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quinta-feira, 22 de março de 2018

Início conturbado - Ana Catarina Sant’Anna Maues




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Início conturbado
Ana Catarina Sant’Anna Maues                                      

   O telefone vibra no criado mudo, interrompendo o sono de Marcela:
— Alô!
— Marcela, tá dormindo mulher? O sol está lindo, vamos à praia ?
— Quem é? Pergunta ainda de olhos fechados.
— Laura, quem podia ser! Uma hora dessas pensei já estar cantançando Michael Jackson. Ainda é apaixonada por ele?
 Eternamente! Mas é que cheguei tarde. To só o pó. Visitei sete cidades em dois dias dirigindo sozinha. Estrada complicada, transito agressivo, muitos acidentes.
 Ah! Então já sei, não vai comigo.
 É amiga, fica pra próxima.
   Hora do almoço. Marcela com fome e nada na geladeira. Resolve sair e almoçar num shopping qualquer.
   Já dirigindo nas ruas movimentadas que levam ao mais próximo, percebe o olhar insistente de um belo rapaz no veículo ao lado. Volta o rosto e confirma. Está mesmo fitando-a. Ele dá passagem ao carro dela, ela agradece com a cabeça, ele esboça um sorriso, ela retribui. E assim os dois iniciam uma gostosa azaração. Ambos entram no estacionamento.
    Paulo não sai do carro, mesmo já tendo estacionado, pois fala ao celular.
— Ok! Então a placa confere. Deixa comigo. Essa já está ganha.
   Marcela nem desconfia que é alvo de uma ação policial. Tranca o carro procurando em volta pelo rapaz, sem sucesso. A brincadeira estava gostosa, ansiava quem sabe talvez um romance. Desapontada segue em direção ao restaurante. 
   Paulo, investigador experiente que é, segue-a sem que ela note. Espera que entre no restaurante, acomode-se em uma mesa, certifica-se que estará sozinha.            
    Já quase no final da sobremesa ele entra no ambiente fazendo-se surpreso por tê-la encontrado novamente.  Dos olhos dela saem micro corações pulsantes. Astuto, que nem raposa velha, percebe o interesse e aproxima-se falando com voz sedutora:
— Olá! Nos encontramos de novo.
   Sim! Responde ruborizando.
   Marcela apesar de adulta, é inocente. Moça criada no interior, veio pra capital após a morte dos pais, não adquiriu malícia, tem coração poético. Presa fácil ao engenhoso Paulo, famoso por solucionar os casos mais complexos do departamento..
  Desse encontro outros vieram. Ele foi conquistando a confiança, e a um namoro deram início sem maiores intimidades, pois o romantismo dela inibia-o de ir além, e também esse não era o caso,  afinal  ele estava trabalhando numa investigação.
  Até que numa noite.
 Dois homens conversam ao telefone.
   Chegou um carregamento. Está com a chave?
   Sim. O namorado saiu. Ela já vai dormir. Pode pegar na hora de sempre.
   Um homem chega ao prédio de Marcela. O vigia entrega a chave do carro dela.
   De tocaia está a equipe de Paulo, e segue o veículo, que vai em direção a periferia da cidade. Chegando em local ermo, os ocupantes do carro de Marcela vão até a mata e trazem de lá pesadas caixas. Quando terminam de carregar o automóvel escutam cirenes e luzes piscando. Uma voz grita em alto e bom som, anunciando a prisão deles.
   Nesse mesmo momento no apartamento de Marcela, a polícia chega arrombando a porta, e dando voz de prisão a ela. Confusa, atônita, de algemas nas mãos, assim foi levada até a delegacia.
   O delegado interroga. Ela não sabe nada de nada. Incisivo, quer então que explique, como o veículo de sua propriedade, está abarrotado de armas e drogas. Insiste em explicações sobre as viagens que ela faz, achando que mente quando diz tratar-se de trabalho, e que na verdade ela é a chefe do bando.
   Nesse momento uma ligeira movimentação desperta a atenção dela. Chegam na delegacia o carro, os homens presos, as armas, as drogas, e Paulo.
  O delegado apressa-se na acareação. Coloca frente a frente ela e os dois desconhecidos. Paulo entra na sala pra escutar.
    Quando o vê seca as lágrimas com a mão. Sente como se um príncipe em cavalo branco chegasse para livra-la de todo aquele pesadelo. Mas ele tem comportamento frio e distante. Sem entender, chama com voz miúda seu nome:
