O Despertar
Adelaide
Dittmers
O
rapazinho de treze anos apertou os olhos feridos pela claridade súbita. Quando conseguiu abri-los maravilhou-se com o
que viu. Muitas descrições, tinha ouvido
sobre o lado de fora, mas o que estava vendo a tudo superava. Era como se acabasse de ter saído do útero
materno. Como se nascesse naquele
momento.
Árvores
floridas, um céu vestido de um azul intenso, onde nuvens brancas desenhavam
diversas formas. Abaixo, um rio
esverdeado e vigoroso correndo pelo seu leito pedregoso.
O
jovem sentiu-se aturdido e sentou-se para recuperar o fôlego e as forças. Lágrimas cristalinas rolaram de seus olhos.
Ele perdera tudo isso por tantos anos.
Vivera na obscuridade ouvindo as diversas histórias dos mais velhos.
Um
homem estendeu-lhe uns óculos escuros.
—
Coloque isso! Você precisa se acostumar com a claridade!
O
menino o pegou e o colocou, mas o retirou.
Queria
sorver toda aquela luz, queria sentir aquele mundo, que estava experimentando
pela primeira vez.
O
vento que lhe desmanchava o cabelo era uma dádiva inesperada e balançava a
cabeça para senti-lo como se fosse uma carícia.
Saíra
de uma caverna para outra realidade. E uma pergunta imperiosa surgiu em sua
mente. O que lhe reservaria esse novo
mundo... Imenso demais. Misterioso demais. Inesperado demais.
Levantou-se
e com passos incertos começou a descer a encosta da montanha. O rio o atraía como um imã. Abaixava de quando em vez para pegar uma flor
e a cheirava como um animalzinho fareja algo delicioso.
Os
outros, que com ele haviam saído do frio e triste bunker, pararam e o deixaram
seguir.
A
água fria do rio molhou os pés descalços e encharcou-lhe a roupa. Um arrepio de
prazer percorreu-lhe o corpo. O menino
pisava com cuidado no solo de pedras lisas, apreciando cada contato com aquela
natureza, que desconhecera até agora.
Uma
voz feminina ecoou à distância:
—
Venha, filho. Temos que ir.
Ele
voltou-se vagarosamente.
—
Posso ficar mais um pouco?
—
Seu avô está sendo esperado. Precisamos
partir já.
O
jovem saiu devagar da água e dirigiu-se para o grupo de pessoas, que o
esperavam mais acima.
Na sua
cabecinha fervilhavam lembranças desencontradas. Os dias em que homens traziam suprimentos
para o bunker e reuniam-se com o avô sob as lâmpadas, que espalhavam uma luz
tênue no ambiente. Momentos únicos, em que traziam notícias do mundo exterior.
A
guerra, na qual o país mergulhara na tentativa de conter a invasão por outro
povo. A fuga desesperada do avô, que
governava a nação, juntamente com a família e componentes do governo. O esconderijo naquele lugar escuro. A resistência daqueles, que queriam libertar
a terra nativa dos opressores e a fidelidade ao avô, escondida no coração de
cada combatente. Histórias que ouvira e tivera dificuldade de entender.
Mergulhado
nesses pensamentos, chegou perto do grupo.
Olhos emocionados pousaram sobre ele.
Um senhor de cabelos prateados aproximou-se e acarinhou-lhe a cabeça.
—
Pedro, você tem muito a descobrir. Vamos
até a estrada. Carros nos esperam.
Umas
trinta pessoas começaram a caminhar até a estrada. Já tinham lhe contado que os rebeldes
conseguiram expulsar os invasores após tantos anos de lutas e armadilhas ao
inimigo e que o país fora libertado. O
que aconteceria, agora?
