Parece, mas não é
Hirtis
Lazarin
Ele
tinha mais de oitenta anos. Fumou sempre e agora os pulmões cobravam um preço
bem caro por terem sido tão prejudicados. Os acessos de tosse não eram tão
frequentes, mas quando vinham, os balões de oxigênio eram acionados. Seu
Jerônimo não reclamava, pois sabia que era o único culpado pela falta de saúde.
Os conselhos da esposa que o amava tanto, nunca foram levados a sério. “Pratico
esportes”, era sua desculpa de sempre. Esses momentos de reflexão sobre a vida
eram difíceis e arrancavam-lhe um punhado de lágrimas escondidas.
Quando decidia sair do quarto, eram os
chinelos fofos que arrastavam suas pernas doloridas. O cantinho preferido da casa era a varanda,
projetada por ele. Sua familiaridade e seu amor pelas plantas criaram um espaço
colorido e cheio de vida. Um contraste para quem sabia que não lhe restava
muito tempo pela frente. Os pássaros vinham e as pessoas que circulavam pela
calçada também, atraídas pela beleza e pelo perfume que cantarolava suavemente.
Era o momento em que Seu Jerônimo comunicava-se com o mundo exterior e
sentia-se feliz.
Eu o
conheci quando me mudei para o bairro e fazia uma caminhada. As casas eram
afastadas uma das outras e pouco movimento nas ruas. Na verdade, a única pessoa
que encontrei, disponível pra bater um papo, foi esse senhor sentado na
varanda.
Um
cumprimento de boa tarde e mais meia dúzia de palavras foram suficientes para começar
uma grande amizade. A gente combinava e, toda semana, lá estava eu com meu
amigo. E para completar a empatia, tínhamos a mesma profissão, engenheiro
civil.
Ele
era uma pessoa inteligente e de raciocínio rápido. Tinha uma linda história de
vida. Ensinou-me que: “Ser homem não é ser pura natureza; ser homem é saber que
o mundo não nos foi dado de presente, mas que precisamos criá-lo”. Eu, bem mais
jovem, aproveitava cada segundo em sua companhia.
Mas
Seu Jerônimo tinha também um lado bem engraçado e sabia contar suas peripécias,
nos mínimos detalhes. Ouvi muitas e rimos juntos pra valer. Selecionei uma das
histórias, a mais “sui generis” e vou contar a vocês.
Recém-formado,
ele foi morar em KISSIMMEE, na Flórida. Uma cidade pequena, com expansão na
área de construção. Foi uma ótima escolha: muitas
opções de trabalho e continuação dos estudos.
A
casa, ao lado da sua, foi ocupada por novos moradores. Um casal jovem e duas
crianças. Comunicativo como a maioria dos brasileiros, Seu Jerônimo procurou os
vizinhos para um relacionamento cordial. E, prontamente, foi correspondido. Nos
finais de semana, ensinou-os a apreciar um bom churrasco e até aprendeu a fazer
a famosa “apple pie”. Foram quase dois anos nessa convivência harmoniosa.
De
um momento para o outro, e por conta de um desentendimento, aparentemente,
bobo, o casal afastou-se dele. Nos
finais de semana, viajavam e, quando se encontravam na rua, abaixavam a cabeça
e, arredios, entravam rapidamente no carro ou abriam o portão de casa,
ignorando-o.
Seu
Jerônimo ligou várias vezes, mas o número do telefone já não era mais o mesmo. Tentou
interceptá-los na frente de casa e não teve sucesso. Era melhor fingir que
aceitava aquela situação.
Mas
não se conformava. Uma amizade verdadeira não termina assim. Não aceitava
aquele afastamento sem uma conversa esclarecedora. A raiva tomou conta. Nasceu, então, naquele momento, um detetive.
Um novo Sherlock Holmes foi empossado e a investigação começou.
Uma
vez por semana, geralmente às segundas-feiras, chegava um carro sem placa. Homens vestidos de negro permaneciam na casa
ao lado, durante mais ou menos, duas horas. Os demais dias da semana corriam
normalmente até o final de semana, quando a família desaparecia. Os muros foram
erguidos e câmeras instaladas ao redor da casa. As janelas permaneciam quase
sempre fechadas. A família estava fugindo?
Que segredos guardavam?
A
década era de 80, período em que os jornais e a televisão noticiavam,
incessantemente, os perigos da guerra fria. Um conflito político-ideológico
travado entre os Estados Unidos e a Rússia, um alinhado ao capitalismo e o outro
aliado ao comunismo. Cada um tentava provar sua superioridade bélica, espacial
e econômica.
A
população mundial passou a entender o que significava o adjetivo “fria”. Um
conjunto de práticas no campo da espionagem, das disputas diplomáticas e
ameaças. A palavra “espião” começou a fazer parte do vocabulário dos
americanos.
E
Jerônimo colocou na cabeça que morava ao lado de um espião, a serviço da KGB
russa.
Apesar
de trabalhar menos e espionar mais, não conseguia apurar nada. Se conseguisse
provas e denunciasse o casal, com certeza, levaria o título de herói. E a
palavra “herói” vibrava!
Postou
cartas anônimas ao vizinho e nenhuma reação. Ofereceu dinheiro à moça que
trabalhava na casa e ela sempre afirmou que lá não havia nada suspeito. Dobrou
a quantia e nada. A única coisa diferente é que os vizinhos ouviam música com
muito mais frequência e num volume mais alto que o amigável. “Com certeza é para
esconder sons estranhos. Talvez bombas...”
Remexendo
na caixa de correspondências do casal, Jerônimo encontrou uma carta cujo
remetente era a KGB. Num primeiro momento, acreditou que o cerco se fechara.
Encontrou a prova que precisava. Depois, pensando melhor: “um descuido da
espionagem oficial russa? Improvável”.
Mas a empolgação era tão grande, que ele não
conseguiu suportar que estava enganado. Procurou a polícia americana, fez a
denúncia e entregou a prova. Missão cumprida. Agora era só controlar a
ansiedade.
Semanas
se passaram até que Jerônimo recebeu um grupo de policiais e uma notícia
arrasadora: “A senhora e o senhor Smith são inocentes. Não há nada que desaprove
o comportamento deles. São americanos cumpridores dos seus deveres”.
— E
a carta da KGB”?
— Não
existe carta nenhuma da KGB. Você não sabe ler. A carta é sobre o lançamento,
aqui nos Estados Unidos, de uma banda brasileira, a “KLB”, “KLB”, ouviu? Seus vizinhos são empresários e, há algum
tempo têm sido vigiados por você. Temos aqui vários boletins registrados por
eles.
Jerônimo
desmaiou. O fingimento foi tão bem fingido que convenceu os policiais e ele só voltou
a si quando a ambulância chegou ao hospital.
Recebeu
alta e no dia seguinte, juntou roupas, objetos pessoais, passou na empresa em
que trabalhava e se demitiu. Desapareceu
do mapa, antes que a notícia se espalhasse pela cidade pequena, onde a maioria
das pessoas se conhecia. Ele não suportaria ver seu nome, em letras garrafais
preenchendo manchetes nos jornais ou então aparecer na T.V. e virar chacota na boca dos jornalistas.
Eu e
o Seu Jerônimo caímos numa risada bem debochada e histérica.
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