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terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Cleuza entre o topo e o fundo. - Alberto Landi

 



 Cleuza entre o topo e o fundo.

Alberto Landi

 

Diziam na cidadezinha onde vivia que Cleuza nasceu para brilhar, mas a verdade é que a vida nunca lhe deu nada por obséquio. Cada passo era conquistado na unha e cada sorriso escondia o medo da pindaíba que rondava a sua porta.

No começo, ela acreditava em tudo, caía em qualquer lorota bem contada, achava que todo homem que aparecia era promessa do futuro, até que vieram os amantes e com eles os golpes.

Um dizia que ia tirá-la da pobreza, outro jurava amor eterno, mas tudo não passava de balela, vento leve que se desfazia no dia seguinte.

E quando ela resolveu parar de gorar os planos dos aproveitadores, ou melhor, parar de ser usada para que os planos deles não gorassem, começaram a virar a cara. Chamaram-na de lambisgoia, como se fosse a vilã da própria miséria.

Foi esse último veneno que a fez arrumar a mala e sumir sem retornar.

Na capital onde o luxo e a lama dividem a mesma calçada, Cleuza entrou como dama num cabaré elegante com aqueles olhos vibrantes que denunciavam mais do que ela permitia dizer. O rosto, ainda com certo frescor de quem correu contra o tempo, brilhava sob a luz avermelhada do salão. Os cabelos na altura dos ombros, úmidos como se tivessem acabado de escapar de um banho apressado, moldavam-lhe o perfil juvenil.

Aprendeu a sorrir sem sorrir, a dançar sem tropeçar, a rebolar com todo o frescor, a sassaricar entre as mesas para que os homens nunca se esquecessem de seu nome.

Ao passar, deixava atrás de si um rastro delicado de talco de bebê, um perfume que destoava da crueza do ambiente e por isso mesmo chamava a atenção. As costas bem torneadas surgiam sob a blusa branca de cetim, fina o bastante para revelar quase um segredo, a marca do sutiã. Era uma combinação de inocência e desafio, de promessa e despedida.

E foi assim, misturando fragilidade e coragem, que ela cruzou todo o salão, conquistando olhares sem ao menos se dar conta, ou talvez sabendo exatamente o poder que carregava no andar, no perfume e no silêncio.

Mas a vida tem mãos rápidas, quem não corre cai, quem não engana é enganado.

De degrau em degrau, ela virou acompanhante, de acompanhante a meretriz. Chamavam-na de rameira mundana, mas ninguém sabia dos silêncios que ela carregava, nem da força escondida atrás da blusa de cetim que tremulava como lua inquieta em noite de ventania.

Certa noite, um valentão tentou lhe dar um safanão, mas ela era ágil, como uma cabrita maltês, leve, esperta, impossível de agarrar, achando que ela era de fácil condução.

Acostumada ao topo e ao fundo, se defendeu com a força de quem aprendeu a viver na beira do precipício. Limpou o lábio machucado e seguiu adiante.

Ao amanhecer, parou diante de uma vitrine ainda embaçada pelo sereno da manhã, viu seu reflexo cansado, porém firme, e sorriu um sorriso pequeno, mas verdadeiro.

Nunca mais deixaria ninguém gorar seus sonhos, suas escolhas ou seu destino.

Quem quisesse falar dela que falasse, quem vivia de mexericos sempre acabava preso à própria balela. Mas, ela não era mais a mesma, era mais forte, resiliente, inteira e perigosa.

Enquanto caminhava com passos seguros pela rua vazia, uma certeza iluminava seu peito: ninguém mais escrevia sua história, agora o destino era ela quem comandava entre o topo e o fundo e tudo o que viesse pelo caminho!

 


A DIFÍCIL VIDA FÁCIL - Adelaide Dittmers

 

 


A DIFÍCIL VIDA FÁCIL

Adelaide Dittmers

  

O espocar de fogos de artifício, que riscavam a noite com luzes coloridas de diversas formas e chuvas de ouro e prata, brindava o nascimento de um novo ano, que trazia ao coração dos homens a esperança muitas vezes vã e incerta de dias promissores.

Em uma janela quase apagada, uma mulher já entrada em anos apreciava com um olhar triste e errante o espetáculo, que expulsara o silêncio e a placidez da noite.

Os olhos de sua alma não estavam ali. Vagavam por um passado distante, em que se via em um salão luxuoso sassaricando, bela na flor da mocidade e cortejada por mancebos, que disputavam a vez de com ela girar ao som dos boleros e tangos, que soavam da radiola.

Foi um tempo em que ela brilhava no lupanar da cidade como a mais cobiçada meretriz, atraindo burgueses jovens e velhos para usufruir de seus favores.

Seu rosto se contraiu ao recordar sua queda. 