Ao
alcançarem a estrada, vários carros os esperavam. Os olhos de Pedro
arregalaram-se. Pela primeira vez, via
um carro. Um ähhh¨ de surpresa
escapou-lhe da boca e deu uma volta pelos veículos, admirando cada detalhe. O menino estava admirado diante daquela
realidade, que conhecera apenas pelas descrições e fotografias. Tudo era muito maior, mais impactante. As
longas conversas com os adultos, as perguntas constantes, que fizera resultaram
em uma pálida idéia do mundo exterior.
Sorrisos
estamparam-se nos rostos das pessoas. O
jovem tinha sido o filho de todos durante os longos e tenebrosos anos, que
viveram naquele lugar inóspito. Ele fora
a única alegria e um dos fortes motivos de manterem a esperança de lá sair.
De
repente parou. A alegria e o espanto
diante das descobertas chocavam-se dentro dele.
Correu para perto dos pais e
abraçou-os como um bebê que pede colo para se sentir protegido.
O
avô derramou um olhar carinhoso sobre o neto, compreendendo os sentimentos
contraditórios que o deviam estar sacudindo.
—
Vamos, Pedro! Entre no carro. Precisamos
ir para a cidade. Estão nos esperando.
Todos
tomaram seus lugares e seguiram pela estrada estreita de terra.
O
menino tinha os olhos pregados na janela, observando a paisagem que desfilava
rapidamente. O sacolejar do veículo, as
curvas do caminho o nausearam e a comitiva
parou para ele pôr para fora todo o espanto e emoção, que aquele mundo
novo estava lhe causando.
Algumas
horas passaram e pequenas habitações surgiram.
—
Casas! Estamos chegando?
—
Ainda não! Veja, vamos pegar aquela
estrada!
Uma
estrada asfaltada estendia-se a perder de vista. Os carros a acessaram, aumentando a
velocidade. O mau estado da pista fazia
com que desviassem dos inúmeros buracos, mas mesmo assim tudo parecia voar ao
lado de Pedro. Ao longe, plantações de
diversas cores passavam por eles simetricamente alinhadas. Aqui ou ali, viam-se construções em ruínas.
Muitos
quilômetros depois, surgiu mais abaixo de uma colina, uma grande cidade.
—
Agora estamos chegando, não é?
—
Sim, Pedro. É a nossa cidade. A capital do país. Respondeu o avô, com os
olhos marejados de lágrimas.
Nesse momento, seus pensamentos voaram para a
companheira de muitos anos, que não resistiu ao longo tempo de confinamento e
que não compartilharia com ele a emoção de retornar ao que tinham deixado.
A
cidade os recebeu engalanada.
Bandeirinhas agitavam-se nas mãos do povo para receber o chefe da nação,
que a maioria julgara que estava morto.
Espantado,
o menino encolheu-se no banco do carro.
As surpresas estavam sendo demasiadas para um único dia de sua curta
vida. A angústia dele foi percebida pela
mãe, que o enlaçou com um dos braços e acalmou-o com palavras ternas.
Edifícios
destruídos eram avistados ao longo trajeto.
Eram os vestígios da guerra e essa triste realidade abalou o jovem mais
uma vez
Mais
adiante, chegaram a uma grande praça, onde uma bela construção se erguia. O cortejo parou. Uma multidão lotava o lugar e o nome do avô
era ouvido em altos brados. Saíram dos
carros. O avô subiu as escadas
lentamente. Soldados enfileirados
prestavam-lhe continência. Ao chegar a
um patamar, no topo das escadas, um microfone o esperava. Virou-se devagar para o povo e acenou. Alto, rosto traçado por vincos profundos e
olhar intenso. Transpirava carisma e
integridade por todos os poros. A voz
firme, mas emocionada soou pelo lugar e um grande silêncio apagou o burburinho
que reinava.
Em
um discurso breve, ele agradeceu a todos a luta pela liberdade e lealdade ao
país e a seus princípios mais profundos.
Ao terminar, uma ovação explodiu.
Ele curvou a cabeça em sinal de agradecimento e respeito à coragem
daquele povo sofrido. Acenou mais uma vez e virou-se, entrando no palácio. Os
companheiros de exílio e aqueles que o ajudaram a reconquistar o país o
seguiram.
