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quinta-feira, 10 de maio de 2018

FIM DE LINHA - Hirtis Lazarin


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FIM DE LINHA
Hirtis Lazarin


Nasci numa família pobre e desestruturada.  Um pai alcoólatra e uma mãe que aceitou a cruz como se não houvesse nada mais além. 

Cansei de ouvir: "É o destino, filha".

Os domingos em casa eram torturantes.  O homem não saía, bebia sem parar, fome não tinha.

À chegada da noite, ele desmaiava no sofá da sala para acordar só na segunda-feira.  Ou então recitava incansavelmente a mesma ladainha recheada de palavrões acompanhada de pratos despedaçados contra paredes, panelas e comida quente esparramadas pelo chão.

Lembro-me que, ainda pequenina, mamãe e eu atemorizadas e trancadas no quarto, rezávamos ajoelhadas, implorando proteção à Nossa Senhora.  Quantas velas acendemos!

À medida que fui crescendo e entendendo um pouco mais da vida, fiquei revoltada.  Não suportava as loucuras do meu pai, nem a passividade de minha mãe.  Sentia raiva, muita raiva...

Nunca tive a oportunidade de trazer amigos, ouvir música, ou escolher o programa de TV.

Sentia vergonha da minha família.

Aos dezoito anos, abandonei os estudos e fui morar com meu primeiro namoradinho.  Que experiência eu poderia ter?  Mas qualquer coisa seria melhor que viver insegura e revoltada naquela casa horrorosa.

Samuel era um rapaz bom e trabalhador, bem mais velho que eu.

Fez de tudo para me ajudar.  Pagou psicóloga, psiquiatra e acreditem, até me deu um cavalo de presente pois sabia que eu amava cavalos.  E ouviu dizer que equitação é um bom remédio para diversos distúrbios.

Segui à risca todo tratamento, mas com o passar do tempo fui desanimando.  Eu continuava deprimida e revoltada.

Carregava tantos traumas que me fizeram uma mulher fechada, de palavras amargas e frias.

Descobri que as manchas roxas que marcavam temporariamente a pele branquinha de mamãe, arroxearam para sempre minha alma sofrida.

Tentei engravidar.  Quem sabe o riso e o choro saudável de crianças pudessem me ajudar.  O trabalho dobrado preencheria esse vazio existencial.

Não consegui.

Em casa não havia mais música. O silêncio ficou doloroso.

As janelas, mantinha-as fechadas.  A ausência de sol deixava o ambiente interior impregnado de um cheiro embolorado, úmido e cinzento.

Até os muros que nos rodeavam denunciavam melancolia.  Cuspiam cal e cimento e os buracos surgiam desprezados.

Samuel não suportou viver junto de tanta amargura.  Ele estava certo.  Era jovem e cheio de vida.  Tinha direito à felicidade.  Deixei-o partir.

Eu estava ciente de que acabava de fazer um buraco profundo para enterrar minha última possibilidade, meu último desejo.

Desisti, então, de vez da magia de viver.  Desisti de tirar o coelho de dentro da cartola.

Era a primeira noite que dormiria sozinha.  Senti falta do corpo dele roçando o meu.  Senti falta do seu cheiro e até do seu ronco...

Chorei tanto que eu e meu travesseiro dormimos molhados.

Acordei sobressaltada.  O relógio marcava quatro horas da manhã.

A energia estava cortada.  Por uma fresta da janela, espiei e lá fora um vendaval uivante derrubava tralhas e arrastava outras.  Os galhos mais frágeis se contorciam em desespero, teimando em não abandonar o tronco das árvores.
Relâmpagos intermitentes clareavam e escureciam os aposentos.  Os raios pareciam explodir dentro de casa.

Desci as escadas tremendo de pavor. Nunca vi coisa parecida em toda minha vida.

Encontrei as janelas e portas da cozinha escancaradas.  O meu cavalo solto no quintal só se aquietou quando apareci na porta.  A louça do nosso último jantar eram cacos espalhados pelo chão.  As cortinas de tecido fino feito velas desgarradas em alto mar, entrelaçaram-se em nós.

Uma chuva torrencial desabou.

Eu já não tinha mais nada a perder.  Então soltei os cabelos longos, despi-me e nua montei no cavalo branco.

E galopando freneticamente me perdi em meio à tempestade.


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