A beleza gasta pela vida. Uma vida que dizem fácil, mas é difícil e efêmera. Controlada por um sacripanta, que a iludiu e a explorou por anos, abandonando-a à própria sorte, quando perdeu seu viço, o que a jogou em um bordel nos confins escuros da cidade e onde ela desceu a escada, degrau por degrau, até chegar ao porão da vida.

Ironicamente, foi uma carraspana, que a levou quase em coma a um hospital, que a salvou daquela pocilga. Lá, um enfermeiro de bom coração apaixonou-se por ela. Com pachorra, aquele homem simples a tirou do fundo do poço em que caíra.

Aquele homem a ensinou a amar e ser amada, tratou com desvelo as feridas mais profundas de seu ser, enterrando a rameira e a fazendo renascer com seu nome de batismo, Cleusa.

E agora, naquela janela, vendo o novo ano chegar com luzes e alegria, Cleusa se deixou levar pelo caminho duramente percorrido.  E a saudade daquele que foi seu salvador apertou seu coração tão castigado pela vida.

 

ERA UMA VEZ... PITICO E O ALCE-REI

 



ERA UMA VEZ…PITICO E O ALCE-REI

Dinah Ribeiro de Amorim

 

 

Num reino distante, pequeno povoado, governavam dois reis: D. Dario e Dona Lionela. Eram ótimos caçadores.

Viviam para a caça e a organização de troféus, nas salas do castelo.

Organizavam, às vezes, festas exibicionistas e chamavam outros reis vizinhos para mostrá-los.

Tinham uma ambição crescente, parte importante de suas vidas, caçar um alce real e colocá-lo como troféu, com sete galhos na cabeça. Nunca conseguiam pegá-lo, não sabiam o porquê?

Acontece que o alce, também real, possuía em seus galhos, na testa, um amigo passarinho que o avisava dos perigos da floresta.

Foi salvo pelo amigo alce de uma queda do ninho, abandonado pela mamãe passarinha, bem pequeno, morando nos seus galhos, à vontade, ficando também seu protetor.

Quando soube da ambição dos Reis Dario e Lionela, assumiu logo a sua defesa.

Numa tarde, os reis organizam grande caçada e convidam os melhores caçadores do reino. Comentam: “Esse alce não nos escapa!”

Assim que Pitico, o passarinho, soube, colocou-se de prontidão.

Como os caçadores, na hora do mal, se espalharam pela floresta, chamou logo outros passarinhos para auxiliarem o alce.

No início, em cada lugar de perigo, o alce era avisado: “Foge rápido que estão por perto!”

Quando ia para a direita, gritavam-lhe: “Vá para a esquerda. Estão sentindo o seu cheiro!”

Se o alce ia à frente, mandavam-no voltar. E assim passou o dia inteiro…

Os caçadores não desistiam e o alce foi ficando cansado. Queria dormir.

A passarada, nervosa e preocupada, piava à sua volta, o acordava, não o deixava dormir.

Chegou um momento em que o coitado do animal, lindo e esbelto, um orgulho da natureza, parou e dormiu, mesmo ouvindo aquela cantoria dos pássaros à sua volta.

Os caçadores inimigos chegaram perto e, quando iam atirar, as avezinhas, em bandos, bicaram seus olhos, fazendo-os fugir, apavorados. Não estavam preparados para matar passarinhos.

E assim, o alce-rei descansou sossegado, protegido por Pitico e seus amigos, o companheiro de estimação.

Os Reis Dario e Lionela desistiram dessa caçada e deixaram o animal em paz. Compreenderam que os animais da floresta também reinam e têm seus comunicados pessoais entre eles. Merecem ser respeitados.

Desistiram dos troféus e das exibições.

 

 

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Suspense - Dinah R Amorim

 


Suspense

Dinah R Amorim

 

Naquela noite não estava ventando, mas a porta dos fundos bateu com força; o ruído estremeceu os vidros, causando grande impacto por todo o apartamento. Dona Alice se dobrou sobre si mesma, paralisada pelo medo que já lhe era familiar.

Ah! Como ela ansiava por uma manhã iluminada! Tentava dissolver seu nervosismo arrumando os livros na estante do quarto. Mas eis que outros sons estridentes encheram o ambiente de maus presságios.

De repente, algo se fez forte em seu coração e ela, sem hesitar, saiu do quarto e disse em altos brados: “Quem está aí?” Nenhuma resposta.   Então, caminhou decidida até a entrada e certificou-se de cerrar as portas e janelas. Já voltando para o quarto, escutou novamente o ranger enferrujado das grades da área de serviço.  Agora tinha certeza: havia, sim, alguém entrando em seu apartamento.

Dona Alice sabia que aquele seu vizinho esquisito era uma ameaça constante. Ele tinha o olhar opaco de um ente quase sobrenatural, ameaçador como só os assassinos, os neuróticos conseguem ter. E, além do mais, ele já aprisionara e matara o cãozinho de estimação de que Dona Alice tanto gostava.