   Paulo! Sou eu.
   O delegado resolve explicar como a participação do melhor agente, foi decisiva para aquele desfecho positivo.  Ela não acredita no que escuta.
   Os suspeitos pressionados acabam contando como faziam. Havia também a participação do vigia-manobrista do edifício, ele cedia o carro para o crime. O de Marcela era sempre usado porque ela nunca saia de madrugada, dando tempo de ir e retornar sem que ela dessa falta do carro. Como as vagas na garagem do prédio eram poucas, as chaves dos automóveis ficavam com o vigia.  Imediatamente com esse fato novo, sai uma diligência para buscar o funcionário citado.
   Aos poucos ela vai compreendendo a grande trama de que foi vítima. Pede que chamem a única amiga, Laura.
   O dia amanhece. Marcela é consolada por Laura que chegou com advogado. De tudo que aconteceu ela não para de pensar em Paulo. Verdadeiramente havia entregue o coração ao dissimulado.  Ele a conquistou, pois tinha sido perfeito. Cavalheiro, amável, generoso, respeitador, romântico. Como foi possível fingir tanto tempo! Meditava inconformada. Lembrava das carícias, dos beijos, das gargalhadas, do namoro puro. Tudo orquestrado, meticulosamente planejado. Cruel demais! 
  Chega na delegacia o vigia-manobrista.  Vem algemado. Preso na rodoviária, quando embarcava tentando fugir. Ao olhar para Marcela cai em lágrimas pedindo desculpas.
   Desculpa Marcela. Eu sei, você não merecia. É gente fina pra caramba. Mas eu tenho mulher e filhos, sabe como é né. Ganho pouco. Os meninos dão muita despesa.  Querem tudo do bom e do melhor. Fui tentado. Desculpa. Desculpa mesmo.
   Marcela foi inocentada. Ao deixar a delegacia amparada pela amiga, aproxima-se de Paulo, que não esperava aquela reação dela e sem defesa, recebe um bofetão. 
     Insegurança, medo, síndrome do pânico, depressão, remédios. Degraus que veio galgando em nítido declínio por meses. Mas agora estava melhor.  Trocou de emprego, apartamento, bairro.
   Paulo por sua vez, nunca mais foi o mesmo depois daquele dia. Pediu licença. Viajou.   Emendou com férias. Visitou a mãe noutro Estado. Mudou de setor. Mas o pensamento sempre trazia Marcela. Sentia-se canalha. Como não percebeu as entrelinhas. Ela não podia estar envolvida, era boa demais, pura demais, com virtudes demais.  Aquela moça era especial. O arrependimento o consumia. Pior, o amor aumentava. Tempo de luta sem trégua, resistiu o quanto pode. Mas agora vencido, assumia. Amava Marcela de todo coração.    
    Criou coragem e uma tarde visitou o prédio dela. A notícia foi, que ninguém sabia sobre a antiga moradora.  Inconformado, passou a usar todo recurso dentro do departamento para encontrá-la.
   Mais de um ano sem notícia alguma, era como se tivesse evaporado. Mas o destino tramou um encontro inesperado. Num supermercado, empurrando carrinho, ao virar o corredor, eles se encontram.
     Marcela plenamente recuperada. Paulo diante da oportunidade que pediu a Deus.
Como não tocar no assunto? Ela aceitou o café oferecido por ele.  Sentados um em frente ao outro, olhos nos olhos, encaram-se. Ela quebra o silêncio:
 — Você foi um marco em minha vida. Eu era uma Marcela antes de te conhecer e me tornei outra, após.  Você foi todo mal que eu pude viver. A maior mentira.  A maior traição.  O maior sofrimento. O maior trauma.  Mas não apenas isso, devo a você também o meu amadurecimento, minha malícia, positividade, descomplicarão, frieza e agressividade. Não vivo mais emoções. Sinto-me bem melhor agora.
   Agora Paulo toma a palavra:
   Pois pra mim você foi o que de melhor eu vivi.  Foi um marco em minha vida. Eu era desconfiado, incrédulo, pessimista. Você me ensinou humildade, fidelidade. Conheci paz, alegria, o valor do que é simples, e o maior de todos os sentimentos, o amor.
   As horas passaram rápidas. Eles nem sentiram.
   Deste encontro outros surgiram. E outros e mais outros.
   Marcela e Paulo festejaram bodas de ouro, provando que o amor supera tudo.  
      

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