O CIRCO
A mente acumula memórias e
sentimentos. Por vezes eles afloram de alguma maneira.
Leon Alfonsin Vagliengo
O dia a dia de Bernardo e Valentina era
sempre o mesmo: muito trabalho, cuidando do seu pequeno sitio no interior de
Minas Gerais, onde moravam e garantiam o sustento com a criação de galinhas,
uma pequena e variada horta, algumas árvores frutíferas, além da cabrita
Mimosa, e da vaquinha Margarida, que lhes davam o leite diário, e do bode
Marcriado, que cuidava da recepção de visitantes. Bernardo havia planejado, ainda, iniciar uma
criação de coelhos para corte, mas Valentina não deixou, dizendo ao marido que
seria muita maldade com os bichinhos, provocando nele um sentimento de culpa só
por ter pensado nisso.
No
primeiro sábado de cada mês faziam as compras das provisões para o sítio e,
como sempre, viajavam alguns quilômetros em sua velha caminhonete por uma estrada
de terra vicinal, na região de Varginha, onde se dizia que, às vezes, apareciam
objetos voadores. Durante o percurso pelos trechos desabitados Bernardo tentava
disfarçar, mas mantinha-se tenso, calado, e não conseguia esconder a forte
inquietação que o dominava, pois era bastante crédulo e acreditava nas
histórias que ouvia de seus vizinhos sobre pessoas abduzidas, raptadas por
seres extraterrestres. Nesses momentos, invariavelmente tinha que suportar uma
carinhosa zombaria de sua mulher, que lhe dizia “Cê é muito encucado, home! Curuis
credo” – “Num me atazana, muié! Para di fazê disfeita!” — Ele sempre respondia.
Naquela
manhã, bem cedo, trafegando nesse trecho já bem próximos da pequena cidade onde
fariam as compras, tiveram a atenção despertada por um terreno recentemente
desmatado, em cujo centro estava uma construção metálica, fazendo lembrar a
João o Teatro de Alumínio, que um dia havia visto numa fotografia de São Paulo.
A estrutura tinha um formato incomum, com janelinhas redondas em toda sua
circunferência, e as palavras “Grande Circo do Coelho” sobre a porta de entrada
identificavam a sua finalidade.
—
Vixe! Esse Circu é dimais da conta, sô! Ispia só! — comentou Valentina.
Chegando
à cidade, encontraram vários cartazes que anunciavam o Grande Espetáculo
Circense, com uma propaganda muito bem-feita, anunciando para aquela noite uma
apresentação nunca vista antes, inesquecível e fantástica, mas sem revelar
detalhes da programação. Em cada cartaz, o desenho de um grande coelho,
sorridente, parecido com o Pernalonga das histórias em quadrinhos, sorria de
maneira muito simpática, numa imagem que fazia alusão a um importante participante
de mágicas, o coelho. Uma frase instigante completava o cartaz: “Depois de
assistir a este espetáculo você nunca mais duvidará de nada”.
Depois
de examinarem um daqueles cartazes com evidente Interesse, Bernardo olhou para
Valentina com aqueles olhos sorridentes de convite, que ela entendeu e
imediatamente exclamou “nóis vamu?!”, já empolgada com a ideia.
Apressaram-se
com as compras, voltaram ao sítio e adiantaram todas as tarefas, entusiasmados
com as perspectivas de uma noite diferente e divertida. Já se haviam passado
quase duas horas do meio-dia quando puderam almoçar. Bernardo disse que estava
“varado di fome”, fome de leão, e comeu muito. Depois deitou-se um pouco para a
merecida sesta, como fazia todos os dias, e pediu a Valentina para chamá-lo a
tempo de se preparar para irem ao circo.
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Ao
chegarem ao Circo, um bom público vindo das cercanias e da cidade já formava
uma grande fila para a compra dos ingressos. Aos poucos todos foram entrando e se
acomodaram, e enquanto aguardavam, em meio a um burburinho de animadas
conversas, puderam também notar a presença de uma mesa no canto do palco, com uma
cartola sobre ela, dessas usadas por mágicos, ligeiramente maior, negra como de
praxe, em posição invertida, com as abas para cima.