No meio do claro-escuro opiju0qiytritj das salas, ela pode ouvir estilhaços de vidros caindo no chão. Eram como pequenas facadas em seu corpo gelado. Dona Alice se trancou no quarto. Espiou pelo buraco da fechadura. Viu o homem sentado em frente à porta brandindo uma faca como se fosse um samurai enraivecido.

E então se fez silêncio.

Ela quis acreditar que ele poderia ter adormecido. Abriu uma fresta da porta do quarto. Estava tudo quieto. Mas havia um cheiro estranho, esgueirou-se até a cozinha e percebeu o cheiro de gás. Quando se voltou viu o homem se aproximar com sua faca; ela entrou no banheiro, se trancou, e com mãos trêmulas quebrou o espelho para fazer uma arma com os cacos.

A ferida em suas mãos sangrava muito. Os chutes do infeliz iam esburacando a porta até quase pô-la abaixo. Dona Alice ainda conseguiu cortar-lhe a veia das pernas. Saiu aos pulos sobre o corpo caído do homem, banhado no sangue misturado dos ferimentos deles dois, que fez um rio vermelho e tingiu o piso frio, o taco quente, o tapete persa  do hall...

 

 

VERDADE OU MISTÉRIO? - Dinah Ribeiro de Amorim

 


VERDADE OU MISTÉRIO?

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Desde a infância, ouvimos contar histórias verdadeiras ou falsas, que significam e formam superstições. Algumas permanecem algum tempo e depois desaparecem. Quando adultos, as esquecemos.

Outras, quando lembramos, não sabemos dizer se são verdadeiras ou não. Cremos um pouco também nas superstições.

A casa dos meus avós tinha um quintal comprido, com várias plantas e um galinheiro ao fundo.

Costumávamos roubar ovos de manhã, quebrá-los e tomar a gema crua, antes de vovó ir colhê-los.

Ela ficava brava conosco e com as galinhas poedeiras também. Uma delas, esperava meu irmão chegar e ia certeira bicá-lo, já antecipando o seu roubo. Com o tempo, escondiam seus ovos em lugares que não achávamos, ou faziam greve. Paravam de botar.

Tio Roberto cismou de fazer caretas com melancias e abóboras, acendendo uma vela dentro, para ficarmos com medo à noite e nos afugentar do galinheiro. Não é que deu certo! Acreditávamos serem fantasmas protetores de aves, e não mais íamos roubar ovos. Só que as galinhas também ficaram com medo e não botaram mais.

Pobre vovó, teve que comprar ovos no empório da rua.

Em criança, sempre ouvíamos que passar embaixo de escadas, era um azar danado. Principalmente em lugares em construção. Quando víamos alguma, dávamos a volta e não passávamos. O pedreiro que estava perto, morria de rir…

Também não acreditei nisso, quando cresci, crendices de criança, falatórios do povo.

Tinha uma amiga da vovó, Dona Ana, muito idosa já, sozinha, viúva e sem filhos. Muito religiosa, vivia pedindo a Deus para não sofrer na hora da morte. Queria uma morte rápida. Quando morreu, soubemos que passeava na cidade e passou debaixo de uma escada, quando caiu um tijolo em sua cabeça e a matou rápido. Ficamos muito arrepiados quando soubemos, mas a sua oração deu certo. Nem sentiu. Vovó  dizia: “ Foi atendida mesmo!”

Ficou a dúvida conosco: muita fé ou dá azar?

Somos um povo cheio de superstições. Basta conversarmos com o pessoal do mato ou interior, longe da modernidade, que aprendemos muito.

Em final de ano, tenho amigas que dão uma folha de louro para todos colocarem na carteira. Quando pergunto o porquê, diz que é para trazer sempre dinheiro. Oba, pego logo a minha.

As cores das roupas debaixo, também influenciam a passagem do ano.

O vermelho significa paixão ardente, o branco, paz infinita, o azul, tranquilidade e sossego, o amarelo, dinheiro e o verde, crescimento e fartura. Não sei bem se está certo, cada um fala de um jeito. Depende da crença.

Comer lentilha na ceia de final de ano, dá sorte e sucesso. Comer aves como frango, pato, peru, com asas, dá azar, segundo uma amiga. Ciscam para trás. O ano também voa para trás. Sei lá!  Nós sempre comemos, não? O peru de Natal sempre foi tradição para todos!

E os três pulinhos nas ondas do mar, à meia noite, para quem está na praia? Todos obedecem a essa crença!

Lembro-me, em menina, que à meia noite, no final do ano, Tia Ilda mandava bater no poste da rua para festejar. Não sei até hoje para quê? Mas batíamos com gosto!

Pois é, crendo ou brincando, o bom mesmo é fazer uma bela oração para pedir Saúde! Paz! Prosperidade! Sucesso! Livramentos do mal e Proteção a Deus, é o que acredito! Amém! Feliz Ano Novo a Todos!

 

DIA DE DOMINGO! - Dinah Ribeiro de Amorim

 


DIA DE DOMINGO!

