Lisboa, 05
de dezembro de 1500
Hirtis Lazarin
Pero (sem sobrenome)
Homem maldito, despertaste em mim o inferno da ira. A vontade de te
destruir é tão forte que queima e explode dentro de mim. Meu
coração não pulsa mais no compasso; ele corre desvairado
atropelando meu equilíbrio e minha sensatez. Faíscas de fogo brotam dos
meus olhos e me deixam cego. E tão ferventes são que, se lançadas
em tua direção, derreter-te-iam em segundos.
Eu, homem de pouca fé que sou, humilho-me, ajoelho-me e rogo a Deus que aquiete minha
pessoa e permita a mim colocar neste papel o juízo que faço de ti.
Quão insolente foste tu ao dirigir-te a este capitão-mor. D.
Manuel, nosso rei e soberano, lançou-me numa perigosa empreitada por águas
bravias e pouco conhecidas. Só confiou-me tal missão porque acreditava na
minha bravura e destemor. E, para glória do nosso povo, cheguei à Terra
de Santa Cruz. Mais uma conquista portuguesa. A terra é tão fértil
e pródiga que, por estas bandas de cá, já se ouve falar que "nela se
plantando tudo dá". As árvores do tronco vermelho são tantas, mas
tantas... que não dá nem pra contar. Até já posso vê-las, ora
pois, transformadas em tantas novas embarcações, navegando por
outros destinos.
Quão insolente foste tu ao criticar o tratamento de meu feitio à tripulação que
comandei.
Quão insolente foste tu reclamando que trabalhava debaixo de tanto sol
e que dos lombos escorria suor de raiva e rancor. Esqueces-te por
acaso de onde saíste? Lembro-te: foi de um calabouço
fétido, entalhado no mais alto da torre. As paredes úmidas e
emboloradas lá jazem inertes, arranhadas todas por unhas nervosas e
desesperadas. Paredes esburacadas que parem ratos e baratas. Ratos
que comem baratas e baratas que comem nada. E famintas e
enfraquecidas percorrem aqueles corpos quase nus, atraídas
pelo cheiro forte e nauseante que exalam. Ora pois, esqueceste também o
terror que sentias dos gemidos sofridos, noite e dia, os gemidos
dos que ali morreram de morte verdadeira ou de morte matada pela certeza do
"nunca mais"?
Quão insolente foste tu em não reconhecer o gesto piedoso do nosso soberano, libertando-os
daquele inferno em troca do trabalho nas grandes expedições.
Quão insolente foste tu em me maldizer com a certeza de que o nome deste
servidor de Vossa Majestade jamais entraria para a história da Terra de Santa
cruz. Ah! Ignorante e petulante que tu és, informo-te que o nome de
PEDRO ÁLVARES CABRAL já está agraciado, juramentado e lacrado nos compêndios da
literatura de Portugal. Morrerei em paz e com a certeza do dever
cumprido.
Informo-te
que pela insolência da sua pessoa e pelo valor que represento ao meu povo,
nosso Rei cobrar-te-á pagamento justo e merecido. Perderás a liberdade e
deixarás de desfrutar das maravilhas da Terra Nova. Esqueça, ora pois,
das índias formosas da pele de mel e dos cabelos negríssimos e de
comprimento tal que se arrastam pelas costas e por toda frente,
escondendo-lhes a parte da vergonha. E que todos os homens machos rezam
pra que uma ventania chegue sem aviso prévio e cumpra sua missão: varrendo
folhas e jogando cabelos ao léu.
O
portador desta apresentar-se-á acompanhado de um homem de pele cascuda, grossa,
mas de voz fina; braços troncudos e firmes, mas de andar
cambaleante; de cabeça comprida e ideias curtas. Leva algemas e uma
missão: trazer-te de volta à masmorra, de onde nunca deverias ter saído,
ora pois, pois.
PEDRO ÁLVARES CABRAL
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