Curon
Adelaide Dittmers
Flocos de neve caiam do céu
cinzento. Agasalhados e indiferentes ao
frio, brincávamos pelas ruas, jogando pequenas bolas de neve uns nos
outros. A algazarra ecoava por toda a
vila. O sino da velha igreja bateu por
doze vezes. Todos sabíamos que era hora
de almoçar. Como pássaros alvoroçados,
corremos para casa. A refeição quente e
convidativa já estava na mesa.
Meu pai sentou-se à mesa com
um semblante grave. Comeu em silêncio,
sob o olhar preocupado de minha mãe.
Quando o almoço terminou, pediu a mim e meu irmão que fossemos para o nosso
quarto.
Curiosos, ficamos escondidos
para ouvir o que ele tinha a dizer. As
crianças sempre tinham que sair quando os adultos tinham algo a dizer que elas
não deveriam ouvir.
Assustados e sem entender
nada, ficamos sabendo que iam cobrir a cidade com água. Ouvimos o choro de nossa mãe e, num impulso
maior que nós, irrompemos pela sala, perguntando se era verdade aquilo.
Meu pai, zangado, disse que
não era bonito ficar atrás das portas, ouvindo a conversa dos outros, mas nos
acolheu e nos acalmou, explicando que iriam construir uma usina para gerar eletricidade.
Cada detalhe nos foi dado pacientemente para que entendêssemos o que seria a
tal usina.
À tarde, quando saímos para
brincar com nossos amigos, a notícia já se tinha espalhado como rastilho de
pólvora e as crianças não falavam de outra coisa. As brincadeiras foram esquecidas e todos
queriam falar ao mesmo tempo.
Naquela época, Curon era uma
pequena vila cercada por plantações.
Meu pai tinha um pequeno pedaço de terra, onde cultivava videiras, cujas
uvas se transformavam no bom vinho italiano.
Muitos habitantes eram agricultores e viviam do que plantavam.
A vida, naquele lugar,
corria mansa e lenta. Aos domingos,
todos iam à missa e ao sair da igreja, reuniam-se em grupos, em que as
conversas e mexericos corriam soltos. Era muito difícil se manter algum segredo
naquela aldeia. No entanto, todos eram
amigos e se ajudavam quando era preciso. Naquele domingo, a notícia caiu como
uma bomba sobre eles e com intensa gesticulação, uma característica bem típica
dos italianos ao se comunicarem, expressavam sua revolta de terem de abandonar
suas casas e a história de suas vidas, construída na pequena vila, onde também
viveram seus pais e avós.
Foi uma época muito
angustiante para todos. Nós, crianças,
no alvorecer da existência, além do assombro de ver nosso mundo desaparecer sob
as águas, estávamos mais curiosos do que infelizes pelo destino de nossa terra
natal.
No domingo, antes de nossa
retirada, foi celebrada a última missa na velha igreja e ouviu-se o badalar dos
sinos pela vez derradeira. Os habitantes compareceram em peso, muitos tiveram
que ficar de fora para assistir ao culto.
Os olhares de todos voltavam-se para as belas pinturas nas paredes e
teto do santuário e se detinham nas antigas imagens, que se distribuíam pelo
seu interior, numa despedida dolorida daquele templo, onde tantas vezes rogaram
pela proteção divina e que tanto representava para eles. Batizados e casamentos
haviam sido celebrados ali e mesmo mortos foram ali chorados.
Depois desse dia, cada um
seguiu seu caminho. Minha família, depois de um ano, emigrou para o Brasil, onde
construiu uma nova vida. O Brasil, para
mim, é minha segunda pátria, terra dos meus filhos e netos.
Certo dia veio a notícia de
que, ao reparar a usina, tiveram que esvaziar a represa e a torre da igreja
emergiu das águas. Tomada por
recordações perdidas no tempo, acendeu-se em mim um desejo intenso de voltar à
Itália para ver o que sobrou de minha pequena cidade natal.
Quando lá cheguei, uma forte
emoção apoderou-se de mim ao ver a torre da igreja secular apontada para o céu
e rodeada das ruínas do que outrora fora o vilarejo.
Naquele momento, pensei na
mudança drástica por que todos daquela vila tínhamos passado. A vila tinha morrido,
mas a vida, que correu nela, continuou em outros lugares e, como a torre, que
se erguia desafiadora, novos horizontes foram alcançados, novos vôos e
descobertas foram realizados por aqueles que a deixaram com um destino incerto
num passado distante.
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