Dinah Ribeiro de Amorim

 (palavras em desuso)

 


Quando penso em domingo, logo vem a saudade. Saudade dos domingos alegres da infância, saudades do meu sobrado, da casa dos avós!

 

Que dias gostosos, com todos à mesa, contando lorotas e esperando a macarronada supimpa de vovó.

Tio Roberto, o mais bidu, fechava a sua botica movimentada e era quem fatiava a carne assada, em auxílio à mãe.

Comíamos às pampas e, logo após, tia Ilda corria a ligar a vitrola. Colocava seus discos prediletos, em tom alto, para iniciarmos um sassarico.

Quando Tio Mário se levantava, após os docinhos de sempre, o mais janota de todos, começava a fuzarca!

Gostava de jazz e os outros queriam ouvir blues.

Oito tios e quatro netos, cada um sassaricando e tendo um gosto musical, virava mesmo uma fuzarca. Começava o quiproquó.

Ninguém dava mão à palmatória.

Todos queriam fazer valer a sua vontade. Aí a tarde ia pra cucuia!

Vovô e vovó se levantavam da mesa, se afastavam, iam descansar na varanda. Vovô sempre exclamando: Sebo! Não tenho sossego nesta casa!

 

 

 

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

O último encontro - Alberto Landi



O último encontro

Alberto Landi

 

Paris dormia sob uma chuva fina. O relógio da Madeleine marcava 10 horas quando Isabel subiu apressadamente as escadas do Hotel Bedford.

As velas tremiam no corredor, e o som dos passos dela parecia ecoar entre as sombras, como um presságio do que estava por vir. O ar trazia um leve aroma de cera e saudade. Cada passo parecia apagar uma lembrança até que restou apenas o som distante de duas almas prestes a se reconhecer ou se perder de vez. O pai estava deitado, olhos semicerrados, respiração curta. Por um instante ela hesitou, fazia tempo desde o último olhar entre os dois. Aproximou-se e o silêncio pareceu se curvar diante daquele reencontro que era também uma despedida.

No quarto D. Pedro como sempre, envolto em livros e papéis, e ao vê-la sorriu com a serenidade de quem já compreendia o destino.

— Minha filha, o Brasil ainda vive em você. - Murmurou.

Ela se ajoelhou ao lado da cama e segurou-lhe as mãos, frias, mas firmes.

Conversou sobre o neto menor, das flores do jardim do castelo D´Eu, das cartas que chegavam de antigos amigos.

Ele escutava em silêncio, o olhar distante, como se as lembranças do Rio de Janeiro passassem diante dos olhos, o Paço, o povo, o mar.

— Pai... O senhor sente ainda saudade?

— Saudade não, minha filha... Sinto gratidão. Tive um povo bom, fui imperador de almas gentis.

Um longo silêncio caiu. Isabel emocionada tirou do bolso um pequeno pano de linho, um fragmento da bandeira imperial, bordado por ela antes do exílio e colocou sobre o peito do pai.

— Para que o senhor nunca esqueça o Brasil.

Ele sorriu pela ultima vez.

— Nunca esqueci. E quando eu partir direi a Deus que o Brasil é belo.

As velas se apagaram quase juntas.

Lá fora, Paris seguia seu curso indiferente, mas eterna.

Dentro do quarto o imperador adormecia em paz, e a princesa ajoelhada compreendia que a história não morre, apenas muda de endereço.

E naquele instante o passado enfim descansou!


quarta-feira, 19 de novembro de 2025

PROBLEMAS ACONTECEM! - Dinah Ribeiro de Amorim





PROBLEMAS ACONTECEM!

Dinah Ribeiro de Amorim


Acordo de madrugada com batidas fortes na porta. A campainha, acionada, muitas vezes, deve ter queimado ou não a escutei. Fiquei indecisa, quem será a esta hora? Duas da manhã. Não vou abrir. Estou com medo.

Fecho os olhos e tento dormir, novamente. As pancadas na porta se tornam pesadas e contínuas.

Levanto-me rápida, espio pela abertura e avisto um homem encapuzado. Quem será? O medo aumenta por não perceber o seu rosto. Consigo gritar: “O que quer? Quem é você?”

Com certeza, alguém que sabe que estou sozinha! Penso…

Ao ouvir minha voz, bate novamente e exclama alto: “Abre logo essa porta, senão arrombo e dou um chute com o pé!”

Corro ao celular, carregando no banheiro. Nada, não funciona.

Lembro-me do meu telefone antigo que às vezes, tem sinal. Trêmula, procuro discar o telefone da polícia. Não me lembro ao certo, pego a caderneta que está logo abaixo, encontro-o e disco. Uma voz sonolenta responde :Alô, qual é o problema?

Queixo-me que alguém, àquela hora, está batendo na porta de minha casa e não identifico a pessoa. “É melhor verificarem o que está acontecendo”, explico.

A voz, talvez de um policial, do outro lado, manda tentar conversar com a pessoa, enquanto iria tomar providências… e pede-me o endereço.

