai, que agora soluçava a
bebedeira.
Deitado
em um colchão velho, o pequeno custou a adormecer e foi sacudido por pesadelos a noite inteira. Uma manhã cinzenta
acordou-o. Vozes alteradas chegaram-lhe aos ouvidos. Reconheceu a voz do pai, que exigia a volta
da mulher. Apavorado, cobriu a cabeça
com o lençol velho e desbotado. A mãe
dizia que nunca mais voltaria para casa.
Subitamente, a porta do barraco foi fechada com estrondo pela vizinha e
amiga de Josilene. Ele sentou-se e
ouviu a mãe dizer, que iria embora dali, que estava cansada de apanhar e com
medo de ser morta pelo companheiro.
Mais
tarde, aproveitando a ausência do truculento Severino, mãe e filho retiraram do
barraco os poucos pertences e deixaram o lugar.
Atravessaram
a grande cidade até chegar a um subúrbio longínquo. Lá vivia Joana, uma grande amiga, que viera
com Josilene do Nordeste, muitos anos atrás.
Muitas vezes ela pedira à amiga para deixar o marido violento e vir
morar com ela, que morava sozinha em uma casa simples, que conseguira com muito
trabalho.
Quando
Joana abriu a porta, assustou-se com o estado da amiga. O rosto inchado e os braços com grandes
manchas roxas.
— De
novo, Lene! Aquele miserável bateu em você!
— Foi
a última vez, Jo. Vim morar com você, se você ainda quiser! Respondeu com a voz
embargada, acrescentando: Ele quase me furou com uma faca!
E o
choro explodiu de dentro dela. Joana a
abraçou e tentava consolá-la. Eram como
irmãs e lá estaria segura, pois sempre escondeu de Severino, onde a amiga
morava.
Agarrado
à mãe, Josué baixou os olhos. Estava
confuso e amedrontado.
Joana
olhou para ele e percebeu a angústia do menino.
Colocando a mão nas costas dele, levou-o delicadamente para dentro.
—
Graças a Deus que você largou aquele homem! Venham, sentem aí para descansar.
Vou fazer um café. Depois arrumamos suas
coisas.
Ainda
com lágrimas, que lhe salgavam a língua, Josilene derramou o sofrimento que lhe
feria a alma. O menino ouvia com um
olhar perdido, digerindo com dificuldade o desabafo da mãe.
A
preocupação com o trabalho aflorou na conversa.
Tinha que abandonar as casas em que faxinava. Joana então lhe prometeu que iria lhe ajudar
a arrumar um emprego mais perto. Não
muito longe dali havia um condomínio de gente de posses, e não faltaria lugar
para a amiga trabalhar.
Com o
passar do tempo, a vida foi se acomodando.
O emprego foi conseguido. Josué
entrou em uma escola próxima. Uma tranquilidade
há muito não sentida encheu o coração de Josilene. As marcas físicas e morais foram desaparecendo
e no lugar da fragilidade e do medo, surgiu uma mulher forte e decidida.
O
menino, no entanto, não conseguiu superar o medo. Muitas vezes acordava de madrugada, banhado de
suor após pesadelos, em que o pai os surrava e os ameaçava. A mãe o
acalmava com carinho e conversava com ele.
Na
escola, era muito quieto e tímido e se afastava dos coleguinhas. Em casa era
obediente e cooperativo, mas muito fechado em si.
A mãe
sofria com a dor do filho. Então, certo
fim de tarde, após voltar do trabalho, ela o chamou para conversar. Sentaram-se em um banco no pequeno quintal da
casa, onde uma velha jabuticabeira estava vestida das pequenas e deliciosas
frutinhas. Lançou um olhar para a árvore
e depois para o menino e disse com voz calma e carinhosa:
—
Josué, você não pode continuar assim.
Fechando toda essa tristeza dentro de você. Você cresceu com medo, é
verdade, só viu coisas ruins, mas passou, ficou tudo lá atrás. Agora estamos seguros.
Os
olhos do menino pousaram na mãe e as palavras jorraram com a intensidade de uma
enxurrada lamacenta.
— Tenho raiva e vergonha de ter nascido
daquele pai. Surras e mais surras em
você e em mim. E se ele nos encontrar...
tenho muito medo...
— Não,
filho, ele não sabe onde estamos. Fique
tranquilo. Jogue fora a raiva, a
vergonha, o medo. Você não tem culpa do que passamos.
E
continuou com uma voz mansa e calorosa.
—
Tá vendo essa jabuticabeira carregada. Não é bonita e forte? Ela carrega tudo.
Parece feliz de nos dar suas frutas. Um
dia ela foi pequena, vergou com ventos.
Foi cortada para crescer mais forte. E está aí, alta, dando para nós
sombra e as tão gostosas jabuticabas e nada recebe de nós em troca. Nós também passamos
por muita coisa triste, mas temos que seguir e aprender a crescer como ela.
— Eu
não sou árvore, mãe. Sou gente!
— A
árvore não é gente, mas pode nos ensinar muita coisa. Você vai crescer como
ela. Na escola vai aprender um monte de coisas, que eu nunca aprendi. Quero que tenha uma vida melhor que a
minha. Só tem que abrir seu coração,
seguir em frente e descobrir o caminho.
Joana,
que tinha chegado devagarzinho, ficou admirada com a sabedoria da amiga. O sofrimento é nosso professor, pensou
emocionada.
— O
menino abraçou a mãe e desabou dele um choro que parecia lavar a tristeza e o
medo dentro dele.
Daquele
dia em diante, tentou ser outro menino, mais aberto. Colocava suas emoções para fora e quando a
memória o levava para o passado dolorido.
Sacudia a cabeça e pensava nas árvores, que também passam por desafios
para crescer.
Tornou-se
um adulto responsável e trabalhador.
Sempre se desviava de disputas e brigas.
Vozes alteradas ainda o atingiam. Fugia delas.
Fez um
curso técnico de mecânica de automóveis e se tornou um ótimo profissional,
disputado por muitas oficinas. Às vezes, as ferramentas caiam de suas mãos ao
lembrar o passado, um arrepio lhe percorria o corpo, mas logo voltava ao
presente e agradecia intimamente às duas mães que o guiaram nos momentos
difíceis.
Uma
noite em que estava no centro da cidade, voltando para casa, cruzou com um
homem maltrapilho e completamente embriagado.
Seus músculos se retesaram. Com
os olhos assustados fixou o olhar no homem e para seu espanto, atrás da barba
comprida e suja, reconheceu seu pai, mais velho, mais enrugado, mas era ele. O
coração disparou. A palidez cobriu seu rosto.
O homem estendeu-lhe a mão encardida e pediu-lhe dinheiro. Ele recuou, o ódio misturou-se a um
inesperado sentimento de piedade, diante daquele trapo humano.
Ele
negou e se afastou mais, mas o pai o segurou insistindo na esmola. Dentro dele
surgiu a imagem da faca e dos gritos da mãe.
Fora de si, ele o empurrou com força para se desvencilhar. Cambaleando e soltando palavrões, Severino
desceu da calçada. Ouviu-se uma brecada
forte, mas o carro não conseguiu parar e o atirou longe. O motorista desceu desesperado para
socorrê-lo. Várias pessoas pararam para
ajudar. Estava morto.
Josué
assistiu petrificado a tudo. Não
conseguia sair do lugar. De repente,
virou as costas e seguiu seu caminho sem olhar para trás. Dos olhos caiu uma lágrima confusa.
Texto forte e muito bem descrito. Parabéns, Adelaide. Gostei.
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