Exatamente às vinte horas, horário
previsto para o início do espetáculo, as portas metálicas do circo foram
fechadas e, para espanto do público, surgiu de trás das cortinas um impressionante
coelho cinza e branco, de quase dois metros e enormes orelhas, vestido com uma
longa casaca negra, ostentando um sorriso dentuço grande e simpático, acenando
alegremente enquanto se encaminhava ao centro do palco, andando em pé, como
fazem os humanos. Lá chegando, inclinou-se numa longa reverência, cumprimentando
o espantado público, que não acreditava no que estava vendo.
—
Eita fantasia bunita dimais da conta, sô! — Exclamou Bernardo.
—
Cabuloso, né? Inté parece um cueio, mermo! — Ouviu de Valentina, muito
admirada.
Continuando,
o enorme coelho apresentou-se como o Mágico Orelhinhas e fez um breve e
estranho relato de suas experiências “neste planeta”, dentre as quais destacou
as viagens que realizou com um sujeito chamado Gulliver no ano de mil e
setecentos do calendário dos humanos, numa máquina do tempo, das quais trouxe
atrações para montar o seu espetáculo de mágicas fantásticas.
A
seguir, fingindo não perceber o assombro que estava provocando no público com
sua imagem excêntrica e aquela conversa absurda, o mágico Orelhinhas iniciou a
apresentação e passou a realizar truques ilusionistas muito intrigantes, como
todos são: sem nada dizer, mudou várias vezes, de repente, a cor da sua casaca;
transformou rígidas bengalas em lenços macios e os fez desaparecer num tubo que
se desvaneceu no ar, para reaparecerem de repente na cabeça de alguém da
plateia; fez surgir um buquê de lindas rosas amarelas passando um lenço sobre
as patas vazias e gentilmente o ofereceu a uma senhora da plateia; enfim,
realizou dezenas de outros desafios à lógica do entendimento comum, num longo
espetáculo de ilusionismo, recebendo muitos aplausos dos incrédulos e
extasiados espectadores, que aos poucos foram se acostumando e esquecendo a
estranheza daquela situação insólita.
Bernardo
estava encantado com o show, mas do fundo de sua memória vinha a impressão de
que já tinha visto todas aquelas mágicas. Num certo momento, quando viu as
rosas, olhou apaixonado para Valentina, contente em ver a felicidade que ela
demonstrava com aquele lindo sorriso que não saía de seu rosto, e pensou em
dar-lhe também um buquê de rosas, assim que pudesse. Mas seriam vermelhas, de
paixão. E ainda pediria um beijão em troca.
Após a longa série de mágicas que
literalmente encantaram o público, Orelhinhas finalmente dirigiu-se à mesa onde
estava a cartola e a tomou nas patas, anunciando:
—
E agora, senhoras e senhores,
diretamente de Lilliput, o clímax deste espetáculo!
— Eu sou a mini anã Aninha! —
Disse a mocinha, com voz maviosa.
— Eu sou o mini anão Adão! — Disse o homenzinho, com uma voz
surpreendente, que mais parecia um trovão.
E arremataram em uníssono, com o jargão dos
circos:
— Distinto público, MUITOOO... BOAAA...
NOITEEEEE!
Na
sequência do espetáculo, iniciaram a representação de um rápido drama caricato
em que, após um divertido colóquio, Adão declarou seu amor por Aninha e a pediu
em casamento. Ela se mostrou muito emocionada, mas, prudente como toda mulher, logo
perguntou como ele iria sustentá-la. Adão não se fez de rogado: imediatamente
virou-se para Orelhinhas e pediu-lhe um emprego no circo:
—
Eu sei imitar passarinhos como ninguém — propôs.
― Sinto
muito, Adão, mas essa atração está muito explorada, não tem mais graça, já não
interessa ao público porque muita gente sabe imitar passarinhos — respondeu o
Coelhão, com cara de desinteressado.
—
Sim, mas não do jeito que eu faço, retrucou Adão. Vou fazer uma demonstração,
aposto que o senhor vai gostar. Veja!