Já bastante medrosa e irritada, detesto ser acordada e ainda por algum provável assaltante, encosto-me à porta e pergunto o que quer?

O encapuzado responde: “Apenas um lugar para comer e dormir!”

_ Por que, a minha casa? Pergunto, logo.

_ Você me conhece. Sabe quem sou. Ele responde.

_ Não o conheço, não, nem vejo seu rosto. Nenhum conhecido meu viria aqui, nesta hora, principalmente sem avisar. Deve estar enganado, confundiu-me com outra pessoa, retruco meio desesperada.

_ Sou aquele rapaz que você acolheu em sua igreja, naquela noite em que fugia de um assalto e entrei lá para me esconder. Ninguém queria ficar perto de mim. Só você me encorajou, me atendeu, aliviou meus machucados e me ofereceu auxílio, quando precisasse. Lembra-se? Perguntou o estranho.

Dou tratos à bola. São tantas as pessoas que nos procuram na igreja, não consigo lembrar-me, mas, com certeza, deve ter acontecido mesmo. É bem comum eu agir assim, quando estou muito envolvida e cheia de fé.

_Mas, como sabe meu endereço? Seguiu-me até aqui? Deveria ter procurado o pastor, respondo.

_Fiquei confuso, meio tentado várias vezes a voltar, sair dessa vida complicada, cheia de altos e baixos. Acompanhei-a de longe, várias vezes, encantado com sua generosidade. Faltou-me coragem. Hoje, envolvido com drogas, fomos atacados por policiais aqui perto e consegui chegar até sua casa. Levei um tiro e lembrei-me de você.

O encapuzado respondeu-me isso e foi escorregando até cair ao chão. Escutei o barulho e senti remorso em não atendê-lo, deve ter desmaiado.

Mais um que cai no perigo, na vida fácil, enganadora, sem forças para a remissão. E agora, lembro que a polícia logo chega.

Verdade, quando tento abrir a porta, compadecida, a polícia chega e o homem acorda, assustado.

Levam-no logo ao camburão e ele , aos gritos, xinga-me: Sua velha, filha da pu..., mentirosa, chamou a polícia. Uma falsa mesmo...

Tudo se acalma, volta o silêncio na rua e eu, confusa , sinto como se tivesse perdido algo importante. Não me importou ter me chamado de pu... Doía-me muito suas palavras finais: “É uma falsa mesmo!”

Não consegui mais dormir naquela noite!

 

 

 


O grito ficou preso na garganta - Hirtis Lazarin





O grito ficou preso na garganta

Hirtis Lazarin

 

O vidro da janela da cozinha estava tão embaçado que mal dava para ver o que acontecia lá fora, onde o mundo se resumia a manchas de luz amarela dos postes e ao som abafado de pneus na rua molhada. Chovia devagarinho. Dentro da casa, o silêncio era uma coisa viva, pesada e fria.

Renato estava sentado à mesa, as mãos cruzadas sobre um pano velho que usara para absorver a mancha de vinho. Era o que ele resmungava, repetidamente, a si mesmo. “É mancha de vinho”.

Olhava, insistentemente, para um objeto sobre o balcão. Um martelo de carpinteiro, a cabeça reluzindo sob a luz fraca, a madeira  do cabo escura e úmida.

Nunca houve um motivo nobre, nem uma explosão incontrolável de raiva. Haviam discussões frequentes sobre contas a pagar, sobre promessas não cumpridas, sobre falar e não ser ouvido… Discussões corriqueiras entre marido e esposa.

Mas naquela noite, depois de um dia de intenso trabalho, a fome exigindo    satisfação, a dor na bolha do pé  causada pelo sapato novo, tudo isso reunido, fez com que   o casal não encontrasse o equilíbrio necessário pra  dissipar os desentendimentos. O diálogo que começou em tom áspero, foi ficando recheado de palavras raivosas e ofensas não merecidas.

Helena, que tinha a língua solta, falou sem parar coisas que não deveriam ser faladas. Estava transtornada, os olhos esbugalhados e vermelhos, diante do silêncio irritante do marido. Gritou lá do quarto: ”Vou arrumar as malas e desaparecer desta casa.

Foi quando o pânico, misturado a uma espécie de exaustão gelada, se apoderou de Renato. A ideia de que ela realmente partiria, de que o deixaria sozinho com o caos que eles construíram juntos, foi insuportável. Ele sabia bem que a esposa não era de meias palavras.

Feito um robô, levantou-se, caminhou até a caixa de ferramentas que ficava na garagem e pegou um martelo, o maior de todos. Sentou-se num banquinho desajeitado e só voltou pra dentro de casa depois de meia hora. o coração batia surdamente contra as costelas. 

Ele não pensou, não planejou. 

Entrou no quarto e viu Helena de frente ao espelho; corrigia, cuidadosamente, a maquiagem, valorizando os olhos azuis. Vestia uma de suas melhores roupas, salto alto e os cabelos presos. Duas malas estavam prontas.