Na
grande sala, abraçaram-se emocionados. Uma
mesa posta, com várias iguarias os esperava.
O avô, porém, recusou a refeição.
—
Estou exausto. Preciso descansar. Vejo vocês amanhã para traçarmos os próximos
passos para reerguer o país. Há muito
trabalho a fazer.
E
levantando uma das mãos, cumprimentou a todos com um sorriso e saiu da
sala. Os presentes o acompanharam com
olhares de respeito. Admiravam a bravura
daquele homem, que mantivera a nação unida, oculto e preso em um bunker no
âmago de uma distante montanha, orientando seus homens a resistir e lutar pela
expulsão dos invasores.
Quando
toda a população soube que o seu líder estava vivo e mesmo escondido ajudou a
alcançar a vitória, o orgulho despedaçado pelos anos de submissão acendeu-se em
cada homem, em cada mulher, em cada velho, em cada criança.
A
refeição transcorreu em um clima festivo, que disfarçava uma certa tensão em
cada participante, afinal o desafio de ora em diante seria enorme e já pesava
nos ombros dos que ajudariam a levantar o país.
Pedro
não escondia a agitação que lhe sacudia o íntimo. Para os seus verdes anos, tudo era muito
desafiador. Olhava de um lado para o outro, sentindo a emoção contraditória de
cada um, ao mesmo tempo que se surpreendia com o brilho dos talheres de prata,
com a louça de filetes dourados e com a alvura da toalha.
Quando
o jantar terminou, já os últimos raios de sol incendiavam a sala de tons
avermelhados. O jovem correu para a
janela.
— O
que está acontecendo no céu?
Os
pais aproximaram-se:
— É
o pôr-do-sol! Não é maravilhoso? Perguntou o pai e completou: Está anunciando o
cair da noite.
Pedro
estremeceu;
—
Não quero ver a noite! É muito escura!
Na
sua memória, surgiu a imagem negra de uma tempestade que atingiu a montanha e
do vendaval que abriu e quase derrubou a porta oculta do bunker. Pessoas correndo para fechá-la. O susto e o medo que se apoderou de todos. A
confusão que lhe permitiu ir até a entrada e presenciar a escuridão, o forte
aguaceiro e os raios que riscavam o céu. O pânico que o paralisou e o contato
com uma mão que o levou para dentro, onde a avó o acolheu em seus braços.
O
pai tirou-o dos seus pensamentos.
—
Sei do que você está recordando. Aquela
escuridão foi consequência do temporal.
Hoje o dia foi claro e ensolarado. Você vai ficar surpreso ao apreciar a
noite.
— Vamos subir, exclamou a mãe. Você precisa
tomar um banho e descansar. Foram muitas as emoções. Mas antes de ir para a
cama, vamos admirar a noite do terraço para afastar a má impressão, que ficou
daquela tempestade.
E
pegando o filho pela mão, subiram a escada. Mas, Pedro virou-se:
—
Pai, você sobe depois para vermos a noite juntos.
O
medo ainda pairava sobre ele.
As
luzes piscantes das estrelas e uma enorme e alaranjada lua cheia enfeitavam o céu
quando saíram para o terraço.
—
Meu Deus! Quantas estrelas! A lua é
linda! Estou vendo o universo, não é?
—
Sim, uma pequena parte dele. Respondeu o
pai.
Um
profundo suspiro exalou das mais profundas entranhas do menino. Um torvelinho de pensamentos tentava
processar tudo o que estava vivendo e descobrindo em um único dia. Sacudiu a cabeça, tentando ordenar o que lhe
passava pela mente.
—
Estou cansado!
—
Vamos entrar! Você precisa de um bom sono!
Já
deitado, recebeu os beijos dos pais. A
cama macia o abraçou e o aconchegou.
—
Deixem a porta do terraço aberta!
O
luar prateado, salpicado de estrelas iluminou e embalou os sonhos de Pedro.
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