UM DIA DIFERENTE
As aparências enganam, nem tudo é o que parece.
A
porta da rua se abriu de repente e foi batida com grande estrondo. Luciana irrompeu
a sala aos prantos, correu diretamente para a escada do sobrado, galgou-a em
desespero, seus passos ressoando alto na madeira dos degraus, e bateu com violência
a porta de seu quarto. Os dois gatos da
casa dispararam desesperadamente para a cozinha e pararam à porta espiando para
a sala, apavorados, tentando identificar a repentina ameaça.
Clarissa
não tinha ido trabalhar naquela manhã e aguardava na sala a hora de sair para
uma consulta médica. Levou um grande susto com aquela invasão inesperada e, sem
entender o que estava acontecendo com sua filha, ficou paralisada por um ou dois
segundos, aturdida, mas logo reagiu e subiu também apressadamente, encontrando
a porta trancada.
—
Luciana! Abra a porta! O que houve?
Àquela
hora, Luciana deveria estar ainda na primeira aula. Seu pai a levou para o
Colégio e dali iria para o aeroporto, em viagem de negócios.
Luciana
não respondeu, não abriu, não a atendeu. Clarissa podia ouvi-la chorando, um
choro convulsivo, sem cessar. Insistiu muitas vezes, mas não conseguiu
resposta. Enquanto tentava convencer a menina a abrir a porta, em sua cabeça as
ideias mais trágicas se sucediam: Teriam sofrido um acidente no caminho? Onde
está o Rodolfo? Por que não veio com ela? Ou será que foi abusada no Colégio? Meu
Deus! Ela tem apenas treze anos! O que será que aconteceu? Justamente hoje que
eu não pude ir com eles!
Ligou
para o Colégio, disseram apenas que a menina não tinha entrado em aula.
O
desespero já tomava conta de Clarissa. Havia mais de uma hora que estava
naquela situação e a menina não respondia. Tentou ligar para o marido, duas,
três, várias vezes, não conseguiu completar a ligação, ele devia estar no avião.
Tentou abrir a porta com a chave de seu quarto, não serviu.
—
Pelo amor de Deus, Luciana! Abra a porta!
Finalmente,
Luciana a atendeu. Abriu a porta, olhou para a mãe com o olhar salgado pelas
lágrimas, e a abraçou; um abraço apertado, sem parar de chorar e soluçar. Não
dizia nada, apenas chorava.
Vendo
o estado emocional da filha, Clarissa a aconchegou melhor no abraço e
resignou-se a esperar. Ficaram assim por muito tempo, até que Luciana se
acalmou um pouco, olhou para ela e falou:
—
Eu te amo, mamãe. Vou ficar sempre com você. Nunca vou te deixar sozinha.
—
Por que você está dizendo isso, Luciana?
Então,
ainda relutante, entre soluços e entremeando longas pausas, ela começou a
contar. Disse que logo ao entrar no Colégio sentiu frio e viu que tinha
esquecido o casaco no banco do carro; voltou correndo para buscá-lo, deu tempo;
seu pai ainda estava conversando com a mãe de sua coleguinha, aquela mulher
loira, muito bonita, cujo marido havia morrido havia pouco tempo, num acidente;
“aquela mesma que outro dia o papai elogiou e você ficou com ciúmes”, completou,
hesitante. Interrompeu-se por um instante sem saber como prosseguir, e afinal,
novamente chorando e segurando os soluços, contou de uma vez:
—
Ele nem me viu abrir a porta do carro e estava dizendo para ela que hoje tinha
se separado de você e não voltaria para casa. Eu não quis ouvir mais nada; peguei
o casaco e corri para o Colégio, mas não aguentei e vim para casa.
Ao
ouvir o que sua filha contara, Clarissa estremeceu. Terríveis recordações
assomaram impiedosas à mente. Queria esquecê-las, mantê-las no limbo de sua
memória, mas aquela situação as trouxe revividas com todo vigor, causando a
mesma dor que sempre provocavam quando vinham à tona. O impacto foi muito
forte, tão forte que Clarissa perdeu a consciência. Antes, ainda pronunciou o
nome de seu marido;
—
Rodolfo...
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O >>>
Anthony
fazia jus a seu nome esnobe. Era um homem bonito, elegante, sua postura aristocrática
sem afetação provocava suspiros românticos em muitas mulheres, aguçando-lhe a vaidade;
ambicioso, deslumbrava-se facilmente com tudo que exalasse luxo e riquezas. Por
conta disso, embora não fosse rico, era incansável em frequentar amigos da alta
roda.