Aquele olhar de desprezo silencioso e o sorriso de desdém despertaram, pela primeira vez, um monstro. Ciúmes…Muito Ciúmes… 

Ele não pensou, não planejou. Com toda força que tinha desferiu um golpe certeiro.  Na cabeça da esposa.

Agora, o martelo estava no balcão e Renato sentado à mesa da cozinha. Os olhos fixos no pano molhado. Ele podia ouvir o silêncio da casa, um silêncio diferente de antes. Não era o silêncio de uma briga, nem o silêncio da noite. Era um silêncio absoluto, a ausência total de vida no cômodo ao lado.

Um barulhinho arranhou a quietude. A fechadura da porta da frente rangeu. Renato não se mexeu. Ouviu passos familiares na entrada. A porta da cozinha se abriu. Cantarolando entrou a filha adolescente com uma mochila pendurada no ombro.

"Pai?", disse Paty, tirando os fones de ouvido. Os olhos direcionados ao pano sujo  e depois ao martelo no balcão. "Que cheiro é esse? Você derrubou vinho?"

Ele olhou para a filha, para os olhos que eram uma cópia exata dos da mãe, e não conseguiu responder. O peso do silêncio no quarto ao lado, de repente se tornou insuportável. A mancha no pano  parecia crescer, e o cabo do martelo parecia gritar a verdade que ele não tinha coragem de dizer.

Ele apenas apontou o dedo trêmulo para a porta do quarto, incapaz de quebrar o silêncio com sua própria voz.

 


Encontro na Normandia Alberto Landi

                                                                

                                     


                                 Encontro na Normandia

Alberto Landi

 

A tarde caía suavemente sobre a Normandia, quando Joaquim Nabuco subiu a pequena ladeira que levava ao castelo modesto onde vivia a Princesa Isabel. Vinha não como diplomata, nem como homem público, mas como alguém que carregava nas mãos a memória viva de um país que ainda tentava compreender o próprio destino.

Isabel o recebeu à porta, com aquele olhar sereno que Nabuco descrevera tantas vezes em cartas e discursos.

— Princesa. Disse ele, inclinando-se com respeito sincero.

— Doutor Nabuco, o senhor sempre traz o Brasil consigo, respondeu ela, abrindo um sorriso leve.

Sentaram-se na sala iluminada por uma única janela. Um retrato de D. Pedro II repousava sobre a mesa, não como autoridade perdida, mas como lembrança de um tempo que ambos haviam atravessado.

— Minha senhora, começou Nabuco, com a voz baixa, venho dizer o que talvez o Brasil ainda não soube expressar. A vossa assinatura, aquela lei… Não foi somente um ato político, foi a mais alta elevação moral que meu país já alcançou.

Isabel baixou os olhos.

— E mesmo assim, doutor Nabuco, fomos todos lançados ao exílio. Às vezes penso que a história nos agradece e nos pune ao mesmo tempo.

Ele sorriu, com aquela elegância triste que lhe era peculiar.

— A história pune primeiro, princesa, depois, com o tempo, ela se ajoelha.

Um silêncio carregado de sentido atravessou o cômodo. Lá fora, a França segue indiferente, mas eles pareciam suspensos entre dois mundos. O Brasil que se apressou rumo à República e o Brasil que, sem perceber, ainda carregava a marca luminosa da abolição.

Antes de partir, Nabuco segurou delicadamente a mão da princesa.

 

— Se um dia o Brasil esquecer seu nome, princesa, que ao menos lembre o gesto. O gesto basta para salvar uma nação inteira de sua própria sombra. Isabel, emocionada, respondeu:

— E que ele lembre também daqueles que lutaram antes, durante e depois, como o senhor, Joaquim. A história não morre, somente muda de endereço.

Ele se despediu com uma reverencia

O fim da tarde já se tornava azul quando o Conde d'Eu chamou  Nabuco no  corredor estreito do castelo.

O diplomata observa silenciosamente uma pequena galeria de retratos pendurada na parede, imagens desbotadas do império, soldados voluntários da Guerra do Paraguai e um grande quadro oval da princesa ainda jovem, com o olhar firme do ano de 1888.

— Vejo que encontrou nossas memórias, disse o conde, aproximando-se.

Nabuco virou-se devagar, como quem retorna de uma viagem interior.

— Mais que memórias, conde. Aqui estão capítulos que o Brasil ainda lê pela metade.

O conde sorriu com certa melancolia.

— E talvez continue tendo assim por muito tempo. A República teve pressa em apagar nossas pegadas.

— As pegadas, talvez, respondeu Nabuco, mas não a trilha. A abolição é uma sombra luminosa. Nenhum governo conseguirá desfazê-la.

O conde o convidou a caminhar até a janela. Dali se via o campo silencioso, a relva úmida, e ao longe uma árvore antiga dobrada pelo vento, como se também ela carregasse um exílio próprio.