E
o anão Adão saiu voando, um voo alegre e variado: subiu uns cinco metros, circulou
várias vezes em volta do palco, desceu quase até o chão, subiu novamente e, ao
final, pousou num trapézio acima do picadeiro emitindo alegres chilreios de
rouxinol, para assombro da plateia que o aplaudiu efusivamente entre
estrepitosas gargalhadas, agora completamente afeita a toda aquela situação
fantástica e insólita de que participava.
—
Você me convenceu! Está contratado! — exclamou Orelhinhas, finalizando o
teatrinho com aquele riso de quem já conhecia o desfecho.
O
enorme coelho então retomou o comando do palco para comunicar o fim do
espetáculo e, a seguir, assumindo uma expressão grave e séria em seu olhar,
revelou que o circo metálico em que se encontravam era, na verdade, uma nave
espacial que havia decolado durante o início do espetáculo e agora dirigia-se
ao planeta Cenoura, pertencente à Galáxia dos Coelhos, situada logo após a perigosa
Galáxia do Bode. Insensível a alguns desmaios entre o público, continuou, em
tom de discurso:
—
Nós, coelhos, desde que conseguimos dominar a tecnologia dos voos espaciais há muitos
séculos, começamos a migrar do planeta Cenoura para o planeta Terra, procurando
um novo lar em missão de alegria, felizes em levar a ternura dos coelhos para
aprendizado dos humanos. Muitos pioneiros de nosso planeta criaram suas
famílias na Terra, multiplicando-se e aperfeiçoando nossa linhagem através de
gerações, sempre embelezando os vossos bosques e jardins e alegrando as suas
crianças, mas verificamos que alguns dos nossos são por vocês cruelmente
sacrificados.
Bernardo
sentiu que a carapuça lhe servia, pela intenção que tivera de criar coelhos.
E
Orelhinhas prosseguiu:
—
Por isso, vendo tanta ingratidão, promovemos esta missão, que tem por
finalidade iniciar a captura de humanos a fim de empregá-los nas plantações de
verduras e legumes de nosso planeta, para a alimentação dos coelhos, seus
habitantes originários. Estamos numa
nave muito veloz, suave e silenciosa e, atentos ao espetáculo, vocês nada
perceberam, mas já estamos muito distantes da Terra.
E
para que ninguém tivesse dúvidas, ainda sugeriu:
— Vejam pelas escotilhas! – exclamou ele,
apontando para as janelinhas redondas.
Muitos
correram para ver. Bernardo tomou a mão de Valentina e se apressaram para a
escotilha mais próxima, olharam e viram, apavorados, a Terra já muito distante,
apenas um pontinho azul, parecia uma bolinha de gude. Mal exclamaram “VIXE!” e Bernardo passou a sentir
alguns solavancos; seria, já, a aterrisagem, ou melhor, a acenourisagem?
Não,
não! Parecia mesmo que ele estava sendo sacudido por alguém. Olhou de imediato
para Valentina, preocupado com ela, e viu, mesmo estranhamente percebendo que
estava com os olhos fechados, que ela já não estava lá, mas lhe dizia
repetidamente “Acorda, home! Acorda! Cê tá cum sonho ruim! Acorda, véio!”.
Bernardo abriu os olhos, coração aos pulos,
acabou de acordar, e deu de cara com Valentina, que segurava seus ombros e rindo-se
da situação, perguntou “Cê tá bão?”. Meio atordoado Bernardo só disse “Tô, uai”,
levantou-se e foi para o banheiro lavar o rosto, ainda pensando naquele coelho
enorme, nos liliputianos Aninha e Adão e naquela inacreditável imitação de
passarinho. Ouviu Valentina gritar, do quarto:
—
Toma banho i bota uma ropa bunita, mais vai logo, si não nóis perde a hora du
Circu.
Desta
vez, Bernardo não teve dúvidas nem vergonha, e assumiu:
—Num
vô, não, sô! Adiscurpa, fiquei veiáco. Tô cum medo dus E.T.