No
ambiente do lar, porém, era diferente: brincalhão e irrequieto, marido perfeito
e pai carinhoso, embora não resistisse aos muitos convites dos amigos para
festas e jogos no clube. A esposa Dulce já não o acompanhava mais como antes,
porque tinha mais juízo e compreendia como era importante estar sempre presente
para a filha Clarissa naquela sua fase tão bonita e melindrosa de pré-adolescente.
Nessas
oportunidades Anthony ficava desassossegado, não hesitava em inventar desculpas
para sair, mesmo sem a esposa. Muitas vezes eram argumentos evidentemente falsos,
mas Dulce não dizia nada, fingia não perceber e o perdoava; não queria um clima
de hostilidades em sua própria casa, e até achava graça ao considerar que
aquele cabeça-de-vento cumpria direitinho o seu papel de pai e marido; admitia,
então, que era justo que ele saísse para se divertir, mas ela já havia optado
por assumir as suas responsabilidades de mãe e dona de casa de classe média.
Sabia,
porém, que não podia confiar na palavra de seu marido.
Naquele
carnaval Anthony foi mais ousado, anunciando, muito empolgado, que fora convidado
pelos amigos para o baile do clube. Iria
a caráter e, após examinar inúmeras alternativas, encantou-se com a fantasia de
Capitão Gancho, que ficou perfeita para ele. Dulce conhecia muito bem o marido
que tinha e sabia que não conseguiria impedi-lo; entre contrariada e divertida,
ainda observou, sorrindo:
—
Só falta o navio, está perfeito. É você mesmo, sem tirar nem pôr! Pode ir,
divirta-se com seus amigos, mas... tenha juízo! — Acrescentou, sem acreditar
nisso — eu fico com a Clarissa. Ela convidou umas coleguinhas, vão fazer um
bailinho no quintal de casa. Não venha muito tarde.
No
salão do clube, pessoas muito animadas dançavam ao som alto de marchinhas ritmadas,
algumas maliciosas, casais em atitudes atrevidas, muitas mulheres bonitas em trajes
provocantes, erotismo no ar.
Uma
loira bonita e muito sensual chamou a atenção de Anthony. Ele logo a
reconheceu: era Laura, já se conheciam socialmente de outros eventos do clube.
Anthony sabia que o marido dela havia falecido quatro anos antes num acidente
automobilístico, deixando-a muito rica e carente, ainda bastante jovem aos
quarenta anos de idade. A atração foi imediata e muito forte: esqueceu os
amigos, convidou-a para dançar.
Ao
longo da noite dançaram, beberam, divertiram-se bastante. Em certo momento, no
calor da folia, Laura confessou para Anthony que já era apaixonada por ele
havia muito tempo, desde quando o via em outras atividades do clube. Ouvindo
essa revelação daquela mulher tão provocante e inebriado pelo ambiente
contagiante de tentações em que estavam, ele não resistiu aos seus encantos e
às benesses da vida de fartura e riquezas que ela lhe oferecia. Era tudo o que ele sempre quis, sua ambição
falou alto.
Anthony
não voltou para casa naquela noite. Quando apareceu, já na tarde do dia
seguinte, foi para informar que resolvera mudar de vida. Pegou apenas os
pertences pessoais e não teve escrúpulos em abandonar Dulce e Clarissa.
Inconformada
com o fim de seu casamento, Dulce compreendeu tarde demais que ele agiu como
agiria o personagem da fantasia que escolheu, pilhando o tesouro que encontrou.
Aquela caracterização revelava mesmo quem ele era realmente.
Foi
assim que uma viúva loira e rica desfez o lar de Dulce e levou embora o seu marido,
que a deixou ao desamparo, causando para Clarissa consequências emocionais
devidas a uma juventude triste, carente do amor paterno.
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O >>>
Luciana
não sabia o que fazer, nunca tinha visto alguém desmaiado.
Em
sua inexperiência pensou as piores hipóteses, mas viu que a mãe respirava.
Pegou o telefone e ligou para a avó, pedindo socorro.
Dona
Dulce já imaginava o que tinha acontecido. Sempre que se lembrava que fora
abandonada pelo pai, Clarissa perdia os sentidos por alguns momentos. Um médico
lhe dissera que se tratava de cataplexia, uma perda de sentidos motivada por
alguma forte emoção. O casamento feliz que sua filha tinha com Rodolfo parecia
ter resolvido esse problema, havia muitos anos que ela não desmaiava. O que
teria desencadeado novamente aquela reação? Pensou, preocupada.