— Sabe, doutor Nabuco, disse o conde, apoiando-se na madeira da janela. Quando deixamos o Brasil, eu pensei que tudo havia terminado, que seríamos somente notas de rodapé, mas a princesa sempre acreditou que o tempo um dia nos faria justiça.

Nabuco assentiu, com a serenidade de quem compreende dois países ao mesmo tempo: o real e o possível.

— O tempo, conde, às vezes caminha devagar, mas nunca caminha para trás.

Ele olhou novamente o retrato de Isabel jovem, quase sorrindo.

— Eu a vi hoje com a luz que o exílio não conseguiu apagar, a história ainda não terminou de escrever o nome dela.

O conde respirou fundo, embargando uma emoção antiga.

— A senhora sempre diz que o senhor foi um dos poucos que compreendeu a alma do Brasil e a dela.

Nabuco sorriu humildemente.

-Compreendo apenas que existem gestos que salvam povos e pessoas que carregam isso até o fim da vida.

Os dois permaneceram em silêncio, contemplando o campo francês adormecido.

Depois, caminhando lado a lado pelo corredor estreito, pareciam dois viajantes que, mesmo vindos de mundos diferentes, partilhavam o mesmo destino: guardar a memória do que o Brasil poderia ter sido.

Isabel ficou à porta, observando ambos se afastarem.

No brilho discreto de seus olhos havia uma saudade imensa, não do passado, mas do futuro que o Brasil jamais chegara a viver.

Por um instante, o corredor silencioso pareceu respirar com ela, guardando aquele sonho delicado que o tempo, teimoso, ainda não conseguira apagar por completo!

Joia de família - Pedro Henrique




Joia de família

Pedro Henrique

 

 Existem histórias que marcam toda uma geração e transpassam a outra como uma joia esporádica de família que, a cada nova vinda, troca de mão.

          No entanto, esta joia é daquelas que ninguém ambiciona, pois nos encontros dos caminhos não haverá aquele que desejará o arame farpado rasgando sua carne como forma de herança.

     Nesse sentido, ainda afirmo que a concatenação dos fragmentos dos diversos sentires furiosos até formar uma unidade única chamada raiva eleva-se em tamanha magnitude ao pensar que tal veredito é designado a um corpo específico: o preto.

     Acham que minto? Rio de vós. Não fazem ideia da correnteza desse rio que nasceu há séculos e séculos e que veio com seu perigoso e turbulento percurso até chegar a nós.

     Posso começar em Mãe África com os reis que se assentavam em riquezas, joias e tronos banhados a ouro ou com aqueles — que nas minas estreitas e precárias, onde somente o ouro era cobiçado — trabalhavam, e ai deles se pouca ou nenhuma pepita achassem.

     Não importa o sol escaldante ou a poeira demasiada que aprisionava-se em seus corpos, apenas trabalhe porque senão há um toco, batizado pelo medo, à sua espera.

     Ou então, posso partir de minha bisavó, que vivia no trabalho constante de limpar, esfregar, varrer, amamentar e dar ao seu patrão, suas intimidades, quando este bem-queria.

     Posso lhes contar se assim desejarem. Queres? Sim. Ok. Pensem. Uma casa grande. Uma esposa, um marido e um casal de filhos, todos morando em uma mansão repleta de pretos trabalhando para eles.   

     Agora, imaginem outra família; esta, por sua vez, não é rica nem branca. Esta tem que trabalhar e muito para prover o sustento.

     O pai labuta no cafezal dia e noite, preparando solos e mais solos, colhendo grãos e mais grãos, além de cuidar dos animais, construir cercas, fazer reparos na casa e demais instalações na fazenda.

     A mãe tinha suas atividades na casa grande, junto às duas filhas que a ajudavam com todas as demandas e servindo de babás para a filha mimada de sua patroa.

            A menina era cruel, ignóbil, implacável, selvagem. Vivia beliscando as coitadas e estas nada podiam incidir sobre a conjuntura. Ela era a concretização indubitável do velho e perene dito popular de que o fruto não cai longe da árvore.

          Afinal, sua mãe não se ressentia em denotar que, para ela, os negros não têm espírito, nem alma, só são corpos e os corpos só trabalham, não têm direito a regalias.

          Esperta, a filha aprendeu com esmero como as pretinhas da casa deveriam ser tratadas e decidiu colocar em prática os ensinamentos da matriarca. Para tanto, elegeu minha bisavó, uma das babás, como sua cobaia.  

          A filhinha linda e amável fecundava o desejo imensurável de fazer com que as pretinhas não se sentissem bem-vindas ao núcleo de seus domínios.

            Sendo assim, valia-se de todos os recursos possíveis, entre eles a palavra. “Feia”, “cabelo duro”, “escrava fedida”, “filha do demônio”, “mulata mal-educada”, “macaca” e todos os outros adjetivos que tangiam ao fedor, feio e indigno, se reduziram a meros micros eufemismos para o que queria factualmente expressar em relação às babás.