Morava
perto, chegou rapidamente à casa da filha e, como esperava, Clarissa já havia
recuperado a consciência. Por um
instante se enterneceu ao perceber os olhos da neta Luciana ainda vermelhos
como os de um coelhinho, e achou que ela tinha chorado apenas por causa do
susto.
Ao
ver a mãe, Clarissa sentiu-se amparada; apoiou a cabeça em seu peito e chorou
sem nada dizer, provocando novo choro também em Luciana. Dona Dulce lhe acariciou
os cabelos e não estranhou a fragilidade da filha, achava que sabia o motivo.
Só não atinava em como ressurgira. Quase acertou, mas o personagem era outro.
Logo
providenciou duas almofadas e disse a Clarissa que se deitasse de costas com as
pernas elevadas, apoiadas nas almofadas. Isso a ajudaria a recobrar a boa
circulação cerebral, consolidando sua recuperação. Providenciou também um chá
de camomila quentinho, para acalmá-la.
Um
pouco depois Clarissa já se sentia melhor, mas ainda um pouco desorientada. Fez
um sinal para Luciana com o dedo indicador sobre a boca, para que não contasse
nada a sua avó. A manhã já estava no fim, tinha perdido a consulta no oculista
e estava com muita dor de cabeça. Telefonou para avisar ao chefe que não estava
bem, não iria ao trabalho nem à tarde.
Dona
Dulce cuidou para que as coisas voltassem à rotina. Fez o almoço, cuidou de
algumas coisas da casa. Clarissa tomou um analgésico e dormiu até a hora da
janta. Luciana foi para seu quarto. Tentou estudar um pouco, teria uma prova no
dia seguinte, mas não conseguia se concentrar.
O
restante do dia transcorreu monótono para elas.
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Eram
mais de dez horas da noite quando ouviram bater a porta de um carro e em
seguida aquela música italiana antiga, naquele assobio inconfundível. Clarissa e Luciana o reconheceram de imediato
e se entreolharam, surpresas. Revelava a presença de alguém sempre muito feliz
e despreocupado, que conheciam muito bem. Mas não esperavam que ele aparecesse
agora, muito menos assobiando.
Rodolfo
abriu a porta e entrou na sala, abraçado a dois grandes pacotes. Foi direto
para Clarissa com um sorriso que lhe tomava toda a face, e a beijou nos lábios
antes que ela pudesse evitar. Entregou-lhe um dos pacotes e o outro para
Luciana, que também beijou carinhosamente. Cumprimentou a sogra e lhe agradeceu
por estar ali, fazendo companhia a elas.
—
Deu tudo certo, o comprador gostou da proposta, negócio fechado! — Exclamou – e
ainda consegui uma passagem de volta para hoje mesmo. Comprei essas
lembrancinhas para vocês numa loja do aeroporto.
Incrédulas,
Clarissa e Luciana olhavam para ele sem entender. Dona Dulce, que continuava candidamente
sem saber de nada, ficou mais tranquila com a presença do genro.
—
Agora que você chegou, vou para casa — despediu-se e saiu.
Clarissa
fez discretamente o mesmo sinal de “psiu” para Luciana; e depois de pensar um
pouco, resolveu comer pelas bordas para não queimar a língua.
—
Você sentiu minha falta hoje de manhã?
—
Claro, meu bem — mas você agora me fez lembrar que eu dei um fora terrível.
Sabe a Dona Sonia, a mãe da coleguinha da Luciana? Ela perguntou por você e eu
disse para ela – imagine só — que esta manhã nós tínhamos nos separado e eu não
voltaria para casa. Ela fez uma cara de espanto que só vendo. Só então percebi
o que eu tinha dito. Fiquei sem graça, pedi desculpas e esclareci que nos
separamos porque você tinha uma consulta médica e eu estava indo para o
aeroporto para uma viagem de negócios, só voltaria amanhã.
Clarissa
olhou para Luciana, Luciana olhou para Clarissa, ambas de olhos arregalados. De
repente a ficha caiu ao mesmo tempo para as duas e a gargalhada delas explodiu
uníssona, espalhafatosa, estrondosa. Mais uma vez os gatos dispararam,
assustados, para a cozinha.
Rodolfo
olhava para elas, intrigado, mas teve que esperar até que recuperassem o fôlego
para saber o que estava acontecendo.
Antes
assim.
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