     Inerme, minha ancestral tentava se desvencilhar, mesmo sem saber como, de tudo aquilo, levava sua mente aos voos mais elevados e longínquos onde era convidada de honra no festejo do júbilo, usufruía dos devaneios e das esperanças.
 Ah… como cantava bem, mas tão bem. Entregava-se ao deleite de ao menos sonhar em haver uma utopia em que poderia viver disso. Sempre que suas palavras, plasmadas em mel aos ouvidos dos vivos, ganhavam musculatura e forma, sentia-se liberta de si e de suas correntes. O mundo paria cor e aroma, tinha cheiro de vida. 

     Fechava os olhos e seus pensamentos descortinavam tal realidade. Às vezes, até no trabalho, parava, olhava pela janela ao pôr do sol e o canto emergia de seus rachados lábios Vinha com glória e majestade, vinha denunciar um novo amanhã, um novo dilema, uma nova arquitetura. Ah, vinha pregar o amanhecer, o ceifamento das trevas, o andar nos campos do afeto.


 Pena que felicidade é uma madame hostil e que rejeita pobres e todos os que gritam por socorro na costa do oceano social. O que ocorreu é o que me perguntam? Pois bem! 

     Um dia, minha bisa gozava de seu canto visceral e os ecos de sua voz beijavam cada canto da casa grande, de modo a penetrar os ouvidos da sinhazinha e nela fez jorrar o ódio e a inveja.

     Não suportando, portanto, aquele som, saiu furiosa da sala de estar e foi à cozinha mandá-la se calar. Porém, a crueldade sabe o momento exato de dar o bote e fazer suas vítimas experimentarem, a contragosto, o odor que dela emana.

     A garota pegou um canecão de água que estava fervendo no fogão a lenha e, quando minha bisavó tomou ciência do mundo, já estava gritando, clamando por socorro.

     A sinhazinha foi acolhida pelos pais e sua versão da história de que a pretinha estava mentindo e que o canecão havia caído e, magicamente, parado em seu rosto, foi aceita.

     Minha bisa só não ficou cega por um milagre. Assim que gritou, minha trisavó veio como águia ver o que havia acontecido e logo socorreu a filha.

     Levou-a para o funesto casebre dos fundos onde moravam, chamou o marido e juntos rogaram ao Obaluaiê, pedindo-lhe cura e amparo.

     Com o tempo, minha bisavó voltou a abrir os olhos e cantar suas músicas, ainda que em pensamento, por angariar de maneira desumana o entendimento de que seu corpo nascera de tal forma silenciado e que o som que dele emergia era ceifado pelas mãos atrozes daqueles que ditavam os mandos.

          E foi sob este cenário, caro leitor, no qual a insegurança e a perversidade humana entoavam seu louvor peremptório, que minha bisavó cresceu.

     Porém, também tinha seus momentos de deleite, nutria um sentimento único por plantas, vivia regando as rosas e tulipas de sua patroa, chegou até a fazer um canteiro de camélias no jardim que havia na parte externa do grande casarão.

          Afirmava com propriedade que as plantas eram suas filhas. Quando acompanhava seu processo de afloramento, divagava pelas trilhas do devaneio, imaginando que ela também era assim: uma rosa em desenvolvimento, pronta para revelar suas pétalas e encantar a todos que a vissem.

     Entretanto, era “feia” e sentia em seu coração que nunca alguém olharia para ela com encantos.

     O pior de tudo foi ter que se cobrir com a casca da maturidade muito cedo, afinal, com doze anos, enquanto servia café no escritório do senhor da casa, foi surpreendida por suas mãos repugnantes agarrando seu braço e a colocando virada para si em cima da mesa.

     Quando gritou, movida por um sentimento que se ramificava desgovernadamente por suas vísceras, cuja nomenclatura é medo, só teve a oportunidade de vislumbrar o punho do patrão visitar seu rosto.

          Além disso, teve de ouvir com todas as letras e fonemas que, caso não se calasse, teria de sair da casa dele e ir morar na rua, como o resto dos pretos.

     Sendo assim, ela apenas se calou e aceitou seu destino sem hesitar, afinal, o que poderia fazer?

     Desta forma, as águas impiedosas que compunham esse rio chamado existência seguiram.

    Com quinze anos, engravidou de minha avó e a vida como palco para a apresentação do horror havia injetado em seu corpo todas as chagas, lepras e espinhos do estar no mundo.

     Curioso ou não, a história perpetua-se. E, sob o pôr do sol de cada dia, nunca nasceu a esperança de que em algum momento as coisas seriam diferentes.

     Oramos para a maligna joia sair enfim de nossas mãos e nos deixar livres de toda condenação, pois sei como minha bisa e minha vó souberam que a alcateia não nos exime da mordida dolorosa, fria e lenta, em que só a morte tem o poder de colocar um ponto final.

 

 


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